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O Direito Processual Coletivo como subsistema constitucional

1.1. Estado Democrático de Direito e acesso à justiça

A Constituição Federal do Brasil, de 1988, apesar de muito criticada pela quantidade de artigos e emendas, é um diploma legislativo digno de aplausos porque cuidou de estabelecer os princípios fundamentais de nosso país (a

soberania, a cidadania, a dignidade da pessoa humana, os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa e o pluralismo político – art. 1º) bem como as garantias e direitos fundamentais individuais e coletivos (art. 5º).

Os princípios fundamentais sobre os quais a democracia brasileira se apóia, por seu turno, servem de base para todos os demais direitos e garantias, bem como para todos os deveres, previstos na Constituição Federal.

A soberania “é a qualidade que cerca o poder do Estado”23. “É a capacidade de editar suas próprias normas, sua própria ordem jurídica (a começar pela Lei Magna), de tal modo que qualquer regra heterônoma só possa valer nos casos e nos termos admitidos pela própria Constituição”24.

A cidadania, caracterizada pela participação política dos indivíduos nas atividades do Estado e em outras que envolvam o interesse público, “deflui do próprio princípio do Estado Democrático de Direito”25.

A dignidade da pessoa humana “coloca a pessoa como fim último de nossa sociedade e não como simples meio para alcançar certos objetivos”26.

23 O que significa “que dentro do nosso território não se admitirá força outra que não a dos poderes juridicamente

constituídos, não podendo qualquer agente estranho à Nação intervir nos seus negócios” (Celso Ribeiro Bastos,

Curso de direito constitucional, p. 158).

24 Alexandre de Moraes, Direito constitucional, p. 16.

25 Celso Ribeiro Bastos, Curso de direito constitucional, p. 158. 26 Ibid, p. 159.

“Esse fundamento funciona como princípio maior para a interpretação de todos os direitos e garantias conferidos às pessoas no texto constitucional”27.

Os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa cuidam do reconhecimento do trabalho humano e do incentivo ao empreendedor, considerando a importância disso não só para as próprias pessoas e suas respectivas famílias como também para a economia do país.

E, ainda, o pluralismo político28, que vem ao encontro da democracia, permitindo que a multiplicidade de partidos e idéias próprias oponha-se a outras concepções e ao controle do próprio Estado.

Nem é preciso dizer que a República Federativa do Brasil ainda se firma na repartição dos Poderes, independentes e harmônicos entre si.

É no capítulo que cuida dos direitos e deveres individuais e coletivos que vamos encontrar garantias como a da igualdade (art. 5º, I), da defesa dos consumidores (art. 5º, XXXII), de obter informações, tanto de interesse individual como coletivo (art. 5º, XXXIII), do acesso à justiça (art. 5º, XXXV),

27 Luiz Antonio Rizzatto Nunes, Comentários ao código de defesa do consumidor – direito material, p. 16.

“A dignidade é um valor espiritual e moral inerente à pessoa, que se manifesta singularmente na autodeterminação consciente e responsável da própria vida e que traz consigo a pretensão ao respeito por parte das demais pessoas, constituindo-se um mínimo invulnerável que todo estatuto jurídico deve assegurar, de modo que, somente excepcionalmente, possam ser feitas limitações ao exercício dos direitos fundamentais, mas sempre sem menosprezar a necessária estima que merecem todas as pessoas enquanto seres humanos” (Alexandre de

Moraes, Direito constitucional, p. 16).

28 “(...): demonstra a preocupação do legislador constituinte em afirmar-se a ampla e livre participação popular

nos destinos políticos do País, garantindo a liberdade de convicção filosófica e política e, também, a possibilidade de organização e participação em partidos políticos” (Alexandre de Moraes, Direito

do respeito ao direito adquirido, ao ato jurídico perfeito e à coisa julgada (art. 5º, XXXVI), da proibição dos tribunais de exceção (art. 5º, XXVII), do juiz natural (art. 5º, LIII), do devido processo legal (art. 5º, LIV), do contraditório e da ampla defesa (art. 5º, LV), da inadmissibilidade de utilização de provas ilícitas no processo (art. 5º, LVI), da presunção de inocência até decisão condenatória com trânsito em julgado (art. 5º, LVII), da publicidade dos atos processuais (art. 5º, LX), do habeas corpus (art. 5º, LXVIII), do mandado de segurança (art. 5º, LXIX), do mandado de segurança coletivo (art. 5º, LXX), do mandado de injunção (art. 5º, LXXI), do habeas data (art. 5º, LXXII), da ação popular (art. 5º, LXXIII), da assistência jurídica gratuita (art. 5º, LXXIV), da indenização por erro judiciário (art. 5º, LXXV), etc., sem pretensão de esgotar.

Com essas garantias, os indivíduos, bem como toda a coletividade, gozam dos mais amplos direitos e deveres constitucionais que irão refletir os direitos e deveres previstos nas leis infraconstitucionais.

A garantia da igualdade, v.g., está expressa no código de processo civil, que, em seu art. 125, inciso I, determina que o juiz dê tratamento igual para as partes; da mesma forma, esse diploma legislativo não admite regras diferenciadas para as partes, que, em princípio29, terão os mesmos direitos e deveres processuais.

29 Dissemos “em princípio” pois há regras que são diferenciadoras, v.g., os prazos em quádruplo para contestar e

em dobro para recorrer quando a parte for o Ministério Público ou a Fazenda Pública (art. 188), os prazos em dobro para contestar, recorrer e falar nos autos, quando os litisconsortes tiverem diferentes procuradores (art. 191), a dispensa de preparo quando o recurso for interposto pelo Ministério Público, pela União, pelos Estados, pelos Municípios e pelas Autarquias (art. 511, § 1º). De qualquer modo, essas prerrogativas não ferem a garantia da igualdade já que, ao contrário, consideram as desigualdades, a fim de que seja buscada uma igualdade real, que possibilite tratamento igual para os iguais e desigual para os desiguais.

A defesa dos consumidores está magnificamente regulamentada no código brasileiro de defesa do consumidor (Lei 8.078/90), objeto de estudo neste trabalho.

O direito de ser informado vem consagrado como princípio em diversos diplomas legislativos, merecendo destaque o próprio código de defesa do consumidor, a lei da política nacional do meio ambiente, a lei da ação civil pública30.

A garantia do acesso à justiça, ponto que queríamos alcançar, pela importância e desdobramentos que apresenta, não se limita ao acesso amplo e irrestrito de todas as pessoas à tutela jurisdicional; é isso e muito mais.

É claro que o legislador constituinte, ao prever que nenhuma lei poderá excluir da apreciação do Poder Judiciário qualquer lesão ou simples ameaça a direito, seja ele individual, seja ele coletivo, foi bem claro na amplitude dessa

30 No código de defesa do consumidor (Lei 8.078/90), podemos destacar o inciso IV, do art. 4º, que prevê como

princípio da política nacional das relações de consumo: “IV – educação e informação de fornecedores e

consumidores, quanto aos seus direitos e deveres, com vistas à melhoria do mercado de consumo” e o inciso III, do art. 6º, que, ao tratar dos direitos básicos do consumidor, dita como um desses direitos: “III – a informação

adequada e clara sobre os diferentes produtos e serviços, com especificação correta de quantidade, características, composição, qualidade e preço, bem como sobre os riscos que apresentem”. Na lei de política nacional do meio ambiente (Lei 6.938/81), de acordo com Celso Antonio Pacheco Fiorillo, em Curso de direito

ambiental brasileiro, p. 38, “a informação ambiental encontra respaldo legal nos arts. 6º, § 3º, e 10 da política

nacional do meio ambiente”. O teor do § 3º, do art. 6º é: “§ 3º Os órgãos central, setoriais, seccionais e locais

mencionados neste artigo deverão fornecer os resultados das análises efetuadas e sua fundamentação, quando solicitados por pessoa legitimamente interessada” e do artigo 10 é: “Art. 10. A construção, instalação,

ampliação e funcionamento de estabelecimentos e atividades utilizadoras de recursos ambientais, considerados efetiva e potencialmente poluidores, bem como os capazes, sob qualquer forma, de causar degradação ambiental, dependerão de prévio licenciamento de órgão estadual competente, integrante do Sistema Nacional do Meio Ambiente – SISNAMA, e do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis – IBAMA, em caráter supletivo, sem prejuízo de outras licenças exigíveis”. Na lei da ação civil pública (Lei 7.347/85), estabelece o Art. 6º que “qualquer pessoa poderá e o servidor público deverá provocar a iniciativa

do Ministério Público, ministrando-lhe informações sobre fatos que constituam objeto da ação civil e indicando- lhe os elementos de convicção”, o Art. 8º, “para instruir a inicial, o interessado poderá requerer às autoridades

competentes as certidões e informações que julgar necessárias, a serem fornecidas no prazo de 15(quinze) diase o seu § 1º, “o Ministério Público poderá instaurar, sob sua presidência, inquérito civil, ou requisitar, de

garantia; no entanto, ela sofre desdobramentos e acaba tendo um conteúdo digno de Estado Democrático de Direito.

Cândido Rangel Dinamarco, Ada Pellegrini Grinover e Antônio

Carlos de Araújo Cintra31, ao descreverem a preocupação com o acesso à

justiça, explicam que a garantia se perfaz quando e se houver acesso a uma ordem jurídica justa.

O acesso a essa ordem jurídica justa não pode ser constatado pela simples provocação ao órgão do Poder Judiciário; aliás, antes mesmo dessa promoção, ergue-se uma série de obstáculos a transpor.

Superados os primeiros obstáculos e provocada a função jurisdicional, haverá todo um caminho a percorrer, incluindo o procedimento que se deverá cumprir com a observância de princípios, garantias e normas de natureza processual e constitucional, aí incluída, por óbvia, a garantia do devido processo legal.

Ao final da atividade jurisdicional, ainda que interrompida precocemente por qualquer dos motivos arrolados na lei, poder-se-ão constatar a obediência e o acesso a uma ordem jurídica realmente justa.

A inobservância, inclusive, poderá acarretar a anulação da decisão e até de todos os atos praticados para chegar a ela.

qualquer organismo público ou particular, certidões, informações, exames ou perícias, no prazo que assinalar, o qual não poderá ser inferior a 10(dez) dias úteis”.

Mas o destaque que se quer dar e que tem relevância para o trabalho diz respeito à efetividade do instrumento (processo) e das regras que o norteiam (Direito Processual) e se colocam nessa trilha de acesso à justiça.

Já vimos, no capítulo que aborda a tutela jurisdicional coletiva, que o Direito Processual, como conjunto de regras de natureza processual, que se ocupa da atividade jurisdicional, do exercício da ação, do processo e dos procedimentos, deve estar adequado para atender aos reclamos de qualquer natureza.

Dissemos ainda que o Direito Processual, ao se dividir, tem este propósito: atender às lides, conforme a essência que apresentem; daí a sugestão de desvincular o Direito Processual Coletivo do Direito Processual Individual, para melhor atender às demandas de caráter coletivo.

Quando pensamos assim, não temos outra intenção senão construir uma doutrina que vá ao encontro do acesso à justiça, inevitável, indispensável e constitucionalmente almejado.

O legislador constituinte não esteve indiferente e, além de estabelecer genericamente a garantia de acesso à justiça, também, ao longo do texto constitucional, firmou diversas ordens em compromisso com ela.

No próximo item, vamos localizar tais comandos, limitando-os, porém, aos que guardem pertinência com o tema do acesso “coletivo” à justiça.

1.2. Legitimidade e ações coletivas

Já no capítulo citado da Constituição Federal que dá tratamento aos direitos e deveres individuais e coletivos, deparamo-nos com a legitimidade para o mandado de segurança coletivo e para a ação popular.

O mandado de segurança coletivo poderá, de acordo com o texto constitucional, ser impetrado por partido político, com representação no Congresso Nacional (alínea a, do inciso LXX, art. 5º) e por organização sindical, entidade de classe ou, ainda, associação, desde que legalmente constituída e em funcionamento há pelo menos um ano, cuja finalidade seja a defesa dos interesses de seus membros ou associados (alínea b, do inciso LXX, art. 5º).

Não pretendemos neste capítulo discutir intimamente a ação de mandado de segurança coletivo, já que o faremos em capítulos posteriores. Gostaríamos apenas, neste momento, de destacar alguns pontos que consideramos relevantes para o ensejo.

Pois bem, a questão da legitimidade para o mandado de segurança coletivo vai, sem dúvida, ao encontro do acesso à justiça que tanto prende a atenção; no entanto, conforme desenvolveremos melhor mais adiante, parece- nos que, ainda que o legislador constituinte não tivesse regulamentado tal legitimidade, ela existiria por conta do que já cuidam outros dispositivos constitucionais (v.g., art. 129) e outras legislações infraconstitucionais (v.g., LACP, CDC). É que, em nosso entender, a interpretação, até em respeito à garantia do acesso à justiça, deve ser a mais ampla possível. Assim, quando a Constituição Federal atribui legitimidade ao Ministério Público para defender

quaisquer direitos difusos e coletivos e as leis infraconstitucionais citadas repetem essa legitimidade e a imputam a outros, como a associação (aí incluídos os partidos políticos) e ainda possibilitam que qualquer ação seja utilizada para o resguardo de tais direitos, nos conduz a acreditar que o mandado de segurança poderá ser utilizado para a defesa dos direitos coletivos e será, portanto, um mandado de segurança coletivo, desde que, é claro, seja proposto pelos legitimados referidos, não só no texto constitucional, como nas leis infraconstitucionais citadas, que trazem um rol de legitimados para as ações coletivas.

Da mesma forma, receberá a ação popular, oportunamente, o tratamento merecido.

Neste passo, consigne-se que é dada ao cidadão legitimidade para propor ação popular, cidadão aliás que, de acordo com a própria Constituição Federal, é o único legitimado para ela.

A ação popular, que já vinha prevista na lei infraconstitucional nº 4.717/65, completa-se ao ser categorizada como garantia constitucional, o que lhe deu força, não só por esse aspecto, mas por ter o texto constitucional ampliado o objeto de tutela por esta ação.

Ainda em sede constitucional, vemos o sindicato recebendo legitimidade para a defesa dos direitos coletivos ou individuais da categoria (art. 8º, III) e o Ministério Público, para promover o inquérito civil e a ação civil pública, em defesa do patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros direitos difusos e coletivos (art. 129, III).

O art. 114, que antes, em seu parágrafo segundo, atribuía legitimidade ao sindicato para os dissídios coletivos, sofreu modificação com a Emenda Constitucional nº 45 e outorgou às próprias partes envolvidas a legitimidade do ajuizamento do dissídio coletivo.

Não podemos deixar de considerar também a legitimidade que a União, os Estados, os Municípios, as autarquias e a coletividade receberam para defender o meio ambiente, legitimidade esta que, ainda que não expressa, fica subentendida ao lhes impor o legislador constituinte o dever não só de patrocinar as causas que o envolvam como de preservá-lo para as presentes e futuras gerações (art. 225).

Do mesmo modo, a família, a criança, o adolescente e o idoso, conforme mando do preceito constitucional, devem ser defendidos pelo Estado e pela sociedade (arts. 226, 226, § 3º, 226, § 8º, 227, 230).

Os índios também recebem proteção constitucional e ao Ministério Público, bem como à União, reputa-se o dever desse abrigo (art. 129, V e art. 231).

E assim, sucessivamente, vamos encontrando por todo o texto constitucional diversas responsabilidades atribuídas ao poder público, ora nas três esferas (federal, estadual, municipal), ora apenas em uma delas, na defesa dos interesses inerentes à coletividade, como, v.g., a ordem econômica (art. 174); a política urbana (art. 182 e 182, § 4º); a política agrícola, fundiária e a reforma agrária (art. 184); a seguridade social (art. 194); a saúde (art. 196); a assistência social (art. 204); a educação, cultura e desporto (art. 205); a cultura

(art. 215); o desporto (art. 217); a ciência e tecnologia (art. 218); a comunicação social (art. 223).

Por todos os artigos acima expostos é que entendemos que a União, os Estados e os Municípios realmente não poderiam deixar de estar legitimados para as ações coletivas, conforme previsto na lei da ação civil pública e no código de defesa do consumidor.