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5. O PERCURSO DE UMA PESQUISA FENOMENOLÓGICO-EXISTENCIAL

5.3 Interpretação das narrativas

5.3.1 O encontro com a Fenomenologia

O ingresso em um curso superior, e aqui especificamente, no curso de Psicologia, denota que antes de tal ingresso, existiu algo que evidentemente motivou a escolha do aluno por determinado curso. Muitas são as explicações e as motivações que envolvem determinada preferência, inclusive nos dias de hoje, em que informação, esclarecimentos, demonstrações e contato com as profissões são facilmente adquiridas pela internet, pela televisão, pelos familiares e amigos profissionais, ou seja, pelas vivências do dia a dia. Não objetivamos descobrir os motivos que levaram à escolha do curso de Psicologia, no entanto, não poderíamos deixar de iniciar estas reflexões sem que antes abordássemos o que os levou a optar pela Fenomenologia. Dessa forma, o caminho que percorreremos a partir de agora, denota um esforço de clarificação a partir da experiência do participante em meio a sua formação de base fenomenológica.

76 Os trajetos de cada participante, ainda que muito particular, podem ser refletidos aqui com algumas ressalvas em comum. O interessante é perceber que, mesmo diante de um currículo dificultoso, no qual, muitas vezes, se encontram restrições de tempo e planejamento estrutural para se apresentar com eficiência todas as principais abordagens clínicas que a Psicologia contém, os estudantes ressaltaram que o pouco contato com a linha fenomenológica fora satisfatório para que houvesse uma identificação com a mesma.

Não é suficiente. Mas, por outro lado (...) são tantas áreas de atuação que é

muito difícil em um curso de cinco anos, tipo (...) dar conta de tudo. (...) Foi

pouco, sabe. Mas foi o suficiente para eu me encontrar, pra chamar minha atenção e eu pensar: “Eu quero”. (Maria)

Eu acho que a gente, ao longo do curso, vê muito pouco sobre todas as

abordagens do modo como foi colocado aqui porque a gente via as disciplinas

de clínica em módulos (...) E do pouco que a gente viu, foi a abordagem que eu

mais me identifiquei. (Amanda)

Eu acho que o currículo está superficial em todas as abordagens (Gabi)

Falas como as de Maria, Amanda e Gabi são apenas exemplificativas nesse momento, embora absolutamente todos os participantes da pesquisa tenham se referido ao seu encontro com a fenomenologia como um encontro em meio a um currículo que pouco explora a riqueza e complexidade de seus conteúdos. Em suas experiências, demonstraram considerar um currículo falho no que se refere à completude das abordagens clínicas.

77 Essa discussão a respeito da grade curricular nos parece ser algo atual e ininterrupta nos debates da Psicologia. Alunos e docentes demonstram ano após ano o desejo em montar um currículo alinhado a uma formação mais consistente em seu âmbito teórico e prático, ou seja, uma formação que consiga contrabalançar a sua magnitude de correntes teórico-metodológicas. Todavia, essa insatisfação diante da grade curricular do curso é um assunto que, como aponta Figueiredo (2009), tem suas raízes na própria natureza da Psicologia. Para o autor, é impossível elaborar um currículo ideal que atenda a todas as bases teóricas existentes e equilibrado no que diz respeito às oportunidades igualitárias no exercício prático das diferentes abordagens, enfim, que atenda às diversas psicologias. Além disso, estaríamos também diante de um problema que reflete o embate de epistemologias, pois “o estabelecimento de um currículo implica a definição de uma relação de forças entre diversas concepções do que seja fazer, pensar e ensinar psicologia” (p. 148).

Tendo isso em vista, Figueiredo (2009) sugere que renunciemos à crença de elaborar um currículo ideal e adotemos a ideia de um currículo suficientemente bom. O autor faz uma analogia com a relação mãe-bebê pensada por Winnicott e sugere que a mãe, à medida que proporciona um ambiente propício para o desenvolvimento do bebê, também deixa brechas para que ele desenvolva certa autonomia. Assim, da mesma forma como acontece com a mãe suficientemente boa, o currículo suficientemente bom, não havendo possibilidade de satisfazer por completo a todos os desejos dos alunos e docentes, pode deixar a desejar na medida certa, medida esta que faça “instaurar um campo de insatisfações mobilizadoras do trabalho pessoal do aluno” (p. 151). Isso quer dizer que, ao invés de seguir a impossível tarefa de satisfazer a todas as vontades, o currículo pode ser elaborado com devidas falhas, pois são essas que farão suscitar no aluno o desejo em assumir sua própria preparação profissional.

78 De fato, percebemos que esse desejo em assumir as rédeas de sua formação é exemplificado pelo percurso de alguns participantes. Porém, aqui ressaltamos a história trazida por Débora. Ainda que tenha passado por outras abordagens, a participante deixou claro que usufruiu da perspectiva fenomenológica desde o primeiro ano do curso. Contudo, Débora alude que sua formação na abordagem se deve muito mais ao seu interesse particular e ao seu esforço em buscar conhecer mais profundamente a abordagem por vias “alternativas”, como a base de pesquisa em que se encontra até hoje, bem como na prestação das poucas disciplinas complementares dispostas na grade curricular do curso.

Em contrapartida, no que se refere ao contato direto com as disciplinas que versam sobre a fenomenologia, também encontramos algumas particularidades, como exemplificada na fala de Amanda:

E ai eu procurei saber mais sobre fenomenologia. Só que no início, nessa

primeira disciplina, pra mim, parecia algo filosófico demais. Talvez até

porque a gente vem com aquela coisa de querer tudo bonitinho, ensinando

como fazer tudo, e como já tem essa questão de não ter técnica e tudo, pra mim foi: “nossa, é tão filosófico. Parece que é tão pouco aplicável”. Mas como eu procurei saber, eu fui indo atrás e tirando as dúvidas, aí fui

descobrindo que não era bem por aí. (...) Mas de cara, assim, de início, eu fiquei com essa impressão: “Nossa, parece que é uma coisa tão filosófica, tão distante. E quando eu estiver no consultório?”

(...) não é uma coisa que vai ser de um dia para o outro para a gente se

79 Sabemos que a Filosofia, matéria inerente à Fenomenologia, é um aprendizado que requer tempo para sua apropriação e certo desprendimento, por vezes, de algumas representações já pré-estabelecidas. Além disso, quando falamos em Filosofia, não podemos deixar de mencionar o entrave ocorrido no seu processo de desenvolvimento. Basta citar que a Filosofia, que quase perdeu seu posto na segunda metade do século XIX em razão do império científico, teve seu momento de ascensão com pensadores do século XX, a exemplo de Sartre, Husserl, Heidegger e tantos outros, tal como referido por Gemino (2004).

No entanto, podemos retratar também o palco de embates ocorrido no Brasil no que se refere ao seu processo de ensino/aprendizagem. O artigo 36 da Lei de Diretrizes e Bases da Educação (Lei nº 9.394/96) produziu um avanço na medida em que determinou a obrigatoriedade da inclusão do ensino de Filosofia em todas as classes do ensino médio, o que acabou gerando um reflexo positivo nas camadas do ensino superior também. Isso significa um avanço, pois, como já retratado em capítulos anteriores, sabemos que essa disciplina foi praticamente extinta na época do regime militar.

Hoje, é indiscutível a importância da base filosófica para a formação dos discentes em Psicologia, seja qual for a sua especialidade ao final do curso. Desta forma, Gemino (2004) diz que:

O trabalho meditativo, o olhar contemplativo e o próprio ofício do filósofo foram e estão sendo extensamente discutidos a fim de promover o papel da filosofia para além do tecnicismo cada vez mais reinante. Se muitas das disciplinas - antes “ramos” da filosofia – confirmaram sua emancipação, não deixaram, por sua vez, de recorrer a “Grande Mãe” para rever seus fundamentos. É o caso da psicologia, especificamente em alguns de seus vários campos de pesquisa. (p. 2)

80 É diante desse contexto que Augras (1976/2009) sugere buscar uma segurança na atuação do psicólogo clínico que resida no aprofundamento das questões filosóficas, pois a psicologia clínica, segundo a autora, esteve amparada pela linguagem psicopatológica e pelo discurso doentio. Porém, metas como essas não são tão simples. A mesma autora ressalta a explícita falta de fundamentação filosófica na formação dos psicólogos, e esse alerta não nos parece desprovido de fundamentos.

Gomide (1988), no final da década de oitenta, divulgou uma pesquisa de caráter nacional na qual investigava o nível de satisfação dos psicólogos em relação aos conhecimentos adquiridos na graduação. Curiosamente, os conhecimentos Filosóficos ocupavam um lugar de destaque com maior nível de insatisfação, perdendo apenas para o conhecimento Experiência de Pesquisa.

Tal evidência, no mínimo, sugere o que afirma Sá, Junior e Leite (2010):

Do ponto de vista dos estagiários, o desconforto inicial pela ausência de instrumentos teóricos que lhes dê segurança no exercício da prática clínica, é atribuído à insuficiência de disciplinas voltadas para a fenomenologia e a filosofia existencial no currículo do curso (p. 137).

Embora os autores também denotem que há outros fatores que se agregam a essas dificuldades, tal como a falta de compreensão experiencial de uma atitude fenomenológica (a qual será refletida mais adiante no estudo), sabemos que tratar dos termos filosóficos, inerentes a esta abordagem, são barreiras enfrentadas no processo de formação em fenomenologia. Junto a essa dificuldade, sabe-se também que há um reflexo da carência filosófica do currículo a que estamos pautados.

Entretanto, embora com as dificuldades explicitadas, os participantes retrataram o encontro com a fenomenologia como a junção de uma visão teórica que se entrelaçava às suas próprias experiências.

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E aí eu percebi que o jeito de ver o homem, o jeito de pensar era uma coisa

que me chamava a atenção. (...) Então isso foram coisas que foram me

atraindo. O jeito de ver o homem, o jeito de ver o mundo, o jeito de pensar foram coisas que eu dizia: “Caramba, isso parece comigo de alguma forma”.

(Jorge)

E aí tinham coisas que faziam sentido, que era realmente minha visão de

homem, que eu achava que devia ser desse jeito. E os outros contatos que a

gente teve com as outras abordagens não foram suficientes. (Carol)

Ao longo da minha vida, foram muitas mudanças, então tinha a ver com a

minha vida e eu tinha me encontrado de certa forma com essa abordagem.

(Maria)

Diante do exposto, a escolha pela corrente fenomenológica nos mostra que, além de um alinhamento com a teoria e a prática, há, sobretudo, uma conexão com a própria experiência. Esse tripé atuante na escolha da abordagem é o que nos faz pensar que o estudante está pessoalmente implicado no seu fazer na medida em que a definição de sua abordagem estampa, muitas vezes, o reflexo de suas vivências, o retrato de sua condição de ser-no-mundo. Em outras palavras, a bagagem de experiências acaba reorientando as relações com a realidade vivida na academia. Isto é, podemos pensar que a identificação com a abordagem, para além de outros requisitos, clama por um movimento próprio, interior, pessoal, vivencial.

82 Contudo, o currículo, por sua vez, ao estimular uma cisão da teoria em detrimento da prática, acaba por postergar a experiência do aluno, ou seja, o adiamento da prática, sendo esta experienciada na maioria das vezes ao final do curso, acaba por dificultar a edificação de um saber engendrado com a experiência, tal como aponta Carneiro (2006). Segundo a autora:

(...) o curso de psicologia é estruturado de modo que o aluno precisa ter a capacidade de sobrepor o novo conhecimento ao antigo sem, na maioria das vezes, disponibilizar uma abertura para que o aluno possa articular não só as diversas teorias expostas, mas principalmente sua experiência frente a elas. Há uma lacuna entre o conhecimento ensinado e a descoberta de si que o processo ensino/aprendizagem contém (p.22).

Embora acreditemos que isto não seja experienciado apenas por estudantes da abordagem referenciada, nem tampouco aconteça apenas no curso de Psicologia, levamos em conta refletir sobre a primazia de um conhecimento informativo e cumulativo em detrimento da experiência. Já dizia Benjamin (1994) que a experiência fora interpelada pela estrutura informativa, pois essa última, por ser explicativa em si mesma, parece ser mais plausível nos discursos.

Todavia, embora haja essa lacuna, o tripé que contém o componente pessoal se faz presente independente da estrutura curricular, pois, como denotado por Heidegger, a compreensão do homem é inevitavelmente vinculada a uma disposição afetiva pela sua simples condição de ser-aí. Segundo Heidegger, “Toda disposição sempre possui a sua compreensão, mesmo quando a reprime. Toda compreensão está sempre sintonizada com o humor” (1927/2002, p. 198)

83 Assim, ainda que o estudante esteja diante de um processo de aprendizagem e que este apresente certos percalços, já existe aí um envolvimento pessoal que se faz presente e que adverte por uma atenção a si próprio. Almeida (1999) diz que:

Há implacavelmente uma realidade que se abre por uma emoção e também certamente uma emoção que se insculpe numa realidade, o que equivale a dizer que a sensação abre o real, o qual nos dispõe em um determinado estado de ânimo. Somos inapelavelmente alguém que de alguma forma e sempre é tocado pelas ocorrências mundanas (p. 48).

A disposição afetiva, portanto, não é algo que se presentifica somente em determinado momento como algo psíquico que é exteriorizado, mas é um “modo existencial básico da abertura igualmente originária de mundo, de co-pre-sença e existência, pois também este modo é em si mesmo ser-no-mundo” (Heidegger, 1927/2002, p. 191).

Além dessa afetação, Critelli (2007) aponta que existe um segundo elemento que emerge de nossas emoções e são por elas abertas: as nossas escolhas. A autora diz que, diferente do que pregou Descartes, que instalou a ideia de que as escolhas devem ser submetidas ao crivo da razão, a fenomenologia, por outro lado, possui uma forma típica de elucidar a compreensão pela disposição afetiva que, à primeira vista, pode parecer presunçosa na medida em que caracterizaria uma despreocupação quanto ao pensamento ponderado, ou seja, as escolhas estariam sendo instaladas por uma irracionalidade. Entretanto, o humor possui sua própria forma de ver a realidade, um modo peculiar de racionalidade que não está sujeito à ponderação do pensamento de modo tão decisivo. O pensamento estaria atuando apenas de forma secundária nas escolhas, oferecendo a elas somente um suporte.

84 Tendo em vista a narrativa trazida pelos participantes, pode-se ver que suas escolhas pela abordagem em questão, se tomarmos as ideias heideggerianas, deram-se por meio de uma disposição afetiva ou humor, ou seja, percebe-se uma implicação experiencial no ato de escolha e identificação com a fenomenologia.

Então eu acredito muito nisso. Na questão de escolha. Então algumas questões

que a fenomenologia traz, eu acredito dentro de mim. Eu acredito veemente.

Como... como algo da minha vida mesmo. (Maria)

Eu me encanto com a forma de ver o ser humano, sabe. A forma da

fenomenologia enxergar o ser humano. As possibilidades, tá entendendo? Que

o ser humano é um ser de possibilidades, que existe opções, que você tem

escolhas, sabe? Não sei... Eu acho que... Que isso depende muito do sujeito.

Então, isso que me encanta na fenomenologia. Que você é capaz de fazer suas

próprias escolhas, que você tem que assumir suas responsabilidades por isso.

E eu acho que a fenomenologia dá margem pra isso... pra o ser humano, pra

pessoa... Tipo... não sei se seria exatamente isso, mas tipo assim, saber quem

você é, entendeu? (Débora)

Dessa forma, apoiados pela fenomenologia heideggeriana, entendemos que as experiências vividas, o contexto em que nos encontramos e as pessoas ao nosso redor vêm ao nosso encontro e nos tocam de alguma maneira, nos afetam, abrindo um horizonte de significados pelos quais fazemos nossas escolhas.

Assim, a partir dessa prévia compreensão das coisas, dispostas por nossa coloração afetiva, escolher parece significar estar implicado, estar envolvido, mesmo que, por vezes,

85 renunciemos a tal escolha, o que não parece ter acontecido dentre os entrevistados. A abertura para a escolha, motivada pela própria condição de humor, isto é, pela condição inerente de ser afetado pelas coisas, supõe uma abertura para buscar e, nessa busca, quem sabe, se encontrar.

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