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III. DIREITO E CAPITALISMO NA SOCIEDADE INTERNACIONAL

2. O direito internacional

Os exemplos históricos aduzidos em qualquer livro didático de direito internacional proclamam clamorosamente que o moderno

direito internacional é a forma jurídica da luta entre os Estados capitalistas entre si pela dominação sobre o resto do mundo.

Contudo, os juristas burgueses tentam o quanto possível silenciar este fato básico da luta competitiva intensificada, e afirmar que a

79 No idioma francês: “Le droit de grève est un droit bourgeois. Entendons-nous: je ne dis pas la grève est

bourgeoise, ce qui serait un non-sens, mais le droit de grève est un droit bourgeois. Ce qui veut dire très précisément que la grève n’accède à la légalité qu’à certaines conditions, et que ces conditions sont celles-là mêmes qui permettent la reproduction du Capital”.

152 tarefa do direito internacional é “fazer possível para cada Estado o que nenhum poderia fazer em isolamento, por meios de cooperação entre muitos Estados80” (PACHUKANIS81, 1980, p. 169).

A definição de Pachukanis para o direito internacional destoa fortemente da tradição jurídica dogmática, que trabalha apenas com idealizações carregadas de “robinsonadas”, eivadas de individualismo metodológico. De fato, o jurista comum enxerga o direito internacional com as mesmas lentes que enxerga a ordem jurídica nacionalmente posta, chegando a resultados igualmente falhos.

O que pensa a consciência jurídica mais difundida sobre o direito em geral? Anteriormente, mencionamos que o mote usual dos juristas é “ubi societas, ibi ius”, por meio do qual eles eternizam e naturalizam a forma jurídica. E eles assim agem com toda a naturalidade. Maria Helena Diniz representa perfeitamente a dogmática jurídica quando extrai o direito da mera convivência entre pessoas:

Como o ser humano encontra-se em estado convivencial, é levado a interagir; assim sendo, acha-se sob a influência de alguns homens e está sempre influenciando outros. E como toda interação perturba os indivíduos em comunicação recíproca, para que a sociedade possa conservar-se é preciso delimitar a atividade das pessoas que a compõem, mediante normas jurídicas (DINIZ, 2009, p. 243).

Os homens, sendo seres gregários, devem aprender a viverem em bando, o que os obriga a gerarem normas de coexistência, sem as quais a vida comunitária degeneraria para o caos. Eis a substância de todas as doutrinas jurídicas tradicionais, e sempre chegaremos a ela, cedo ou tarde, se as revirarmos bem. Elas não nos dizem nada além disto, e há de se convir que este raciocínio se mostra singelo demais para aclarar o fenômeno jurídico.

E não contentes com o simplismo em que incorrem para explicar as ordens jurídicas nacionais, os juristas estenderão as suas premissas, e sem qualquer receio, à seara internacional:

80 Na versão em inglês: “The historical examples adduced in any textbook of international law loudly

proclaim that modern international law is the legal form of the struggle of the capitalist states among

themselves for domination over the rest of the world. However, bourgeois jurists try, as much as possible, to

silence this basic fact of intensified competitive struggle, and to affirm that the task of international law is ‘to make possible for each state what none could do in isolation, by means of co-operation between many states’”.

81 Aproveitamos para informar que, não obstante o vocábulo “Pachukanis” ter sido recepcionado pela língua

inglesa com “sh” (“Pashukanis”), manteremos a escrita com “ch”, tal como consta na edição brasileira que utilizamos, para fins de uniformização do texto.

153 O agrupamento de seres humanos pelas várias regiões do planeta fomentou a criação de blocos de indivíduos com características (sociais, culturais, religiosas, políticas etc.) em quase tudo comuns. Desse agrupamento humano (cuja origem primitiva é a família) nasce sempre uma comunidade ligada por um laço espontâneo e subjetivo de identidade. Na medida em que essa dada comunidade humana (assim como tudo o que caracterizava a vida na polis, no sentido aristotélico) passa a ultrapassar os impedimentos físicos que o planeta lhe impõe (montanhas, florestas, desertos, mares etc.) e a descobrir que existem outras comunidades espalhadas pelos quatro cantos da Terra, surge a necessidade de

coexistência entre elas. [...]

O Direito, entretanto, em decorrência de sua evolução, passa a não mais se contentar em reger situações limitadas às fronteiras territoriais da sociedade que, modernamente, é representada pela figura do Estado. Assim como as comunidades de indivíduos não são iguais, o mesmo acontece com os Estados, cujas características variam segundo vários fatores (econômicos, sociais, políticos, culturais, comerciais, religiosos, geográficos etc.). À medida que estes se multiplicam e na medida em que crescem os intercâmbios internacionais, nos mais variados setores da vida humana, o Direito transcende os limites territoriais da soberania estatal rumo à criação de um sistema de normas jurídicas capaz de coordenar vários interesses estatais simultâneos, de forma a poderem os Estados, em seu conjunto, alcançar suas finalidades e interesses recíprocos (MAZZUOLI, 2011, p. 43-44).

Rigorosamente falando, é inegável que os juristas concebem uma homogeneidade nas relações humanas, como se as diferenças decorressem das “proporções”: na obra cujo excerto foi trazido a lume, os agrupamentos humanos distinguem-se somente por suas dimensões; entre a família e a constelação de Estados, não haveria senão diferenças de grau sob um único eixo: a vocação gregária do homo sapiens. Tampouco há, nesta óptica, qualquer qualificativo histórico, imperando a linearidade de um crescimento constante, em volume, do intercâmbio entre as comunidades, que rumariam invariavelmente para um estágio mais elevado de complexidade – o Estado moderno.

Atente-se que, ao esticarem acriticamente uma concepção já equivocada sobre o direito nacionalmente organizado, os doutrinadores do ramo internacional reproduzirão o engano em proporções colossais. Eles querem levar a crer, resumidamente, que da mesma forma que os indivíduos, em suas comunidades locais, precisariam de um direito para se suportar uns aos outros, os Estados demandariam o mesmo remédio para os males de sua convivência – Mazzuoli (2011, p. 43) chega a mencionar uma “relação de suportabilidade” entre os povos. É como se entre as regras costumeiras que disciplinavam as obrigações comuns no seio de uma associação gentílica (ou mesmo “um passo adiante”, como polis) e

154 os tratados entre os Estados nacionais houvesse não só uma correlação, mas uma continuidade espontânea e bastante natural.

É indiferente ao dogmatismo jurídico a distinção qualitativa entre o liame que une membros de uma comunidade primitiva e o elo que põe em contato as organizações estatais na era capitalista. A história real desaparece na vagueza de uma tolerância com o diferente, esta vala comum e banal desprovida de cientificidade, incapaz de revolver as minudências de cada formação social. Os agentes situados na extremidade das relações ditas internacionais (na abusiva amplitude empregada por autores como Mazzuoli) são secundários para a doutrina, ignorando-se que entre o sistema gentílico e o sistema estatal (ou interestatal) há não um hiato, mas um verdadeiro abismo histórico: não só como distanciamento cronológico, mas principalmente como uma separação categorial que responde a realidades materiais incomunicáveis. É de todo inviável colacionar o Estado capitalista, fruto de um arcabouço mercantil-capitalista, de uma cisão de classes determinada, de uma divisão do trabalho determinada, com a estrutura rudimentar da polis grega e conjecturar um prolongamento do “direito” de uma formação social a outra.

Entretanto, é certo que a pena dos juristas tradicionais nem sempre incorre em erro, dado que ela não deixa de aludir a elementos da realidade, ainda que os capte de modo isolado e distorcido – insistamos que quem percorre o plano da aparência não se situa fora do mundo real, apenas se detém na superfície. Fosse de outra maneira, Marx jamais teria partido dos conceitos da economia clássica de Adam Smith e David Ricardo. Analogamente, Pachukanis alertou para o perigo de se desprezar as elaborações dos juristas burgueses, destacando o caráter imanente da crítica marxista no seu proceder dialético, e é este o roteiro que desejamos cumprir82.

“Escovando a contrapelo”, como diria Walter Benjamin, a narrativa jurídica tradicional83, Pachukanis postula que o direito internacional se faz na luta entre os Estados capitalistas pela dominação mundial, consistindo no revestimento jurídico que cabe a este antagonismo – tal como citamos na epígrafe deste item. Tanto quanto o direito em geral, o

82 “Pode-se concordar com Karner (isto é, Renner) quando ele diz que onde acaba a jurisprudência aí começa

a ciência do direito. Mas isso não implica que a ciência do direito deva simplesmente lançar fora as abstrações fundamentais que exprimem a essência teórica da forma jurídica” (PACHUKANIS, 1988, p. 17).

83 Assinalamos um autor contemporâneo, Valerio de Oliveira Mazzuoli, como representante da tradição

dogmática. Contudo, sua teoria remonta a autores clássicos dos séculos XVII e XVIII, e que foram considerados nos estudos pachukanianos.

155 direito internacional é originário do capitalismo – de uma etapa particular do capitalismo, diríamos. É necessário identificar como se forjou a subjetividade jurídica em nível mundial e como a forma do direito, enredando o mundo todo, se articula com os conteúdos do modo de produção burguês.

A existência de regras de “convivência” nunca foi critério suficiente, numa perspectiva pachukaniana, para se aferir a presença do direito nas sociedades. O que decide a juridicidade das normas, lembremos, é o sujeito de direito a que ela se reporta. Logo, antes de caracterizar como jurídica toda e qualquer interação entre povos (ou entre os poderes que os organizam), é fundamental verificar a ocorrência ou não de uma subjetividade jurídica internacional.

Pachukanis nos traz, de chofre, um corte histórico e metodológico: o sujeito de direito internacional é o Estado capitalista. Tal postulado comporta consequências de grande magnitude, e daremos enfoque a duas delas. Primeiramente, conclui-se que as formas políticas anteriores ao capitalismo não estavam aptas para gerar direito internacional, fazendo deste um atributo exclusivo das relações burguesas de produção. Segundamente, infere-se que a forma jurídica internacional depende da formação de Estados burgueses que travem relações jurídicas entre si generalizadamente, sendo que um punhado de países sob a égide do modo capitalista de produção não bastaria para o perfazimento de um direito internacionalizado. Deixaremos mais para o final desta parte este aspecto mais histórico, focando-nos, previamente, nas linhas gerais da forma jurídica mundialmente dimensionada.

Tal como sucede nacionalmente, o direito internacional é marcado pela oposição de sujeitos movidos por seu próprio proveito, por agentes privados e egoísticos que primam pelo utilitarismo nas relações internacionais. Divergindo do revisionista Karl Renner, para quem o direito internacional celebraria a causa comum dos Estados, Pachukanis (1980, p. 170) elucida o sentido factual das interações jurídicas entre os entes estatais:

Ao contrário, podemos ver que mesmo aqueles acordos entre Estados capitalistas que parecem ser direcionados ao interesse geral são, de fato, para cada participante um meio para protegerem zelosamente seus interesses particulares, evitando a expansão da influência de seus rivais, frustrarem a conquista

156 unilateral, i.e., continuando noutra forma a mesma luta que existirá enquanto existir a competição capitalista84.

Reproduzindo a lógica interna da forma jurídica geral, o direito internacional esteia os Estados com a consistência de sujeitos proprietários, voltados para si, analogamente ao proprietário de mercadorias no mercado, adquirindo este perfil pela dinâmica das relações individualistas no sistema internacional. “Estados soberanos coexistem e são contrapostos uns aos outros exatamente da mesma maneira em que o são os proprietários individuais com direitos iguais”, arrazoa Pachukanis (1980, p. 176), adicionando que “cada Estado pode dispor ‘livremente’ de sua própria propriedade, mas pode ganhar acesso à propriedade de outro Estado apenas por meio de um contrato sobre a base de compensação: do ut des85”.

Esta “base de compensação” inscrita no do ut des (“dou para que dês”) revela a presença dos princípios mercantis da equivalência e do utilitarismo – os mesmos princípios que animam a subjetividade jurídica – no Estado situado internacionalmente. “Dou para que dês” (ou ainda, “dou na medida em que dês”) é uma fórmula consagrada pela doutrina jurídica, inclusive pelos estudiosos do direito privado, e que traduz as noções de onerosidade, bilateralidade e reciprocidade, as quais são tributárias da prática celular da compra e venda no mercado: nas relações mercantis, nada se faz a título gratuito, nenhum movimento se opera sem uma contrapartida equivalente. O direito é um jogo de prestações e contraprestações, sendo este um dos selos identificadores do fenômeno jurídico.

Para que se jogue o mencionado jogo de prestações e contraprestações, os Estados devem confrontar-se na arena internacional como “proprietários” que reinam nos seus domínios, mas que, com relação aos domínios alheios, mostram algum respeito aos seus pares, reconhecendo-os também como proprietários. No caso do Estado com vistas ao espaço internacional, a “propriedade” de que ele é investido é, na verdade, a moderna soberania.

84 No idioma britânico: “Conversely, we can see that even those agreements between capitalist states which

appear to be directed to the general interest are, in fact, for each of the participants a means for jealously protecting their particular interests, preventing the expansion of their rivals' influence, thwarting unilateral conquest, i.e. in another form continuing the same struggle which will exist for as long as capitalist competition exists.

85 No original: “Sovereign states co-exist and are counterposed to one another in exactly the same way as are

individual property owners with equal rights. Each state may "freely" dispose of its own property, but it can gain access to another state's property only by means of a contract on the basis of compensation: do ut des”.

157 A similaridade é translúcida: para ser sujeito de direito, o indivíduo deve ser proprietário de si mesmo, não pode ser escravo (que é objeto de propriedade de outrem); por igual juízo, o Estado é soberano ao ser “proprietário” de si mesmo, ou seja, é formalmente independente, não responde a nenhum poder que lhe seja juridicamente superior. Se o indivíduo proprietário é rei dentro de seu domínio privado, cabendo aos demais respeitá-lo como tal, o Estado é a potestade máxima no seu território e perante a sua população, e nenhum outro ente estatal pode afrontar legitimamente a sua soberania. Uma formação política colonial, assim, não goza do estatuto jurídico estatal, ela é um objeto de direito nas relações jurídicas internacionais sobre o qual incidirão pretensões soberanas.

Como poderes soberanos organizados, os Estados exercem sua soberania dispondo sobre o poder de que são portadores sob a crosta do consentimento, do acordo de vontades, espelhando-se nos contratos privados. Os pactos ou tratados celebrados não diferem substancialmente dos contratos entre particulares, nos quais a desigualdade material dos contratantes é encoberta por sua igualdade jurídica. A maioria dos tratados formaliza correlações de força econômica e política favoráveis a certos signatários e desfavoráveis a outros, mas jamais ocorreria aos doutrinadores do direito cogitar aí qualquer malícia, qualquer indício de subjugação – e pelo mesmo motivo que o elo contratual entre capital e trabalho não lhes causa qualquer incômodo, antes os convida a festejarem a “livre vontade” e a igualdade. José Francisco Rezek (2011, p. 27), a título ilustrativo, simboliza uma legião de juristas ao advogar que “o direito internacional público – ou direito das gentes, no sentido de direito das nações ou dos povos – repousa sobre o consentimento”. Leia-se: o “consentimento” entre vencedor (a burguesia imperialista e suas sócias menores) e vencido (o proletariado mundial), no qual o prostrado formaliza e ratifica, representado pela burguesia localmente instalada, as correntes que o aprisionam por meio de pactos muito civilizados.

Até aqui, tudo corre muito bem na construção teórica, pois os Estados, nas relações jurídicas cotidianas, comportam-se como sujeitos privados. A dificuldade vem agora: sendo eles entidades que funcionam, internacionalmente, como entidades privadas, qual seria o poder coercitivo externo a eles que cumpriria o papel de juiz, tal como ocorre no interior das jurisdições nacionais? Sabemos a resposta: esta figura não existe, jamais existiu e nada

158 indica que ela venha a ter lugar no mundo. A forma política estatal é marcada pela pluralidade competitiva, a qual exclui uma unidade política e jurisdicional para todo o orbe.

Na ausência de um poder supraestatal, superior aos Estados soberanos, a colisão de pretensões entre eles carece de um terceiro supostamente desinteressado, de um árbitro equidistante às partes. Cada um luta por seus interesses com suas próprias forças e recursos, realizando uma autotutela de suas aspirações; cada um é juiz e executor das próprias causas – o que, de imediato, provoca estranheza quando se medita sobre a igualdade entre os sujeitos jurídicos. Estaríamos, então, diante de uma limitação para a teoria de Pachukanis sobre o direito, que seria inaplicável ao âmbito internacional? Ou, diversamente, acolhendo-se a validade das teses do jurista russo: o conceito de direito internacional seria, então, uma impossibilidade teórica?

Nem uma coisa, nem outra. A prudência aconselha que observemos o pensamento de Pachukanis com mais esmero, e por isso traremos alguns excertos à baila, acareando ponderações sobre a forma jurídica em abstrato e sobre a forma jurídica internacional. Em sua teoria geral, o marxista soviético pronunciou-se do seguinte modo:

Na medida em que a sociedade representa um mercado, a máquina do Estado estabelece-se, com efeito, como a vontade geral, impessoal, como a autoridade do direito etc. No mercado, como já foi visto, cada consumidor e cada vendedor é um sujeito jurídico por excelência. Nesse momento, quando entram em cena as categorias do valor, e do valor de troca, a vontade autônoma dos que trocam impõe-se como condição indispensável. O valor de troca deixa de ser valor de troca, a mercadoria deixa de ser mercadoria quando as proporções da troca são determinadas por uma autoridade situada fora das leis inerentes ao mercado. A coação, enquanto imposição fundamentada na violência colocando um indivíduo contra o outro, contradiz as premissas fundamentais das relações entre os proprietários de mercadorias. É por isso que numa sociedade de proprietários de mercadorias e dentro dos limites do ato de troca, a função de coação não pode aparecer como uma função social, visto que ela não é abstrata e impessoal. A subordinação a um homem como tal, enquanto indivíduo concreto, significa na sociedade de produção mercantil a subordinação a um arbítrio, uma vez que equivale à subordinação de um proprietário de mercadorias perante outro (PACHUKANIS, 1988, p. 97-98).

Na primeira impressão, é de se crer que a posição de Pachukanis sobre a forma jurídica internacional não se sustenta, contrariando os fundamentos da forma jurídica geral. Invocando a passagem destacada, China Miéville (2005, p. 126), autor marxista, acusa o

159 jurista soviético de um “formalismo excessivo” que o teria levado a “negligenciar a ‘suculência’ das contradições dialéticas inerentes a categorias aparentemente estáveis86”.

Miéville procura, em sua principal obra, fazer uma “correção” em Pachukanis; apresentando suas objeções ao marxista russo nos marcos de uma concordância com o cerne da proposta pachukaniana, o marxista inglês desloca a coerção “para dentro” da forma mercadoria, opondo-se ao modelo da violência externa como tutora:

Eu tenho argumentado que, ao contrário de algumas posições de Pachukanis, disputa e contestação são intrínsecas à mercadoria, no fato de que sua propriedade privada implica a exclusão de outros. Similarmente, a violência – coerção – está no coração da forma mercadoria e, portanto, do contrato. Para que uma mercadoria seja significativamente ‘minha-não-sua’ – o que é, em último grau, central para o fato de que é uma mercadoria para ser trocada – algumas capacidades enérgicas estão subentendidas. Se não houvesse nada para defender o seu ‘pertencimento a mim’, não haveria nada para detê-la de se tornar ‘sua’, e então ela não seria mais uma mercadoria, como eu não a estaria trocando. A coerção está implícita87 (MIÉVILLE, 2005, p. 126).

As implicações deste posicionamento não são pequenas. O que China Miéville nos sugere é que a forma jurídica, ao atingir a cena internacional, ganha contornos muito distintos, os quais se estabelecem sobre a violência direta entre os sujeitos de direito, e que corresponderia a uma autotutela dos sujeitos, na qual haveria uma função simultaneamente política e econômica – o que sucede em paralelo ao papel garantidor do Estado nas relações capitalistas nacionais, em que prevalece a separação das funções. “Esta é, então”, na opinião do jurista invocado sobre o direito internacional, “uma manifestação do colapso da

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