• Nenhum resultado encontrado

O processo de colonização: a formação dos latifúndios e as terras de

A apropriação de terras no Brasil se deu basicamente pela concessão de sesmarias. A Coroa portuguesa cedia grandes extensões de terra para os fidalgos, funcionários reais ou ricos comerciantes colonizarem as terras americanas recém- descobertas. Em algumas áreas, como as pastoris, tais extensões foram ainda maiores, sendo assim formadoras de latifúndios13. Como diz Girão (apud Sobrinho,

1979, p. 8), em Sesmarias cearenses:

Terra havia muita e para ocupá-la somente se faria preciso chegar com a coragem e mais alguns elementos materiais indispensáveis à fixação. Era, portanto, fácil obtê-la, pois que generosa a liberalidade dos governantes encarregados de distribuí-las. Muitos foram que reuniram em seu poder número vultoso de sesmarias, representando enormes latifúndios.

Apesar de enfrentar os obstáculos provenientes da seca, que atrasou a colonização da região semiárida, os currais foram tomando conta da paisagem da caatinga. O sistema sesmarial impulsionou a ocupação na região, por meio de “enormes latifúndios”, que vão marcar sua estrutura produtiva e diferenciar o semiárido de outras regiões da colônia.

Para Varnhagen (1962, p. 150), as concessões outorgadas pela metrópole eram mais latas do que se devia esperar numa época em que na Europa os reis, ao buscarem a centralização política, limitavam cada vez mais tais concessões. Havia, conforme o historiador (1962, p. 150), uma razão para esta aparente contradição: “Os

13 Silva (2008, p. 83-84) concorda parcialmente com essa afirmação. Ela foi levada a “nuançar a

avaliação de que o sistema sesmarial foi o responsável pelo caráter latifundiário da nossa estrutura agrária”. Apesar de admitir que tal sistema contribuiu para a formação do latifúndio colonial, ela chama a atenção para o fato de que, em 1822, quando as sesmarias foram extintas, apenas uma pequena porção do território brasileiro estava apropriada. Ela, além disso, lembra que “paralelamente foi se gestando outra forma de aquisição de domínio, a posse, que desafiava abertamente a autoridade colonial”. Faço ressalva apenas em relação à “pequena porção apropriada do território brasileiro”. Ora, isto não é razão suficiente para relativizar a formação de latifúndios realizada pela instituição da sesmaria. Se no século XIX havia mais terras devolutas que terras doadas pela Coroa, pode-se dizer que a colonização das terras continentais do Brasil ocorreu de forma lenta e gradual, e o “pouco” que foi apropriado se traduziu unicamente sob a forma de latifúndios. Deste modo, o regime de concessão de sesmarias foi efetivo na formação de grandes propriedades, especialmente no Norte semiárido.

34

meios feudais tinham sido [...] os mais profícuos para colonizar os países quase ermos de gente [...]”.

Para evitar que suas terras caíssem nas mãos dos seus adversários, a metrópole portuguesa as concedeu a seus donatários. Os “meios feudais” assim eram os mais favoráveis para tal empresa. Em razão disso, Varnhagen (1962, p. 152) afirma que “Portugal reconhecia a independência do Brasil, antes de ele colonizar”. Pois cedeu a maior parte dos direitos majestáticos aos donatários, “a troco de poucos tributos, incluindo o do dízimo; do qual tributo ela mesma pagava o culto público e a redízima aos senhores das terras”. Então, a Coroa diminuiu o poder da camada senhorial em sua pátria e dava condições especiais para a formação de uma poderosa camada senhorial em sua colônia.

De acordo com Oliveira Vianna (1922, p. 282), “[nós] temos sido um povo de latifundiários”. Esta seria uma caraterística somente nossa: ao contrário dos outros países, no Brasil, “a agricultura se inicia tendo por base a grande propriedade”. “Todo o longo período colonial – continua o jurista (1922, p. 282) – é um período de esplendor e gloria da propriedade territorial”. A pequena propriedade que seria elemento fundamental de combate aos régulos, ao patrimonialismo, ao sistema de moradores e à escravidão, surgiu apenas no III século da nossa história. Portanto, é a grande propriedade que “aparece e pompeia”; “cria e domina”; “fia”, “entretece”, “estende” e “recama” toda a trama da história por mais de trezentos anos.

Assim, para Oliveira Vianna (1922, p. 282), há várias razões para entender por que os portugueses, povos de pequenos proprietários e pequenos agricultores, fundaram aqui a grande cultura em grande propriedade e não a pequena cultura em pequena propriedade. Em vez de pensar tal fato como estratégia da metrópole para colonizar as terras do Brasil, como faz Varnhagen (1962), Vianna (1922, p. 282) vai buscar suas origens na psicologia social dos colonizadores. Neste sentido, são os particulares que vieram para colônia os responsáveis pelos latifúndios e não a Coroa. Estes particulares não eram “homens do povo” (estes só vieram com o ouro das Gerais), não pertenciam à “plebe insular”, eram “aventureiros à caça de fortuna rápida”, “homens de pequena nobreza e mesmo da grande nobreza, que emigraram para restaurarem [...] o brilho dos seus brazões esmaecidos”. Eram, pois, fidalgos

35

arruinados que vinham para o novo mundo “reconstruir as bases da sua fortuna destruída”.

Diante desses sentimentos aristocráticos, o ambiente colonial se tornou – conforme Vianna (1922, p. 284) – “o menos próprio a instituição da pequena propriedade e da pequena cultura”, pois, enquanto a pequena propriedade denota trabalho familiar, os aventureiros lusos não eram lavradores. Pertencentes a uma sociedade “ainda modelada pela organização feudal”, eles então valorizavam “o serviço das armas” e “as terras lavradas pelos braços dos servos”. Em consequência, eles exploraram a terra mediante o sistema territorial da grande propriedade, porque assim eles poderiam arregimentar mão de obra para suas propriedades rurais fazendo uso do monopólio da terra, em troca da cessão de terrenos para os lavradores cultivarem sua subsistência. É desta forma que o jurista explica a formação do regime dominical da grande propriedade sesmeira, que foi predominante no regime colonial. No entanto, seja como “estratégia da metrópole”, como diz Varnhagen, seja como “imposição da classe dos nobres”, como afirma Oliveira Vianna, seja com a convergência dos interesses da metrópole e da classe dos nobres, a colonização se efetivou por meio da doação de grandes extensões de terra a homens de posses. Daí surgiu a grande concentração de terras sob o controle dos colonos, especialmente no Norte pastoril, com os “imensuráveis latifúndios de Garcia D’Ávila” na bacia do São Francisco. Assim, pode-se dizer que a grande concentração de terras se tornou um dos elementos formadores do sistema de moradores.

Por causa da preferência pela grande propriedade, este sistema se espalhou pelo país. Ao concentrarem as terras em suas mãos, os proprietários forçavam os lavradores a irem trabalhar em seus engenhos e fazendas, e deles cobravam lealdade, foro e renda, estruturando assim as relações de dependência. A presença deste sistema foi marcante principalmente nas áreas em que a escravidão não foi robusta, como no semiárido (nas áreas pastoris)14. Isto não quer dizer que, nas

áreas onde o braço escravo era a força de trabalho dominante, não houvesse

14 As fontes históricas que comprovam que a escravidão dos negros africanos não foi expressiva na

zonas pastoris do Norte são abundantes. Porém, Mott (1985), estribado em duas fontes, defende que, no Piauí, havia mais escravos que homens livres empregados em sua atividade pecuária, contrariando, pois, o que ele chama de historiografia sertaneja. Faltaram-lhe, entretanto, mais evidências para sustentar sua tese polêmica.

36

moradores, ou seja, que moradores e escravos não conviveram numa mesma região econômica: como ocorreu nos engenhos de Pernambuco, cujas casas-grandes e senzalas dividiam espaço com as casas de taipa dos moradores (ver Freyre, 1987).