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O Discurso Pedagógico na (da) Educação Infantil

3.1 A ESCOLA COMO INSTITUIÇÃO POLÍTICA

3.1.1 O Discurso Pedagógico na (da) Educação Infantil

A escola, enquanto instituição social, é legitimada como um espaço de inclusão social e de combate às diferentes formas de exclusão social, pois se propõe a contribuir na

produção de uma sociedade de afirmação de direitos à medida em que entende que a formação para a cidadania implica na inclusão social dos sujeitos que dela participam e, sendo cidadãos, farão contraposição às formas de exclusão dos demais membros da sociedade. Assim, também a participação infantil nos contextos educativos formais – centros de educação infantil - está fundamentada em princípios que reconhecem as crianças como atores sociais, sujeitos de direitos, e, portanto, com acesso irrestrito aos bens sociais dentre os quais está a instituição educativa.

Fazendo parte da Educação Básica - que se processa na escola – a educação infantil, ainda que possa ocorrer em uma instituição que se ocupe apenas dela, como é o caso dos Centros de Educação Infantil (CEI) situa-se também na formação ideológica educacional, e cujas formações imaginárias se assemelham à da escola: professor e aluno ocupam posição- sujeito ideologicamente marcada, onde o primeiro é figura de autoridade e detentor de um saber-verdade e o segundo carece alcançar este saber. Isto remete à concepção de discurso pedagógico (DP) que, conforme Orlandi (1996a, p.28): “é um dizer institucionalizado sobre as coisas, que se garante garantindo a instituição em que se origina e para o qual tende: a escola”. A autora classifica o DP em três tipos: lúdico, polêmico e autoritário. E constata que o discurso pedagógico em nossas escolas é caracterizado como predominantemente autoritário. Para classificar um discurso em um dos tipos leva-se em consideração o objetos, os interlocutores e as condições de produção. Como interlocutores temos as professoras e as crianças (no caso da pesquisa que se apresenta). O saber do professor, neste âmbito, não se qualifica exatamente como no caso da escolarização a partir do ensino fundamental, cujos saberes englobam o ensino formal, havendo maior ênfase à formação cognitiva do aluno. Na educação infantil das creches, o professor é o adulto detentor do saber, ao menos, é também uma figura que detém poder e autoridade: é a partir do professor que se estabelecem as regras do jogo, do brincar, do falar, de como se comportar. A imagem da criança é de um ser em desenvolvimento cujo saber é construído nas relações com o meio e, portanto, que precisa da intervenção dos adultos para se constituir como pessoa e cidadã. Se à escola é atribuída a função de cuidar e educar (BRASIL, 2013), o professor deverá executar ações que contemplem cuidado e educação. O sujeito professor da educação infantil figura no imaginário social como aquele que detém o conhecimento necessário à função que desempenha e que reúne características de uma pessoa com habilidades para cuidar, o que envolve também empatia. Ocorre que este sujeito professor é, antes, um sujeito interpelado pela ideologia, traz para o território docente uma memória discursiva (histórica e ideologicamente marcada) anterior à memória de arquivo da educação. O discurso e as

práticas de educação e cuidado do sujeito professor se dão a partir da memória discursiva presente na formação social da qual participa – a pedagógica – entretanto, considerando que participa de outras comunidades discursivas, haverá marcas de heterogeneidade em seu discurso, de modo que em uma mesma instituição escolar, podem ser encontradas formas heterogêneas, diferentes efeitos de sentido no discurso dos professores.

Ainda que com marcas de heterogeneidade, o predomínio do discurso pedagógico autoritário parece destacar-se no cotidiano institucional, pois: no funcionamento discursivo do tipo lúdico, o referente está exposto à presença dos interlocutores cujos papeis não estão claramente definidos e no qual a polissemia é aberta – isso não corresponde à prática da educação infantil, uma vez que o professor tem um lugar social demarcado, tal como a criança tem o seu e há uma determinação de ações a serem seguidas, o que determina que o referente seja processado pelo professor. Se o funcionamento discursivo polêmico pressupõe que os interlocutores busquem direcionar o referente do discurso, havendo, dessa forma, uma polissemia controlada – pergunta-se se uma criança na faixa etária de um a quatro anos terá argumentos para tal. Entretanto, ainda que haja um posicionamento discordante da criança em relação a algum referente, isto aparecerá na forma de recusa ou rebeldia e esta será trabalhada pelo professor em um discurso autoritário, pois o agente do discurso (o professor, respaldado pelo conjunto interdiscursivo sócio-institucional) será o único a apreender e conduzir o referente. Ou seja, há a qualificação de um saber dito pelo professor (figura de autoridade) para ser aceito sem discussão, por isso se diz que, no discurso, o referente (aquilo de que se trata) é ocultado pelo dizer. Entretanto, pode-se dizer que nem o próprio professor, muitas vezes, apreende de fato o referente: também ele pode estar reproduzindo o que ouviu. É então que a polissemia fica controlada, para não haver dispersão. Alguns exemplos obtidos nos registros de campo podem ilustrar essa reflexão:

SD2: Creche III, a professora conta uma história sobre um pássaro da floresta que foi caçado e colocado em uma gaiola com outros passarinhos. A Professora pergunta: “Como os passarinhos estão se sentindo presos?” Momento de silêncio na sala e, logo, um menino diz: “Feliz!”. Professora Bibiana: “Não! Estão tristes!” Uma menina, Kira chama professora Bibiana de “maluca”: “A tia é maluca!” [diz isso sorrindo, provavelmente referindo-se a expressão da professora ao responder ao menino e com uma memória de algum outro referente]. Professora Bibiana diz a ela para não fazer assim que é feio. Que não pode falar assim com os colegas e com os professores e pergunta à menina quem é que chama assim para

a Professora. Kira diz que é a mãe dela. Então Professora Bibiana diz a Kira que ela diga para sua mãe que não pode falar assim da tia nem de ninguém.

Em um discurso polêmico, ‘maluca’ seria questionada, dando abertura para a polissemia, mas neste caso, a professora apreendeu a palavra a partir de sua experiência e proibiu que seja dita novamente – não há reversibilidade. O aprendizado da menina é de que é uma palavra feia, indesejada, mas talvez não tenha mais nenhuma informação. Também a resposta ‘feliz’, atribuída como emoção ao passarinho dentro da gaiola foi controlada e rebatida. Se tivesse sido perguntado ao menino por que o passarinho estaria feliz, talvez dissesse que ele estaria, na gaiola, em companhia de amigos (outros passarinhos) – neste caso, o menino teve um gesto de interpretação sobre a informação e apagou ou não reconheceu outra, que se evidencia, na enunciação, como o objetivo da professora: prisão/gaiola são coisas ruins que geram sentimentos X e não Y. Nas duas ocasiões a professora não trabalhou com o imaginário das crianças; não houve questionamento, caracterizando o discurso autoritário. Ou seja, lidamos com as crianças como se os sentidos estivessem estabelecidos e sejam compartilhados como literais e únicos.

Orlandi defende: O discurso polêmico dá a chance de reconhecimento dos sujeitos implicados no discurso; do locutor e do ouvinte e a alternância de papéis. Instaura a polissemia. O ouvinte, o aluno, pode ser autor – há chances de autonomia:

[...] uma maneira de [o professor] se colocar de forma polêmica é construir seu texto, seu discurso de maneira a expor-se a efeitos de sentidos possíveis, é deixar um espaço para a existência do ouvinte como ‘sujeito’. [...] é deixar espaço para o outro (o ouvinte) [...]. É saber ser ouvinte do próprio texto e do outro. (ORLANDI, 1996a, p.32).

No exemplo acima há também evidência de que os efeitos de sentido são controlados – o que é ação do discurso autoritário: o pássaro ficou triste. Não pode ter ficado alegre. O que será que o menino terá pensado para responder de tal forma, quais conteúdos poderia imaginar para explicar a emoção atribuída? Não há espaço para tal, porque tristeza está colada ao acontecido com o pássaro e lido por nossa memória discursiva. Se polêmico, uma chance de autoria se instauraria.