• Nenhum resultado encontrado

4 A HISTERESIS DO HABITUS LINGUÍSTICO DO PROFESSOR EM

4.3 O EFEITO DE HISTERESIS NA CONSTITUIÇÃO DO HABITUS

Como vimos nas situações descritas no item 4.2, os professores em formação, em situação de regência, ainda não dominam os conteúdos escolares; a sua performance escrita – para não falar da oralidade, dada sua natureza distinta - demonstra que ainda não possuem, também, o domínio das normas de escrita da língua legítima (objeto do seu trabalho) nos aspectos mais superficiais, como a ortografia, a acentuação, a pontuação.

Todas as situações descritas neste trabalho são reais e todas aconteceram (e acontecem) em escolas públicas, onde professores oriundos de classes populares atendem alunos oriundos de classes populares. Geraldi (1996, p. 56) propõe a seguinte reflexão:

É a escola o primeiro lugar público em que o aluno se expõe (ou deveria se expor) como locutor. Admitindo-se que a escola, de uma forma ou de outra, tem possibilitado a seus alunos interlocuções nesta instância pública de uso da linguagem, e como estas exigem o dialeto culto, como explicar que depois de anos de escolarização, falantes das variedades lingüísticas não prestigiadas socialmente permaneçam falando a variedade de origem?

A esta reflexão, com a qual me identifico, acrescento: como podem professores de língua portuguesa, após tantos anos de escolarização, continuarem escrevendo como falam em sua variação linguística de origem?

Uma resposta possível para tais questionamentos pode ser suportada pelo conceito de histeresis do habitus. Na segunda parte (2), deste trabalho, vimos que o conceito do efeito de histeresis do habitus se aplica a ao fato de que os agentes

sociais vão, aos poucos, ajustando suas ações às condições objetivas de existência, através do habitus. Entretanto, tal ajustamento não é imediato, perfeito; muitos indivíduos, mesmo tendo acumulado capitais, podem evidenciar um comportamento inadequado a sua nova posição social.

Ora, sob nenhuma hipótese estou autorizada a afirmar que, depois de tantos anos de escolarização, professores de língua portuguesa - mesmo aqueles ainda em formação, como é o caso dos estagiários em fase de regência - não tenham acumulado capital linguístico. Entretanto o habitus linguístico primário permanece em uso, pois “a linguagem é a parte mais inatingível a mais atuante da herança cultural” (BOURDIEU, In: NOGUEIRA; CATANI, 2002, p. 56). Mas a expectativa que a sociedade tem, diante do papel atribuído ao professor de português, é a de que tal agente deve se comportar linguisticamente como dicionário e/ou gramática ambulante.

Desta feita, os pais alegam serem os professores – de modo geral – por sua incapacidade e incompetência, responsáveis pelo insucesso escolar de seus filhos. Por sua vez, os professores, enquanto trabalhadores produzidos – e reprodutores – por este mesmo sistema educacional, que repousa no princípio de diferenciação, se tornam “indivíduos atingidos por uma espécie de mal-estar crônico, com uma imagem de si mesmos constantemente maltratada, machucada ou mutilada” (BOURDIEU, In: NOGUEIRA; CATANI, 2002, p. 222).

Segundo Bourdieu (In: ORTIZ, 2003, p. 52) “a competência lingüística (como toda competência cultural) só funciona como capital lingüístico quando se relaciona com um mercado”. No interior do mercado escolar – em especial ao que concerne ao ensino da língua, ou, melhor dizendo, dos usos da língua – o capital linguístico do professor deveria configurar a interiorização/exteriorização de um novo habitus linguístico compatível com sua nova posição social, revelando “capacidade de utilizar as possibilidades oferecidas pela língua e de avaliar praticamente as ocasiões de utilizá-las” (BOURDIEU, id., p. 168).

O que se vê, entretanto, na prática, é uma supervalorização do ensino normativista, completamente dissociado das situações de uso da língua. Os professores parecem-me descapitalizados linguisticamente: mesmo em situação de tensão linguística média – como poderíamos classificar uma situação de aula – não se percebe interesse expressivo por parte dos professores, tampouco dos alunos. E assim, o ensino da língua culta se torna algo inútil, desagradável para os alunos –

que não veem nenhuma utilidade em aprendê-la - e para os professores – que não veem nenhuma utilidade em ensiná-la, mesmo porque ela não faz parte do seu uso linguístico quotidiano.

Não quero dizer, com isso, que os professores de língua portuguesa não tenham acumulado capital linguístico; seguramente este capital acumulado se distingue em relação ao capital linguístico primário; nesse sentido, é inegável que houve uma re-estruturação do habitus. Entretanto, apesar de toda a re-estruturação, o capital linguístico re-estruturado não reúne atributos para ser qualificado como distintivo, tais como: desenvoltura, retidão da linguagem, maneiras de falar, confiança, entre outras qualidades próprias que tendem a ser típicas das frações de classe que têm como herança familiar esse capital distintivo que, de jeito nenhum, é metódico ou escolar.

No mercado escolar, em especial no que diz respeito ao ensino de língua portuguesa, o capital linguístico se constitui como moeda de troca entre professor e aluno; esta troca deve propiciar um lucro, seja ele material ou simbólico. O discurso do professor é signo de riqueza e autoridade dentro deste mercado. A questão, então se configura: por que o professor não utiliza o seu capital linguístico acumulado, perdendo, assim, a sua riqueza e autoridade?

A não utilização do capital linguístico acumulado pelos professores pode ser atribuída a um efeito de histeresis do habitus linguístico, cuja curva, que originalmente deveria ser passageira, parece-me estar se prolongando permanentemente. Há uma espécie de resistência física dos professores quanto ao uso da língua culta, ou pelo menos dela mais aproximado, até mesmo nas situações sociais em que este profissional está em evidência, como autoridade instituída e detentora do poder simbólico (neste caso, não me refiro somente aos professores de língua portuguesa, mas a todos os professores que a utilizam para suas atividades de ensino).

A histeresis do habitus, assim, funciona como uma espécie de “desajustamento das estruturas incorporadas passadas às estruturas sociais presentes da prática, para referir o eventual efeito de conjunturas revolucionárias (desvalorizando-as, dizendo que o passado continua a ser preponderante para a lógica da prática), não chegando a negar a possibilidade de ocorrerem mudanças sociais significativas, embora não a totalidade daquelas que eram desejadas pelos atores sociais, as chamadas falhadas” (CARIA, 2008, p. 13).

A força do habitus especialmente a do habitus linguístico – está interiorizada em cada um dos agentes sociais e, por sua vez, ela é também exteriorizada por tais agentes. Não nos desvencilhamos facilmente de nossos habitus linguísticos primários, pois eles estão em nós incorporados, assim como outros fatores pertinentes ao nosso capital cultural.

Grande parte dos professores de língua portuguesa, por não conseguir associar a suas práticas pedagógicas os conhecimentos teóricos adquiridos na formação inicial, permanece, por longo tempo – e muitos, por toda a sua vida profissional – reproduzindo e fazendo reproduzir o poder de dominação linguística. Mas tal reprodução – em decorrência da atuação inadequada do professor no que diz respeito ao domínio dos conteúdos escolares e metodologias de ensino, vem se configurando como um processo a que eu denomino “descapitalização linguística da escrita”: no mercado escolar, a escrita, embora tomada como base para o ensino de regras, é pouco praticada. Aprende-se (ou decoram-se regras) sobre escrita, mas não se aprende (ou pouco se aprende) a escrever.

O próprio professor, no que se refere à escrita da norma, da língua legítima, contribui para a reprodução do erro. Em consequência, os alunos cada vez mais saem das escolas de Ensino Fundamental e Médio – com um capital linguístico menor e menos valorizado socialmente, em especial no que concerne a sua produção escrita; portanto, um capital linguístico não rentável socialmente.

Muitos desses alunos não internalizaram, em sua gramática de uso, as regras de higienização de textos a que foram submetidos durante os seus longos anos de escolarização (tais como ortografia, acentuação e pontuação); muitos mais, ainda, destes alunos não aprenderam a ESCREVER textos. Alguns dentre eles – os laureados - adentram a Universidade e se tornam professores de língua portuguesa. E assim, a reprodução daquilo que eu denomino desvalorização do capital linguístico tem permanência e continuidade.

4.4 ESTRATÉGIAS DE REPRODUÇÃO DA DESVALORIZAÇÃO DO CAPITAL