• Nenhum resultado encontrado

O sujeito no/do discurso

2.3 CORPO, SUJEITO, DISCURSO

2.3.2 O sujeito no/do discurso

O sujeito discursivo não realiza apenas atos: ele se constitui em práticas de linguagem. Talvez pudéssemos aceitar ao mesmo tempo os sentidos que aí são possíveis: o sujeito é constituído, sim, mas também constitui-se a si mesmo, eventualmente reconhecendo essa complexidade (FURLANETTO, 2000).

Pêcheux rompe com a ideia de um sujeito psicológico, interior, pois entende que o sujeito não é o centro ou origem do seu dizer, é, antes, um sujeito assujeitado, interpelado pela ideologia e pelo inconsciente. Nessa crítica ele está provocando um deslocamento na noção de subjetividade. Por isso, afirma que o sujeito seria afetado por dois esquecimentos: no esquecimento um, o sujeito tem a ilusão de que é o criador absoluto do seu discurso, a origem do sentido, apagando tudo que remeta ao exterior de um espaço discursivo que o afeta (nesse momento, ele utiliza o conceito de “formação discursiva”, que abandona no final de sua atividade acadêmica); no esquecimento dois, o sujeito tem a ilusão de que tudo que ele diz tem apenas um significado que será captado pelo seu interlocutor: ilusão de transparência da linguagem (cf. PÊCHEUX, 1995, p. 173).

Orlandi (1999, p. 20) acrescenta e ratifica: “o sujeito de linguagem é descentrado, pois é afetado pelo real da língua e também pelo real da história, não tendo o controle sobre o modo como elas o afetam. Isso redunda em dizer que o sujeito discursivo funciona pelo inconsciente e pela ideologia.”. Notamos, nesse confronto e deslocamento, uma duplicidade que permanece na abordagem discursiva, e que precisa ser filtrada na leitura: a constância em

utilizar linguageiramente “o sujeito” faz pensar num ser pragmaticamente considerado; essa remissão diz respeito, de início, à inserção negativa da voz do outro (aquele que considera a soberania do sujeito, em sua consciência e intencionalidade), e em seguida buscando a fixação da noção de sujeito como posição. Cabe atentar para essa possibilidade de convivência na voz do analista quando utiliza “o sujeito”.

Na perspectiva teórica da AD, portanto, sujeito como centro, como origem, é utopia. O sujeito se constitui em um contexto ocupado por ideologias e não as domina completamente: “o sujeito é segundo em relação a seu entorno – social, linguageiro, ideológico, cultural, até mesmo biológico. [...] o sujeito não é origem (do sentido, da história)” (POSSENTI, 2009, p. 82).

Não se pretende defender a existência de um “eu” genuíno, um si mesmo ou um ego pleno. Contudo, há de se considerar que é necessário um sujeito “empírico”, para que seja possível o discurso (ou seja, a interlocução). Isto implica considerá-lo em toda a sua dimensão: organismo vivo que se insere na raça humana, um organismo com uma estrutura fisiológica ocupando uma posição sócio-histórica, afetado pela ideologia e passível de emoções materializadas e silenciadas pelo discurso. Entretanto, para a AD, importa que o discurso tem impacto neste sujeito empírico que sente, se emociona. No corpo, como reconhece Orlandi (2012) em À flor da pele: indivíduo e sociedade, também há processos discursivos, e até mesmo escriturais, como é o caso da tatuagem (que pode ser também inscrição verbal). Ademais, é possível propor que, assim como o texto é o limiar para a análise de discursos, o corpo permite as apostas para a subjetividade que se manifesta no mundo. Portanto, há um sujeito que é constituído pela linguagem. A linguagem, em discurso, “atravessa” o sujeito, o constitui. O discurso contribui com a modelagem das emoções, com a regulação de sua expressão ou sua contenção.

O sujeito empírico não é negado como tal, mas também não é ele em si mesmo que interessa à visada do analista de discurso. Há um deslocamento do olhar e dos ouvidos, quando se focaliza o sujeito em sua característica de estar em posição de linguagem.

O sujeito, para Possenti (2009, p. 82-83), é uma questão em aberto na AD, principalmente no que se refere à negação de um sujeito uno e consciente. Este autor também se contrapõe à tese da AD que adota a formulação althusseriana, entendendo o sujeito como assujeitado pela ideologia (posição que se vê recolocada já por Pêcheux, tal como encontramos nos anexos de Semântica e discurso na edição brasileira). Para Possenti, a teoria estruturalista de Althusser traduz determinismo na constituição do sujeito. Admite que o sujeito não é livre para “criar” a própria língua, e que é submetido ao que é determinado pelo

sistema da língua em processo, entretanto, ele age ativamente naqueles espaços deixados em aberto pelas línguas naturais (POSSENTI, 2009).

Isto não significa endossar a ideia de um sujeito que domine incondicionalmente sua consciência, que seja origem dos sentidos, e desconsiderar o inconsciente, o histórico, o social e o imaginário. Ou seja, não é um “eu” livre e independente de quaisquer condições. Está preso a circunstâncias. Entretanto, é um sujeito ativo, que inscreve sua subjetividade no discurso agindo sobre a linguagem. Nesta ação, ficam marcas de subjetividade. Uma "subjetividade mostrada", segundo Possenti (1995).

Pode-se considerar o discurso produzido por um sujeito, em determinada situação, em certa medida, como uma retomada do já dito, mas com a ilusão de que sabe e controla tudo o que diz. Advém daí a noção de sujeito descentrado: o sujeito não é o centro do seu dizer; há um (ou mais) discurso(s) pré-construído(s) que o atravessam, realizados a partir de condições de produção específicas. Os discursos estabelecem relações uns com os outros, configurando o que Pêcheux denominou interdiscurso. Portanto, está relacionado com a memória discursiva, com o já dito, mas não está presente conscientemente para o sujeito. A memória discursiva possibilita fazer circular o que já foi formulado antes, o que se oferece como pré-construído:

No salto do ainda não humano para o humano, de um organismo prematuro para um corpo falante, nada se dá sem que um adulto fale à criança, esculpindo-lhe a voz como marca singular na história desse corpo. Ainda que infans, desde o nascimento a criança é apanhada em uma rede de linguagem que a antecede e na qual e pela qual qualquer manifestação do seu corpo – grito, balbucio, riso, choro, movimentos ou silêncio – recebe interpretação da mãe ou daquele que ocupa sua função. (CASTRO, 2003, p.47)

A partir da relação da criança com o outro começam as experiências imaginárias. A evolução psíquica da criança tem início a partir do que Lacan denomina Estádio do espelho, que consiste no reconhecimento da criança a partir do olhar do outro (que “funciona” como um espelho), a quem a criança se volta para que este outro confirme a imagem que ela percebe como sendo sua (DOR, 1989). Pode-se dizer que se trata de um processo subjetivo inaugural; primeiramente é a imagem corporal adquirida que produz efeitos sobre o sujeito: “Quando nasce uma criança, se houver a inscrição do simbólico no seu corpo (campo do Outro como lugar dos significantes), produzir-se-á o surgimento de um sujeito e de sua dependência (alienação) à ordem do significante, [...]” (FERREIRA, 2002, p.124), portanto, um sujeito inscrito no simbólico. Daí falar-se na constituição do sujeito na e pela linguagem.

Portanto, o sujeito, para a AD, estritamente considerado na teia social, não é o sujeito empírico, o sujeito pessoa (indivíduo). Fala-se em “posição-sujeito”, pois que é determinado pelas filiações sócio-históricas que o vinculam às comunidades discursivas de uma formação social ampla.

O sujeito que enuncia o faz a partir de um lugar social, e o que ele fala/manifesta faz sentido por ser posição-sujeito correlacionada a determinada conjuntura social – como, no caso, uma instituição de caráter educacional. Vejamos tais conceitos:

A posição-sujeito emerge da forma-sujeito, noção relacionada a espaços ou territórios heterogêneos em que, imaginariamente, se constitui um tipo de saber. A forma- sujeito relaciona-se à constituição histórico-ideológica dos sujeitos. Em Semântica e Discurso, Pêcheux ([1975] 1995) explica que é pela forma-sujeito que o sujeito tende “a absorver-esquecer o interdiscurso no intradiscurso, isto é, ela simula o interdiscurso no intradiscurso, de modo que o interdiscurso aparece como o puro 'já-dito' do intradiscurso, no qual ele se articula por 'co-referência'." (PÊCHEUX, 1995, p.167). Isto é, o sujeito retoma elementos do interdiscurso (saberes de um determinado território discursivo), e estes acabam por determiná-lo (note-se, contudo, que não se entende “determinação” como um poder absoluto, mas como uma relação de força que atua nas relações sociais, com menor ou maior intensidade). Ainda segundo o autor, a posição-sujeito emerge da relação de identificação entre sujeito enunciador e a forma-sujeito (sujeito do saber). Então: o sujeito enuncia de uma posição-sujeito e seus enunciados advêm da forma-sujeito.

O lugar social está situado na formação social, mas não corresponde a um lugar geográfico-espacial propriamente dito. Ele resulta de processos discursivos. Os interlocutores ocupam lugares sociais, mas que são representados sob efeitos imaginários: são projetadas imagens de um e outro: “O discurso, na sua circulação, constituiu lugares que são acolhidos na formação social e possibilitam determinar quem é quem e colocar cada um no seu lugar. [...] tais lugares foram se definindo ao longo da história [e estão relacionados] ao saber/poder/discurso” (DORNELES, 2005, p. 105). Assim, aquele que se instituir de determinados saberes/poderes, estará habilitado a ocupar determinados lugares sociais.

Os lugares sociais não são ocupados da mesma forma. Em um mesmo lugar social podem (co)existir lugares discursivos diferentes. Lugar discursivo é formado por um conjunto de formulações discursivas. Dorneles (2005) exemplifica: o lugar discursivo de autoridade ocupado por um policial que atua em agência bancária pode ser ocupado por diferentes posições-sujeito: o policial que utiliza fala ríspida, a fim de manter a ordem da fila e o policial que organiza a fila de modo cortês. Assim, o sujeito pode situar-se em um lugar discursivo,

mas não assumir a mesma posição-sujeito. A posição-sujeito é acessada pela análise do processo discursivo.

Portanto, o sujeito enuncia a partir de um lugar social que constitui suas enunciações (o lugar do juiz, do professor, do presidente do país, etc.), e esse lugar social determina o que pode e deve ser dito, influenciado por uma formação ideológica: “Em toda língua há regras de projeção que permitem ao sujeito passar da situação (empírica) para a posição (discursiva). O que significa no discurso são essas posições. E elas significam em relação ao contexto sócio-histórico e à memória (o saber discursivo já-dito)” (ORLANDI, 1999, p. 40).

E, enquanto sujeito falante, o sujeito ocupa uma posição no espaço social e, como tal, produz um discurso determinado por um lugar e tempo histórico, que vai situar-se em relação aos discursos do outro, a partir de imagens de si e do outro, construídas e representadas pelo simbólico. Tais imagens estão relacionadas à compreensão de “ethos discursivo”, tal como essa noção tem sido desenvolvida na perspectiva discursiva de Maingueneau, que incorporamos aqui. Ethos é “adesão do sujeito a certa posição discursiva” (MAINGUENEAU, 2005, p. 69). O ethos vai implicar quem “fala”, o que “fala” e de onde “fala”. Neste caso, “implica papéis, lugares e momentos de enunciação legítimos, um suporte material e um modo de circulação para o enunciado” (p. 75). Mais do que estatuto e papel, voz e corpo enunciante, inscritos em dada situação, com historicidade (MAINGUENEAU, 2005, p. 70).

“Voz” e “corpo” traduzem-se nos conceitos de “tom” e “corporalidade”. Maingueneau usa a expressão “tom” para referir-se ao discurso oral e ao escrito, defendendo que ambos implicam ethos: “o tom específico que torna possível a vocalidade constitui para nós uma dimensão que faz parte da identidade de um posicionamento discursivo” (MAINGUENEAU, 2005, p. 73). Pelo “tom” do discurso é possível relacioná-lo a uma fonte enunciativa – o tom vai indicar quem o disse – isto implica em “incorporação” (p. 91), cujo entendimento é de uma estreita ligação entre um discurso e seu modo de enunciação, “a maneira pela qual o co-enunciador se relaciona ao ethos de um discurso” (MAINGUENEAU, 2005, p.72).

Essa ‘relação’ enunciador/co-enunciador compõe o que Maingueneau (2005) chamou cenografia discursiva17 que leva em conta as condições sócio-históricas de produção discursiva e o interdiscurso.