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Organização patrimonialista do trabalho

Trabalhar e morar nas fazendas, estando próximo do patrão e de sua família, incide especialmente na criação de uma atmosfera de intimidade entre patrão e moradores. Criam-se o vinco doméstico – laços de afeto e de sangue entre ambas as partes. Assim, a confiança pessoal se torna o elemento mais importante dessa relação e a competência profissional fica em segundo plano. Além da troca de favores, a interação entre eles no meio patriarcal se sustenta pela obediência cega e fidelidade política dos moradores para com os patrões. Diferentemente, pois, do que acontece no capitalismo, no qual a relação humana desaparece.

Para o sistema capitalista, é preciso que os laços pessoais entre empregador e empregado se desfaçam e suas relações girem em torno da impessoalidade. Em tal sistema, o que importa é a produção, independemente de quem a realiza. Deste modo, o patrão não se interessa em saber o que seu empregado faz fora do ambiente de trabalho e, mesmo se souber e sendo contrário a tal ato, não poderá puni-lo por isto. Agora, esta situação se configura na separação total entre local de trabalho e moradia. Pois, quando se mantém a moradia, mesmo com o vínculo

34 No naturalismo que lhe é peculiar, Rodolfo Teófilo (1980, p. 72), todavia, defende que essas externas

jornadas resultam da “resistência orgânica” do cearense. Esta resistência vinha da “luta eterna” com as secas. Foi esta resistência que, para Teófilo (1980, p. 73), credenciou o “caboclo cearense” a realizar o povoamento do Amazonas, pois fortaleceu seu organismo, especialmente contra as moléstias da insalubre região, e deixara seu espírito “impregnado de grosseiro fatalismo”, que o fazia não ter medo

das “constantes e numerosas perdas de vida” causadas pelas dificuldades do trabalho de extração do

látex na Floresta Amazônica. Por tudo isso, ele se acomodava facilmente às péssimas condições de trabalho empregadas na agricultura: “Qual o brasileiro que não sendo cearense, trabalha um dia inteiro no campo, tendo tomado como alimento, ao acordar, uma xícara de café com alguns punhados de farinha de mandioca? Qual o sulista que trabalha à chuva horas inteiras, sem abrigar-se? À tarde quando ele volta à casa é que vai almoçar e jantar. E o quê? Apenas feijão e farinha de mandioca. A carne é somente para os domingos”. Expropriados dos meios de produção, os lavradores eram forçados a trabalhar em condições adversas, as quais a lavoura sob o regime paternalista destinava a eles e, assim, não havia “resistência orgânica”, mas a necessidade de se submeter a essas condições, mesmo ganhando pouco e trabalhando muito. Portanto, de acordo com Teófilo, a insuficiência calórica de sua alimentação não o levava à baixa produtividade, como indicavam certos economistas, especialmente Celso Furtado (2014, p. 156).

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monetário ou assalariamento dos moradores, as relações entre patrão e moradores continuam sob o formato patrimonialista.

Sob este formato, o morador é considerado pelo fazendeiro, gerente ou capataz, como uma pessoa total. O que ele faz no exterior da fazenda, o que ele diz na mercearia da vila e com quem ele mantém amizade – tudo isso é levado em consideração pela administração da fazenda. Ele, então, não deve violar as expectativas tradicionais – fazer arruaças na vizinhança, falar mal do patrão e se acompanhar dos inimigos políticos do mesmo. Ele deve ser um “um bom cabra”, porque senão levará uma pisa e poderá ser expulso da propriedade.

Essas relações, de certo modo, encobrem a opressão paternalista. Opressão esta que se escamoteia em favores e concessões dados aos moradores. Essas relações pode-se dizer variaram de fazenda para fazenda e se reproduziram no tempo sem controle por parte do Estado. O patrão decidia tudo a respeito do morador, e este – na maioria das vezes, cônscio de que estava sendo espoliado – devia sujeitar-se ao patrão – compadre e amigo –, porque economicamente dependia dele para alimentar a sua família. Isto fica explícito neste trecho de Os Cassacos, de Luciano Barreira (1992, p. 258-259), no qual demonstra como funcionava esse sistema de dependência:

- Sabem [os moradores] que vou [o patrão, coronel Elpidio] fazer uma coisa boa com vocês, Zuca? [morador]

- Que coisa boa é, coronel? [Zuca, morador]?

- Vou acabar com os dias de “sujeição”, só vou exigir mesmo meia de algodão. É bom, não é?

- Já sabia, tão falano por aí, - Zuca, tímido, olhava para o chão do alpendre, encorajando-se, adiantou – bom para nóis num é não, mais a terra é de vossa mincê, o que nóis pode fazê? Diz que o algodão vai dá muito dinheiro. - Às vezes dá, outras não. Além de tudo, vou ajudar a todos. Arranjo dinheiro e meios para trabalharem. Sei que a seca deixou todo mundo desprevenido. A verdade é que vou ter que cobrar um jurozinho. Quem pode arranjar dinheiro sem juro! Ainda tem uma boa coisa para vocês, compro a meia, nem precisam andar atrás de vender, pago o preço do comércio.

Sem saber porque, ao ouvir aquelas palavras do patrão, Zuca se lembrou de Zé Mundola, daquelas conversas de noite na barraca, no serviço da estrada. Recordava-se de ter o feitor certa vez dito coisa assim: - “os donos de terra estão inventando novas formas de exploração, para apertar os que trabalham na terra, vão se manter cada vez mais ricos, os pobres terão que piorar, ficando cada vez mais pobres...”

- O que você quer levar hoje? [Pergunta o Coronel]

- Deiz quilo de milho e cinco de fêjão, fari’ha, sal e gurdura, se tivé.

- Arranjo tudo, só que hoje, como vai levar nas costas, leva um pouco do que dê para a semana; vou mandar buscar o necessário na cidade. Domingo, que não é dia de trabalho, você vem e leva mais, tá direito?

110 - Quando Zuca voltava para casa, vergado ao peso do volume de três arrobas, já estava meio esquecido das dúvidas que haviam brotado em sua

consciência. Até pensava de modo condescendente – “é isso mermo, o home

ajuda nóis, tem que ajudá, ele tombém o coitado teve munto prejuízo, já imagino o gadão que perdeu...”

O patrão (Coronel Elpidio), assim, troca repentinamente a “sujeição” (os dias de trabalho que os moradores devem ao patrão) pela renda (meia) do algodão sem consultar os moradores. Ele é, pois, a autoridade máxima da fazenda. Em sua fala, ele está apenas comunicando a mudança aos moradores, demonstrando que, em suas relações assimétricas, o morador só tem uma opção: aceitar.

Mesmo assim, Brasil (1926, p. 288) diz que, nas condições de morada, “é fácil prever a harmonia reinante entre patrão e os operarios ou trabalhadores”. Assim, é como se o sistema de moradores estivesse livre dos antagonismos sociais gerados pela relação entre os que detêm os meios de produção e os que não detêm meios de produção, ou entre patrão e trabalhadores. De acordo com o autor (1926, p. 288), a lavoura no Ceará nunca lutou com “paredes” e “outros lastimaveis vicios sociaes”. Porque, primeiro, “não existem rivalidades de classe”, e, em geral, porque “o operario é também agricultor; faz o seu roçado e, portanto, precisa do patrão, isto é, do proprietário das terras, onde mora, onde tem sua lavoura”.

Segundo Brasil (1926), o fato de o morador ser agricultor como seu patrão e de ele precisar do patrão para fazer seu roçado e morar na fazenda impedia a realização de greves e outros vícios sociais. Em outras palavras: obstruía a luta entre capital e trabalho. Apesar de o proprietário de terras ocupar a posição de patrão e o morador ocupar a posição de trabalhador, eles dividiam a mesma categoria profissional (agricultor), e isto, para o autor, era suficiente para suprimir qualquer tipo de antagonismo e conflito que pudessem surgir do relacionamento entre esses indivíduos que ocupavam posições sociais distintas. Além disso, Brasil (1926, p. 288) cita o “parentesco espiritual” como motivo que tornava impraticável o surgimento de interesses antagônicos entre eles:

Frequentemente, o proprietário de terras, agricultor ou fazendeiro (criador) está ligado aos seus moradores por laços de parentesco espiritual: são compadres; os filhos dos moradores são afilhados da casa; mas, esses, por sua vez, constituem família e continuam quasi sempre residindo na mesma propriedade territorial.

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Como então se opor ao seu compadre? Como os moradores podiam lutar com o proprietário das terras onde eles plantavam e moravam com sua família? Como eles podiam exigir melhores salários e menos horas de trabalho para lhes restar tempo para cuidar do seu roçado? As contradições sociais eram, assim, disfarçadas pelo paternalismo. Aos trabalhadores só restava adotar as regras, leis e costumes de tal sistema. Dar o filho para o patrão proteger era uma tentativa para garantir sua continuidade e da família nas terras, isto é, ampliar esta proteção, tornando-a, se possível, vitalícia. Como diz Candido (1951 apud Franco, 1997, p. 84-85): “Os vínculos estabelecidos entre padrinho e afilhado eram tão ou mais fortes que os de consanguinidade”. Então, os agregados e os proprietários buscavam apagar as diferenças sociais entre eles por meio do compadrio. Como afirma Stein (1957 apud Franco, 1997, p. 84): “o compadrio é uma instituição que permite essa aparente quebra das barreiras sociais entre as pessoas por ela ligadas”. E, neste sentido, Franco (1997, p. 100) não hesita em dizer: “O ajustamento entre proprietário e morador baseou-se em uma afirmada cordialidade”35.

Inspirado no determinismo geográfico, Oliveira Vianna (1952, p. 65-66) defende que essa relação amistosa entre as pessoas do campo ocorre devido ao meio rural. Em suas palavras: “O meio rural é, em tôda a parte, um admirável conformador de almas”. Ao contrário dos centros urbanos, onde os quadros sociais são mais instáveis, no meio rural, a estabilidade dos grupos familiares superiores “permite que se forme [...] uma trama de relações também estáveis, permanentes e tradicionais”. E nessa sociedade rarefeita (de círculo vicinal limitado), “todos, por isso, se nomeiam, se cumprimentam e mantêm entre si uma certa comunidade de simpatias e afeições”. Todavia, é preciso criticar esses autores que não permitem que, em suas teorias, haja brechas para a resistência camponesa à dominação tradicional. Pois senão o sistema de moradores vai se manifestar como um sistema perfeito – livre de tensões sociais. Será que “a comunidade de simpatias e afeições”, “o compadrio” (“parentesco espiritual”) e “a harmonia reinante” eram tão efetivos a ponto de evitar os antagonismos entre patrões e moradores? Para perceber as contradições desse

35 Ver sobre o homem cordial Holanda (1995, cap. 5). O historiador deixa bem claro que essa

cordialidade tinha origem em nosso meio rural: “A lhaneza no trato, a hospitalidade, a generosidade, virtudes tão gabadas por estrangeiros que nos visitam, representam, com efeito, um traço definido do caráter brasileiro, na medida, ao menos, em que permanece ativa e fecunda a influência ancestral dos padrões de convívio humano, informados no meio rural e patriarcal” (p. 146-147).

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sistema, faz-se necessário escovar a história a contrapelo e a estar atento a via analítica circunscrita por Lukács (1974, p. 76): “[...] a contradição manifesta-se em a burguesia ser constrangida a tudo tentar, teórica e praticamente, para fazer desaparecer da consciência social o facto da luta de classes”.