3. DIREITO À MORTE DIGNA
4.1 O direito à morte digna e o princípio da autonomia da vontade
A vida é o bem mais precioso que uma pessoa pode possuir, devendo ser preservada
e mantida de forma que possa fornecer felicidade, bem-estar físico e mental. Porém,
ainda que o bem jurídica vida disponha de extensa normatização e atividades
protetoras de maneira ampla, a morte também requer atenção de igual forma.
O princípio da dignidade humana é a base para aplicação dos demais princípios. Por
ser um dos fundamentos da República ele é erigido como valor supremo para a
garantia dos demais princípios como liberdade, igualdade, autonomia da vontade,
personalidade, entre outros.
Sobre o princípio da dignidade da pessoa humana e sua relevância no direito
brasileiro, Anderson Schreiber discorre que:
No Brasil, como em diversos outros países, a dignidade humana assumiu posição de destaque no ordenamento jurídico. Considerada como “princípio fundamental de que todos os demais princípios derivam e que norteia todas as regras jurídicas”, a dignidade humana tem sido o valor-guia de um processo de releitura dos variados setores do direito, que vão abandonando o liberalismo e o materialismo de outrora em favor da recuperação de uma abordagem mais humanista e mais solidária das relações jurídicas (SCHREIBER, 2013, p. 7).
Nesse sentido, a dignidade da pessoa humana visa nortear a aplicação dos demais
princípios bem como dos direitos inerentes a pessoa, rompendo com o individualismo
decorrente do Estado Liberal na tentativa de resgatar a humanidade e a solidariedade
entre os indivíduos e suas relações jurídicas, sendo o próprio fundamento de validade
para interpretação das normas.
Da mesma forma que a dignidade da pessoa humana orienta o exercício do direito à
vida, impedindo violações por parte do Estado e de particulares, tal condição deve ser
aplicada também ao direito de morrer dignamente.
Sendo um momento o qual ninguém está, de fato, preparado, a morte é tratada com
temor por todos. Conforme mencionado nos tópicos anteriores, milhares de pessoas
morrem anualmente em decorrência do suicídio, realizado de maneira dolorosa e
indigna, sendo, muitas vezes, efetuado por meio de ingestão de medicação em
excesso, enforcamento ou tiro desferido por arma de fogo.
Os métodos indignos de suicídio demonstram a prática da autonomia da vontade que
os indivíduos possuem, que, nas palavras de Maria de Fátima Freire de Sá e Diogo
Luna Moureira (2012, p. 145) “considera-se autonomia, ou direito à autonomia, a
capacidade ou aptidão que têm as pessoas de conduzirem suas vidas como melhor
convier ao entendimento de cada uma delas. ”
A autonomia da vontade é uma das formas de exercício do direito à vida, estando em
consonância com a dignidade humana, dessa forma, violar a autonomia da vontade
significa violar também a dignidade humana.
A concepção de morte digna dá-se, principalmente, pela forma indolor de dar fim à
vida. Sendo a morte condição inerente à vida humana, é possível entender que a
dignidade protegida constitucionalmente aplica-se não apenas durante a vida do
indivíduo, mas também, no momento de sua morte.
Alencar Cordeiro Ridolpho e Tauã Lima Verdan Rangel, discorrendo sobre o fim da
vida, afirmam que:
É sabido e esperado que todo ser vivo, uma hora ou outra, tenha suas atividades vitais encerradas, seja de forma natural ou não. Entretanto, especialmente a partir da década de 1994, vem se acalorando no meio científico e jurídico do mundo ocidental a discussão a respeito da possibilidade de se encerrar uma vida, ou de antecipar a morte de um indivíduo que esteja em graves condições de saúde e com o objetivo de colocar fim ao seu sofrimento, ou até mesmo atendendo a própria vontade do indivíduo em colocar fim a sua vida diante de tal situação e garantir-lhe o direito a uma boa morte (RIDOLPHO; RANGEL, 2017).
Ainda que a prática do suicídio seja recorrente na população brasileira, conforme
explanado anteriormente, há fixada na cultura do país a ideia de que o fim da vida
deverá ocorrer de maneira natural, sem a intervenção de terceiros, privando o
indivíduo do exercício de sua autonomia.
Nesse sentido, pode ser entendido como autonomia a liberdade do sujeito em gerir
sua vida da maneira que lhe convém e lhe é digno. Este é o posicionamento de
Maurício Requião:
A autonomia existencial, portanto, se identifica com a liberdade do sujeito em gerir sua vida, sua personalidade, de forma digna. É nesse ponto que se encontram questões delicadas como o uso ativo dos direitos da personalidade e as discussões sobre o direito à morte digna, eutanásia, aborto, pena de morte, manipulação de embriões, direitos pessoais de família, sexualidade e identidade de gênero. (REQUIÃO, 2014).
Ainda neste mesmo sentido, Maria de Fátima Freire de Sá e Diogo Luna Moureira
(2012) reforça o entendimento da preservação da autonomia da vontade do indivíduo,
dispondo que não cabe a ninguém interferir na soberania alheia para tomar decisões,
cabendo a cada pessoa definir o que é melhor para si mesmo, ainda que a decisão
seja considerada imprudente.
Embora a execução da autonomia da vontade seja fundamental para a existência do
indivíduo, a vedação de práticas alternativas para a realização da morte digna é
verificada na legislação vigente, uma vez que o Estado e a sociedade baseiam-se em
uma ótica conservadora e religiosa.
Desta forma, verifica-se que há a tentativa de limitar a prática da autonomia da
vontade do indivíduo, sendo retirada a possibilidade de escolha. Neste sentido, dispõe
Alencar Cordeiro Ridolpho e Tauã Lima Verdan Rangel
Assim, o Estado não teria então o direito de retirar do paciente o direito de morrer quando não mais o convém viver. Este direito é renunciado pela própria vontade e condições do indivíduo, que, apesar de ainda vivo, não o estaria mais se não fosse pelas condições artificiais que o mantém, ou já nem se quer possui condições de interagir com o meio e que se, lúcido estivesse, não aceitaria ser mantido em tais condições e nem submetendo seus familiares a tão doloroso sofrimento, um sofrimento sem esperanças de solução (RIDOLPHO; RANGEL, 2017).
Nesse sentido, a prática do suicídio assistido põe em destaque o exercício do direito
à vida frente a liberdade pessoal e a dignidade humana, sendo o motivo e centro das
discussões sobre o tema. Ressalta-se também que a legislação brasileira não trata de
forma explícita sobre a eutanásia, suicídio assistido ou direito a uma morte digna.
Em relação a eutanásia e a ortotanásia, as práticas configuram crime de homicídio
privilegiado previsto no art. 121, §1º do Código Penal, sendo que a eutanásia se
amolda ao homicídio na sua modalidade comissiva e a ortotanásia na modalidade
omissiva. Já no suicídio assistido, conforme já mencionado, o sujeito ativo pratica o
crime do art. 122 do Código Penal na modalidade auxílio.
Em relação ao consentimento do paciente ou da família para a prática dos atos
mencionados, Luís Roberto Barroso e Letícia de Campos Velho Martel afirmam que:
Nessa interpretação, que corresponde ao conhecimento convencional na matéria, a decisão do paciente ou de sua família de descontinuar um tratamento médico desproporcional, extraordinário ou fútil não alteraria o caráter criminoso da conduta. A existência de consentimento não produziria o efeito jurídico de salvaguardar o médico de uma persecução penal. Em suma: não haveria distinção entre o ato de não tratar um enfermo terminal segundo a sua própria vontade e o ato de intencionalmente abreviar-lhe a vida, também a seu pedido (BARROSO; MARTEL, 2012).
Nesse sentido, o consentimento do paciente, da família ou de seu representante legal
é indiferente para que o suicídio assistido ou a eutanásia configurem crime por parte
do médico que participa de qualquer destes atos, ou seja, existindo ou não
consentimento as práticas serão consideradas crime.
Corroborando o exposto, é assim o entendimento de Mirabete (2003), pois o autor que
tem como intenção aliviar o sofrimento do enfermo incurável pratica o crime de
homicídio na sua forma privilegiada, fazendo jus a causa de diminuição de pena. Para
o Código Penal o homicídio eutanásico é punido, independentemente da existência
de consentimento.
Outra discussão importante volta-se a possibilidade ou não do cometimento de
homicídio quando a morte é obtida através da ortotanásia, em que são suspensos os
meios paliativos que mantém a sobrevida humana.
Nesse sentido, Walter Ceneviva no ano de 1985 já apresentava o entendimento de
que a legislação brasileira estava atrasada ao manter a obrigatoriedade de
manutenção da vida através de soluções paliativas:
As atuais máquinas das unidades de terapia intensiva, que mantém a vida de modo artificial, criaram uma diversa realidade científica, que nada tem a ver com a eutanásia defendida por Sócrates e Platão, criticada por judeus e cristãos. O direito precisa adaptar-se a essa realidade. Precisa encontrar-se com ela, para perceber que os velhos argumentos sobre a eutanásia estão superados, porque estranhos às novas situações. Acham-se desajustados das UTIs com seus técnicos, computadores e cateteres enfiados por todas as artérias dos pacientes. A lei, enquanto direito escrito, está atrasada. Vem a reboque da ciência. Haverá um momento em que a legislação terá de atribuir a alguém (ao cônjuge, ao filho mais velho, ao irmão) o direito e a autoridade de mandar desligar as máquinas (CENEVIVA, 1985, p. 63).
A Resolução 1.805 de 2006, do Conselho Federal de Medicina, procurou de certa
forma, autorizar a ortotanásia e afastar a imposição de sanções penais ao
profissional da medicina nas hipóteses em que há autorização do paciente ou de
seus familiares, fundamentado na exposição de motivos que:
Na fase terminal de enfermidades graves e incuráveis é permitido ao médico limitar ou suspender procedimentos e tratamentos que prolonguem a vida do doente, garantindo-lhe os cuidados necessários para aliviar os sintomas que levam ao sofrimento, na perspectiva de uma assistência integral, respeitada a vontade do paciente ou de seu representante legal (CFM, 2006).
Para Luís Roberto Barroso e Letícia de Campos Velho Martel (2012), o direito à vida
é cultuado como um direito fundamental absoluto, representando o principal
argumento para justificar a impossibilidade de qualquer hipótese de morte com
intervenção, baseando-se principalmente em doutrinas de cunho moral e eminente
caráter religioso que interferem no campo jurídico.
Inclusive este foi um dos argumentos apresentados pelo Ministério Público Federal
para contestar em ação civil pública a Resolução nº 1.805 de 2006 do Conselho
Federal de Medicina. Na petição inicial, o fundamento principal foi de que a ortotanásia
seria uma espécie de homicídio velado que violava frontalmente a Constituição
Federal, pois a vida é um bem jurídico que não pertence ao homem, não cabendo a
ele, portanto, dispor de algo que não lhe pertence. Dessa forma, o juiz de primeiro
grau concedeu a tutela antecipada suspendendo a aplicação da Resolução,
reconhecendo a existência de conflito entre esta e o Código Penal, porém em 2010 a
norma foi julgada legal.
Nesse sentido, para Luís Roberto Barroso e Letícia de Campos Velho Martel (2012) a
judicialização da vida no direito brasileiro demonstra dois modelos de concepção
sobre a interrupção da morte, um de índole paternalista, que desconsidera totalmente
a vontade do enfermo e de seus familiares, obrigando a manutenção da vida a
qualquer custo e outro baseado na deontologia médica, que pretende valorizar a
autonomia do paciente e o diálogo, pois a cura envolve também o cuidado e amparo
dos doentes em fase terminal.
Dessa forma, para àqueles de defendem a manutenção da vida, mesmo que essa seja
motivo de grande sofrimento para o indivíduo, entendem que se trata de um bem
jurídico supremo aos demais, e por isso não é possível sua disposição por vontade
própria.
De acordo com Peter Admiraal (2003) legalizar a eutanásia ou suicídio assistido
significa viabilizar a prática do genocídio, semelhante ao ocorrido durante o regime
nazista.
Este argumento torna-se questionável, pois o genocídio está relacionado ao
extermínio de grupos específicos em razão de diferenças étnicas, nacionais, religiosas
e raciais, sendo que no regime totalitarista do nazismo o objetivo era estabelecer uma
única raça considerada superior as demais, não havendo qualquer voluntariedade das
vítimas, ao contrário do que ocorre no suicídio assistido.
De acordo com Plínio Pacheco C. de Oliveira (2008), outro argumento apresentado
contra o direito a uma morte digna reside no fato da possibilidade de ocorrer a morte
de pessoas com reais chances de cura ou melhora da doença diante de um
diagnóstico errôneo, havendo casos em que não seria possível identificar a
irreversibilidade do quadro.
Conforme o autor, o argumento é enfraquecido, pois a medicina possui rígidos
procedimentos para confirmar uma situação de irreversibilidade ou de estado terminal
e caso exista dúvida não há porque empregar qualquer técnica para interromper a
vida.
Ainda conforme Plínio Pacheco C. de Oliveira (2008), outra posição contrária a
legalização da antecipação da morte através do suicídio assistido seria a possibilidade
de ocorrer a morte de pessoas que não possuem realmente esse desejo, devido a
pressões externas, como por exemplo o custeio de tratamentos médicos caros.
Sob este ponto de vista o enfermo se sentiria obrigado a consentir com o suicídio
assistido ou eutanásia visando desonerar familiares dos cuidados decorrentes da
doença ou do custo de tratamentos médicos.
Para Ronald Dworking (2003) o consentimento do paciente e o desejo de abreviar sua
vida poderão estar comprometidos em razão da ignorância sobre os próprios
interesses, justamente em razão da enfermidade que o ataca.
De acordo com Plínio Pacheco C. de Oliveira (2008) este argumento também é
insuficiente para proibição da eutanásia e do suicídio assistido por se basear em
razões paternalistas, como se terceiros soubessem o que é melhor para aquele que
apresenta intenso sofrimento, retirando sua capacidade de decisão.
Superados os argumentos negativos, passa-se a analisar as opiniões favoráveis a
abreviação da vida quando esta não se torna mais viável. As principais bases dos
argumentos favoráveis estão relacionadas a dignidade humana e ao exercício da
autonomia da vontade.
De forma positiva, Ronald Dworkin (1993) entende que:
“Podem, plausivelmente, acreditar que prolongar a vida de uma pessoa muito doente, ou que já perdeu a consciência, em nada contribui para concretizar a maravilha natural da vida humana e que os objetivos da natureza não são atendidos quando artefatos de plástico, a sucção inspiratória e a química mantém o coração batendo em um corpo inerte e sem mente, um coração que a própria natureza já teria feito calar-se.” (DWORKING, 1993, p. 304).