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Reflexões sobre a formação clínica fenomenológico-existencial na era da técnica

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Academic year: 2017

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA

REFLEXÕES SOBRE A FORMAÇÃO CLÍNICA FENOMENOLÓGICO-EXISTENCIAL NA ERA DA TÉCNICA

Adriana Raquel Negrão Duarte

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ii ADRIANA RAQUEL NEGRÃO DUARTE

REFLEXÕES SOBRE A FORMAÇÃO CLÍNICA FENOMENOLÓGICO-EXISTENCIAL NA ERA DA TÉCNICA

Dissertação elaborada sob a orientação da Professora Dra. Elza Dutra e apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal do Rio Grande do Norte como requisito à obtenção do título de Mestre em Psicologia.

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iii UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE

CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA

MESTRADO EM PSICOLOGIA

A Dissertação Reflexões sobre a formação clínica fenomenológico-existencial na Era da

Técnica elaborada por Adriana Raquel Negrão Duarte foi aprovada por todos os membros

da Banca Examinadora e aceita pelo Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, como requisito parcial à obtenção do título de

MESTRE EM PSICOLOGIA.

Natal, 13 de Março de 2013.

BANCA EXAMINADORA

Profª. Drª. Elza Dutra (UFRN) ____________________________________ Orientadora

Prof. Dr. Roberto Novaes de Sá (UFF) ____________________________________ Professor Convidado

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iv Vale a pena viver tudo isso Mesmo que a tristeza e a dor Deixem marcas no rosto Deixem pegadas pesadas Deixem rastros na areia

Viver vale a pena Mesmo com restrições, reticências Cansado da luta e da lida Olha pro céu e percebe

Que é hoje tua vida

Vale a pena chorar Lavar as lágrimas doces O rosto e o desgosto Encontrar a paz e o conforto Em ti próprio, teu melhor companheiro

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v Agradecimentos

Nunca tive dúvidas quanto ao amor celestial. A espiritualidade sempre esteve incansavelmente presente. Portanto, agradeço às vibrações positivas dos espíritos amigos e ao comparecimento constante de Deus em minha vida. Os temores vividos, embora por vezes se mostrando robustos, visíveis e audíveis, foram e vêm sendo encarados, pois Tu estás comigo em cada segundo com Tua infinita bondade.

Sou abençoada pelo prazer da vida e por ter a oportunidade de, a cada dia, reconhecer o valor de compartilhá-la com aqueles que me ensinam a sua importância. Se não fosse por vocês, papai e mamãe, André, Daniel e Alice, minha família, minha base dura e fortalecida, nada disso faria sentido. Em vocês me fortaleço, recrio asas, sinto-me viva e com razões de viver, fazer-me e fazer acontecer. Não importa o trajeto: a torcida de vocês sempre está lá vibrando, esbravejando de alegria. E se a derrota vier, o abraço reconfortante de vocês me envolve como um manto quente e fortalecedor, um afeto que me revigora e me acende, me entorpece de alegria e me esclarece uma certeza: sem vocês, eu nada sou.

Embora esses já sejam motivos suficientes para eu me sentir feliz, Deus ainda me deu um presente, um presente em forma de gente. Pessoa singular em seu caráter e múltipla em suas qualidades. Agradeço a ti, grande amor da minha vida, Edmundo. Todos os carinhos servidos, todas as conversas travadas nessa busca, toda partilha segura e certeira. Em ti também me refaço, me entrelaço, me torno única e, assim, nos tornamos únicos um para o outro.

Não posso deixar também de citar a sutileza com que uma pessoa se mostrou não só neste percurso, mas em todos os instantes desde que se tornou, por excelência, a minha irmãzinha. Taís, com toda sua calmaria e prudência, agradeço pelos conselhos, pelo envolvimento como se o vivido também fosse teu.

Assim também se faz a importância dos meus familiares de Belém do Pará que, com presença ainda em vida carnal ou não, sempre serão fundamentais em meu viver. Meu muito obrigado a vocês que, mesmo distantes geograficamente, não menos presentes na minha vida.

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vi experiência, de olhar para cada margem e pequena parcela do ser humano com profundo envolvimento, paixão e respeito.

Aos grandes e verdadeiros amigos, agradeço pelas doses de risadas, ao abraço sempre presente e fiel, ao apoio nas horas mais difíceis. Meus agradecimentos a Aline, Maryá, Mariana, Bianca, Anna Valeska, Alana, Faheyna, Melina e Dávila.

Outras pessoas também adentram em nossas vidas e nos ensinam sem querer. Não percebem que apenas seus gestos e suas atitudes falam mais que qualquer ensinamento diretamente proposto. Assim acontece com Sandra Souza. Agradeço de todo o coração pelo carinho, por não me deixar desistir nos momentos desanimadores, por confiar em minha capacidade e pela parceria de sempre.

Aos colegas da base de pesquisa, companheiros guerrilheiros que, assim como eu, desbravam uma batalha nos meios acadêmicos lutando por uma causa maior, que é o autoconhecimento acima de qualquer teoria. Muito obrigada pelas trocas, pelos incentivos e compartilhamento.

Como não haveria de faltar, devo encerrar agradecendo àqueles que foram o grande incentivo ao percurso desse caminhar. Meus sinceros agradecimentos aos participantes da pesquisa, pois contribuíram para o meu crescimento a partir da entrega sincera e desmensurada de suas questões.

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vii SUMÁRIO

Resumo...viii

Abstract...ix

INTRODUÇÃO...10

1. (RE)CONTANDO A HISTÓRIA: O SURGIMENTO DA CLÍNICA E BREVE RETROSPECTO HISTÓRICO DA PSICOLOGIA CLÍNICA...17

2. FENOMENOLOGIA: UM MARCO DISTINTO DA CIÊNCIA MODERNA...27

2.1 A ciência moderna e algumas considerações heideggerianas...34

3. A QUESTÃO DA TÉCNICA EM HEIDEGGER...40

3.1 A técnica e a psicologia clínica...45

4. A FORMAÇÃO CLÍNICA FENOMENOLÓGICO-EXISTENCIAL...51

4.1 Por que pensar sobre esta formação?...51

4.1 O fazer fenomenológico-existencial: da técnica à atitude fenomenológica...55

5. O PERCURSO DE UMA PESQUISA FENOMENOLÓGICO-EXISTENCIAL...63

5.1 Abordagem Teórico-Metodológica...63

5.2 Procedimentos Metodológicos...69

5.2.1 Instrumento...69

5.2.2 Participantes e Construção das Narrativas...72

5.3 Interpretação das narrativas...74

5.3.1 O encontro com a Fenomenologia...75

5.3.2 Da técnica à atitude fenomenológica...85

5.3.3 A liberdade de um fazer...97

6. CONSIDERAÇÕES FINAIS...104

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viii RESUMO

No presente estudo, a Fenomenologia é destacada pela dimensão de sua crítica aos limites da ciência positivista, ciência esta que rege a grande maioria das áreas do conhecimento, abrangendo, inclusive, a própria Psicologia. No que se refere ao processo de formação clínica no curso de Psicologia, existe uma dificuldade peculiar por parte dos estudantes-estagiários que adotam a fenomenologia como referencial clínico. Tal dificuldade se deve à incompatibilidade entre o aporte teórico advindo do curso de Psicologia, ciência esta pautada, tradicionalmente, em paradigmas cientificistas, e a proposta teórico-metodológica adotada pela abordagem supracitada. Como pano de fundo desse cenário, buscamos um aprofundamento no pensamento do filósofo Martin Heidegger, principalmente no que se refere à Era da Técnica. Esta sociedade tecnicista e contemporânea foi abordada para que pudéssemos entender o cenário sócio-cultural em que esta formação está inserida. Diante disso, questionamos se esse panorama no qual a Psicologia Clínica repousa favorece o desenvolvimento de uma atitude fenomenológica e de um olhar diferenciado para os sentidos da existência, tal como é pensado na clínica fenomenológica. Reconhecendo esses limites, tivemos como objetivo de pesquisa compreender a experiência de formação de psicólogos clínicos que desenvolvem estágio na perspectiva fenomenológico-existencial. Tal estudo se configurou, portanto, como uma pesquisa fenomenológico-hermenêutica, baseada na ontologia heideggeriana, e utilizou como instrumento de acesso à experiência a entrevista semiestruturada. Os participantes desta pesquisa foram seis estagiários do curso de Psicologia da UFRN que estavam desenvolvendo estágio supervisionado em psicologia clínica na abordagem referenciada. A pesquisa revelou que a etapa de formação fenomenológico-existencial abre uma possibilidade de descobertas por parte do estudante estagiário que transcendem a dimensão do outro, pois refletem um auto desvelamento enquanto pessoa lançada no mundo. Embora com os desconfortos iniciais pelo próprio formato do currículo do curso e pela liberdade de atuação clínica, característica da fenomenologia, as narrativas demonstraram que tais dificuldades são capazes de instaurar um processo de busca por novos sentidos, sentidos esses que refletem uma busca por uma afinação de suas práticas e um trilhar de caminhos no compasso com a existência do outro.

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ix ABSTRACT

Phenomenology is the focus of this study for its critique of the limits of positivist science, which guides most of the fields of study including Psychology. The clinical formation process in Psychology courses is especially difficult for students-interns who adopt phenomenology as their clinical framework. Such difficulty is due to the incompatibility between theory provided in Psychology courses – a science traditionally based on paradigms of scientism –, and the theoretical-methodological proposal adopted by the aforementioned approach. As a backdrop for our study, we carefully examined the thought of philosopher Martin Heidegger, especially the Era of Technique. This contemporary technicism society was studied so that we could understand the socio-cultural status where this formation lies. Thus, we questioned if this panorama upon which Clinical Psychology rests favors the development of a phenomenological attitude and a special look at the meanings of existence, as defined in phenomenological clinical practice. Knowing such limits, our research aimed at understanding the experience of formation of clinical psychologists who take part in internships in the field of phenomenology-existentialism. Such study was, then, a phenomenological-hermeneutic research based on Heideggerian ontology and used a semi-structured interview as access tool. Six students of the UFRN higher-degree Psychology course who were doing their supervised internship in clinical psychology and the referred approach took part in this research. The research revealed that the phenomenological-existential formation phase opens a door to discoveries on the part of the intern that transcend the dimension of the other, for they show a self disclosure while a person in the word. Despite the initial discomforts caused by the course curriculum itself and by the freedom for clinical practice, so characteristic of phenomenology, the narratives demonstrate that such difficulties may start a process of search for new meanings, which show a search for sharpening their practices and for a path in balance with the existence of the other.

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10 INTRODUÇÃO

A etapa de formação em psicologia clínica sempre foi um tema que me chamou atenção. A riqueza de conteúdos que podem ser explorados, entretanto, não é o que me motivou a estudar esse universo, mas o fato de ter vivido com tanta intensidade esta etapa. Lembro-me do entusiasmo e dos medos, das conversas junto aos colegas estagiários, da troca de experiências, da compreensão de alguns professores que acolhiam nossas demandas de aprendizes, das crenças idealizadas e desmaterializadas com o decorrer do percurso. Eu via o peso da responsabilidade aumentar ao me deparar com as demandas do outro e, com isso, uma autocobrança crescia e ganhava força dentro de mim.

Fora uma etapa de muitas revelações não só do outro, mas de mim mesma enquanto aluna estagiária, psicóloga principiante, pessoa lançada ao novo. Era um início recheado de angústias, mas uma angústia que surtia certa adrenalina. Eu sentia que, embora com as dificuldades evidentes e um aditivo emocional intenso, eu estava me tornando uma profissional, criando, de certa forma, uma nova identidade.

Com o tempo, as dúvidas e os receios foram aos poucos se tornando familiares. Tais sentimentos foram compreendidos como necessários e inerentes a esse processo. Ao dividir as inseguranças com os colegas que peregrinavam o mesmo trajeto que eu, vi-me um pouco em cada um deles e pude perceber quão rico é se lançar em um solo pouco conhecido. Mais rico ainda é poder criar seu próprio caminho neste solo, deixar sua marca, fazer você mesmo uma passagem em que possa vislumbrar o seu conhecimento e sua experiência sendo amadurecidos.

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11 como válvula de escape, apoiando-me no cuidado daqueles que, igual a mim, repartiam lamentos, conquistas, fracassos, más e boas experiências. Neles, me fortaleci, segui a caminhada, tentando desbravar o que havia de mais abundante no ser humano: o poder-ser. Foi no estágio que tive o primeiro real contato com o significado da palavra clinicar. E, nesse contato, tive uma singela noção do sofrimento humano. Participante do plantão psicológico, programa de extensão oferecido pela universidade, além dos atendimentos psicoterápicos exigidos pelo próprio processo de estágio e formação, eu pude constatar que, realmente, as pessoas sofrem. Atendia as mais variadas queixas, as mais variadas pessoas: homens de negócios, alinhados a paletós, homens que, de certa forma, pareciam meio brutos, mas que se tornavam meros seres humanos frágeis e sensíveis quando chegavam ao setting terapêutico; ainda havia aquelas pessoas que sofriam em silêncio, que pareciam passar despercebidas nas salas de aula, no trabalho, no próprio seio familiar, mas quando chegavam ao atendimento, era possível ver a riqueza de sentidos, uma vida pulsando, clamando por atenção e cuidado; havia também aqueles casos familiares em que nos vemos em situações ameaçadoras à medida que a condição do outro parece expressar exatamente o que estamos passando naquele momento, atendimentos que nos retiram da nossa zona de conforto.

Foi sob essa chuva de vivências que pude perceber que participava de um local privilegiado: um local de intensas transformações não só do outro, mas do próprio aluno estagiário. Uma oportunidade única de mergulho nas minhas próprias questões, no que me sustenta: meu eu.

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12 Em meio a esse trajeto, cheguei ao mestrado com toda essa experiência ainda muito intensa dentro de mim. Por isso, ingressei na pós-graduação querendo estudar uma peça fundamental que nos cerca durante todo o processo de formação: a escuta clínica. Constatei que as disciplinas cursadas, os livros e artigos lidos, a fala dos professores narrando suas experiências não foram capazes de traduzir o real significado da escuta, embora tenham sido cruciais na formação de uma representação do que ela seria. Foi somente imersa na minha própria experiência que pude constatar seu peso essencial, algo que assinala e reafirma nossa profissão como singular. Queria, então, estudar como os estudantes compreendiam essa dimensão da escuta, como interpretavam essa função no dia a dia profissional e, por que não, como isso repercutia em sua vida pessoal.

Contudo, já inserida no mestrado, fui me deparando com questões maiores que abarcavam o universo da formação para além da escuta clínica. Deparei-me com a formação específica daqueles que retiram da escuta e de sua própria atitude o aparato fundamental para o trato com o outro: a formação clínica de base fenomenológico-existencial.

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13 E aqui, deparamo-nos com a questão chave de nosso trabalho. Acreditamos que os alunos que optam pela abordagem fenomenológico-existencial perpassam por alguns desafios específicos no processo de formação por estarem atrelados a uma corrente que muito destoa do que é pregado pela Psicologia. Os próprios currículos dos cursos de psicologia ainda parece estarem pautados em paradigmas cientificistas, reiterando um aporte teórico que, muitas vezes, é incompatível com alguns preceitos traçados pela fenomenologia. Deste modo, surgem algumas questões de pesquisa: como estar imerso na Psicologia e, ao mesmo tempo, precisar desconstruir alguns pressupostos científicos já estabelecidos? Quais as implicações de uma formação baseada em uma atitude fenomenológica diante de um contexto cada vez mais técnico? Como desempenhar o exercício da prática psicológica se não compartilhamos da ideia de que o homem é passível de explicações apriorísticas? Tendo tais questionamentos em vista, possuímos, como objetivo central de nossa pesquisa, compreender a experiência de formação de psicólogos clínicos que desenvolvem estágio supervisionado na perspectiva

fenomenológico-existencial.

Todavia, vale ressaltar que não partimos do pressuposto de qual visão ou abordagem alcança com maior proximidade e eficiência a demanda do ser humano. Expressamos, tão somente, uma posição reflexiva sobre algumas diferenças que se apresentam nessa formação, pois reconhecemos ser impossível nos reportamos a uma atuação clínica que desmereça o próprio berço de onde tudo isso surgiu: a própria psicologia.

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14 intimamente entrelaçada ao modelo biomédico, repercutindo essa influência em sua própria linguagem (“diagnóstico”, “paciente”, “clínica”, “normalidade”, etc), bem como na

postura do profissional de psicologia que, ao ser reconhecido como o detentor do conhecimento capaz de curar, diagnosticar e aconselhar, muitas vezes reforça um comportamento submisso do outro. Apesar de haver muitas outras interfaces nessa conjuntura, como a herança social e cultural que o mundo traz em sua bagagem, acreditamos que esse contexto, extraído dos escritos de Michel Foucault (1980) em “O

nascimento da clínica”, pode ser referenciado no trabalho em questão para nos ajudar a entender o que hoje conhecemos por psicologia clínica.

Atualmente, é muito extenso o universo de correntes que versam sobre novos posicionamentos e visões quanto às ações e posturas do psicólogo clínico. Com isso, ainda no capítulo de abertura deste trabalho, ressaltamos que a prática sobre a qual nos debruçaremos se trata de uma prática calcada numa atitude fenomenológica, postura esta que se revela como motor das práticas clínicas fenomenológico-existenciais.

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15 aprendermos uma nova maneira de pensar que não seja a citada tão somente pela metafísica. E complementa: “Isto não significa um abandono da ciência, mas, ao contrário,

chegar a uma relação refletida, conhecedora com a ciência e verdadeiramente meditar sobre seus limites” (2001a, p. 45).

No terceiro capítulo, procuramos entender de forma breve o mundo contemporâneo no qual a psicologia clínica vem tecendo sua prática e, para isso, tivemos o respaldo da Era da Técnica, horizonte de nosso destino, tal como pensado por Heidegger. Ele acredita que a nossa existência, nossos diálogos, nossos fazeres e saberes se dão a partir de um referencial marcado pela técnica moderna e, nesses termos, as práticas clínicas psicológicas não estariam isentas de tal influência. Por outro lado, coube questionarmos se não haveria alternativas frente a essas considerações. E, para isso, fizemos uso das ideias de Rodrigues (2004), o qual diz que: “muito embora não possamos fugir de nosso destino,

já que somos todo o tempo provocados a pensar o real a partir de seu horizonte, é possível, no entanto, nele meditarmos, para que possamos constituir com ele uma relação libertadora” (p. 38).

Diante de um contexto social, econômico e culturalmente marcado pela tendência tecnicista, ainda no terceiro capítulo, buscamos pensar sobre a psicologia clínica diante deste panorama, ou seja, diante de um contexto que, apesar de nítidos avanços, é marcado também pela padronização do pensamento que calcula e pelo empobrecimento de uma ação reflexiva e questionadora.

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17 1. (RE)CONTANDO A HISTÓRIA: O SURGIMENTO DA CLÍNICA E BREVE RETROSPECTO HISTÓRICO DA PSICOLOGIA CLÍNICA

Fazer menção a qualquer escopo teórico e prático necessita de uma explanação que demonstre os pilares que sustentam tal entendimento. Com relação à psicologia clínica, não seria diferente. Seu palco de saberes evidencia que esse ramo da psicologia fora constituído por uma gama histórica, social e científica que lhe proporcionaram ser reconhecida, nos dias de hoje, como uma “sub-disciplina” essencial no campo da

Psicologia.

Na opinião de Goodwin (2005), estudar a história que edifica o conhecimento da psicologia clínica recria uma tarefa que busca, em última instância, respostas para uma única pergunta: “O que significa ser humano?” (p. 22). E falar da psicologia clínica, sem

sombra de dúvidas, é falar das nuances da humanidade. É diante desse questionamento, motor de nossas inquietações, que entendemos ser necessário fazer um pequeno retrospecto histórico de como se deu o início da clínica médica e sua evolução, posto que sua história seja vista como marco inicial para que possamos falar da psicologia clínica.

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18 Todavia, antes da medicina se tornar uma estrutura ordenada do saber, ela era encarada como uma relação que se dava do indivíduo para consigo mesmo. Quando se era tomado por alguma enfermidade, as descobertas individuais (posições ou práticas que aliviavam as dores e o sofrimento) eram perpassadas pelas pessoas. Uma rede de comunicação, então, formava-se, dando lugar às sugestões instintivas de cada indivíduo. Essa relação que dava voz ao próprio instinto e à sensibilidade era experimentada e vivida pelo indivíduo antes de ser tomada por um contexto social. Indistintamente, todos praticavam essa “medicina”.

Por outro lado, Foucault (1980) apresenta o nascimento da clínica, situando-o na França, na passagem do século XVIII para o século XIX. É bem verdade que já existia clínica médica antes mesmo dessa época. Na medicina grega do século V, por meio de Hipócrates, já se exerciam os fazeres médicos por meio da anamnese e da observação clínica. Porém, o que Foucault ressalta quando data o surgimento da clínica diz respeito a um novo discurso de estrutura científica sob o qual a clínica passou a ser regida. Tratava-se, sobretudo, do acúmulo de conhecimentos que passou a ser adquirido naquele período a partir da investigação, e não mais a partir da constatação (Santos, 2001).

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19 sistemas e nosologias (Schneider, 2002). Nesse caso, o paciente era apenas um fato exterior em relação à doença, pois o exercício médico abstraía o indivíduo e se voltava ao real determinante patológico. Em outras palavras, o médico, no intuito de conhecer a doença, subtraía o sujeito para compreender os efeitos evocados das propriedades efetivas que caracterizavam as enfermidades.

Como diz Foucault (1980), “não é o patológico que funciona com relação à vida, como uma contranatureza, mas o doente com relação à própria doença” (p. 7). E ainda complementa:

O conhecimento das doenças é a bússola do médico; o sucesso da cura depende de um exato conhecimento da doença; o olhar do médico não se dirige inicialmente ao corpo concreto, ao conjunto visível, à plenitude positiva que está diante dele – o doente -, mas a intervalos de natureza, a lacunas e a distâncias em que aparecem como em negativo os signos que diferenciam uma doença de uma outra, a verdadeira da falsa, a legítima da bastarda, a maligna da benigna (p. 7).

As ações do médico, ao final do século XVIII, levam-nos a entender que a preocupação estava direcionada, portanto, a manter, acima de tudo, o vigor e a fluidez do organismo, ao passo que as causas que interferiam nessa atividade - o que ocasionava os sintomas - não eram primordialmente colocadas em destaque.

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20 que assistia o pobre, lugar de preparo para a morte ou mesmo o espaço para segregar os indivíduos “incômodos” do restante da população, passou a ser um espaço aberto ao

exercício médico, um espaço pautado na cura e também no ensino (Foucault, 1980; Sevalho, 1993; Schneider, 2002).

Diante de tais transformações, concordamos com alguns autores (Foucault, 1980; Aguiar, 2001) que o advento da anatomia patológica foi um grande salto epistemológico. A abertura dos cadáveres foi uma prática difícil de ser implementada, haja vista a dificuldade nos primeiros estudos devido à religião, à moral, ao preconceito e ao próprio medo dos mortos diante de seu desconhecimento. No entanto, as descobertas que vinham à tona demonstravam a importância de tais procedimentos. Mongagni, com o estudo de órgãos, e Bichat, na classificação e exame dos tecidos, bem como no uso de comparações entre órgãos sadios e órgãos alterados, revelavam que dissecações e autópsias eram procedimentos cruciais para a consolidação de uma medicina científica.

Mas é importante também ressaltar que o ato valorativo do cadáver e da doença retirou a voz do paciente, tornando seu discurso quase que descartado, o que lhe designou um papel passível e impotente. Aguiar (2001) corrobora esta concepção quando afirma que:

A eleição do cadáver como objeto de investigação é determinante dessa clínica – experimental – que despreza o discurso do paciente. O paciente deve se calar sobre a doença que ele porta (ou sobre sua condição de doente) (...) Se nos últimos dois séculos a medicina moderna desvendou segredos jamais alcançados até então, é certo que a marca da patologia anatômica faz-se ainda hoje notar na relação que muitos médicos mantêm com seus pacientes (p. 610).

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21 tinha sua situação agravada com aqueles que eram considerados desprovidos de razão – os loucos -, cabendo a esses apelar à própria sorte nos grandes asilos.

Talvez seja nessa esfera situacional da sociedade que a psiquiatria encontra abstrações de argumentos para ser instituída. Apesar de a loucura ter sido analisada como atributo da medicina, não havia padrões ou significados esclarecidos, tampouco nosografias sistemáticas que explicassem os transtornos da mente. O entendimento que se tinha era apenas algumas especificações de sintomas, mas não havia um claro pensamento médico-científico sistematizado sobre a doença mental (Pacheco, 2003).

Sob a necessidade de ter um parâmetro organicista e classificatório, surge a psiquiatria que, embora desenvolvida pelas bases epistemológicas da medicina, altera o conhecimento singular do indivíduo doente. As doenças que não apresentavam a existência de lesões anatômicas e regularidades nas sintomatologias ganharam lugar de destaque nos estudos da psiquiatria e importância no campo do saber.

Emil Kraepelin, indubitavelmente, foi o grande responsável pela criação das bases do sistema de classificação na psiquiatria, conferindo às desordens genéticas e biológicas o lugar das grandes causas das doenças mentais. O psiquiatra não atribuía aos fatores psicológicos e sociológicos a causalidade das doenças (Mackay, 1977). Todavia, com os avanços da psiquiatria, vimos emanar a presença de perspectivas tanto orgânicas como psicológicas na tentativa de explicar a origem das doenças mentais.

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22 Mackay (1977, p. 65), diz respeito à “substituição da camisa de força do tipo mecânico por outro do tipo farmacológico”. Ainda assim, o uso desses medicamentos auxiliou na

realização da grande ambição de Philippe Pinel, mantendo no convívio social as pessoas que sofriam de perturbações psicológicas.

Mas esse não foi o único intuito do médico psiquiatra. A transformação metodológica inserida por Pinel diz respeito à observação empírica sistemática e ao tratamento moral. Ao propor que o sujeito alienado seja vítima de desordens psíquicas, “Pinel deu a eles o direito de serem ouvidos e conferiu à medicina a necessidade de

entendê-los e tratá-los humana e respeitosamente” (Pacheco, 2003, p. 153).

Aos poucos, a psicologia foi se inserindo nesse âmbito da psiquiatria por meio do movimento romântico literário, marcando o reflexo da subjetividade do eu, ascendendo um lado que, até então, fora encoberto pelo retrato de um ser puramente mecanicista. Todavia, a psicologia, por muito tempo, fora considerada apenas uma disciplina a serviço da medicina e da filosofia, cabendo a ela, de forma técnica, criar instrumentos que pudessem prever e controlar os comportamentos. Assim era reconhecida a psicologia enquanto teoria e aplicação, mesmo competindo aos médicos essa aplicabilidade. “O psicólogo era, estritamente, um técnico” (Morato, 1999, p. 63).

Foi somente com o advento da psicanálise e o seu modo prático de tratar o sujeito que a psicologia pôde desfazer-se, em partes, das amarras técnicas a que estava vinculada. Diante das incessantes tentativas de investigar o que ocorre e como ocorre, pela primeira vez foi dada ênfase ao como se sente.

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23 insere-se a noção dos “conceitos mentais” para explicar sintomas que, em nível consciente, não ocorriam (Aguiar, 2001).

Freud, em meio a esses estudos, destaca-se pela descoberta do inconsciente e pela instauração de uma técnica inovadora baseada na fala que, segundo ele, permitia o aparecimento espontâneo de conteúdos inconscientes: a técnica da associação livre. Mesmo possuindo formação médica, Freud, incapaz de reverter a tradição organicista que imperava nos estudos psiquiátricos naquele tempo, desenvolve seu próprio método de investigação - o método psicanalítico - e funda um movimento independente que, aos poucos, ganha novos aliados, dando-lhe prestígio no espaço científico (Pacheco Filho, 2004).

Logo, o discurso do sujeito, por muito tempo negligenciado pela clínica médica, como já retratamos aqui, passa a ser um recurso importante na clínica. A doença e os sintomas começam a ser contextualizados a partir do referencial do paciente. Tal concepção provoca profundas mudanças na clínica em geral, pois as doenças mentais deixam de ser tratadas apenas por descrições e listagem de sintomas e passam a ser entendidas também por um movimento ativo e dinâmico do sujeito.

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24 Tal aproximação gerou ganhos inestimáveis para ambos os campos do saber, porém, ainda que houvesse esse movimento, a aproximação entre psicologia e psicanálise não era um intento consensual. Muitos temiam que essa inter-relação descaracterizasse o que a psicanálise possuía de mais original – o modelo de prática clínica – atribuindo como sua o peso cientificista e pragmático que acreditavam a psicologia americana já possuir (Pacheco Filho, 2004).

De certa forma, o movimento que desfavorecia a adesão das duas correntes continha um receio real, pois a psicologia se desenvolvia pelos entraves da cientificidade positivista que eram estabelecidos na época e aderia, cada vez mais em seu arcabouço teórico e prático, aos ditames das ciências naturais.

A Psicologia, no momento em que abraçou o modelo médico, contraiu como herança epistemológica um saber positivista, reforçando um serviço técnico e científico no tratamento ao sofrimento humano. Não é à toa que hoje o significado da palavra “clínica” transpõe como algo dado diante de todos os acontecimentos históricos que culminaram na sua compreensão atual. Os próprios discursos que transitam pelas denominações de “psiquismo”, “desvio”, “anormalidade”, “paciente” demonstram o sentido do exercício da

Psicologia habitualmente impregnado no senso comum. Também não precisamos de esforços para assinalar a clientela que chega aos consultórios. Esta, costumeiramente, traz apelos que caracterizam a visão médica pelos discursos que transitam no almejo em descobrir qual o problema ou a doença que portam, além, é claro, do anseio pela cura.

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25 Isso pode ser evidenciado pela influência sofrida na década de 30, quando, em meandros do desenvolvimento da psicologia, surge o profissional psicotécnico, um profissional competente para avaliar os aspectos psíquicos dos indivíduos. Numa progressão dessa imagem social do psicólogo, nas décadas de 60 e 70, os modos de atuação são reconhecidos por sua técnica tal como afirmam Andrade e Morato (2004):

A Psicologia era valorizada em seus aspectos técnicos e científicos, alienada do processo histórico e político no qual estava inserida. Tratava-se de um produto técnico a ser oferecido à população e, para que esta oferta fosse bem sucedida, o psicólogo deveria ignorar os possíveis desafios e críticas à sua atuação e compactuar com os poderes instituídos a fim de garantir a reprodução do sistema social (p. 345).

Em meio a esse contexto marcado por determinações científicas, históricas e culturais, Dutra (2004) desenvolve uma discussão que resgata a necessidade de se pensar nas novas configurações da Psicologia Clínica na contemporaneidade. Parte-se da perspectiva de que a clínica psicológica dos moldes tradicionais, não mais se encaixa de maneira satisfatória na sociedade moderna. Diante das transformações do homem e do mundo, a clínica psicológica, ao ocupar novos espaços, também acaba se deparando com outras realidades. Desse modo, entendemos que o modelo de atuação clínica atravessa um momento de grandes reformulações e reflexão.

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26 privilegiado destes cruzamentos. Espaço no qual torna-se impossível recortar as práticas psi, ou lhes possibilitar localizações definitivas” (Silva, 2001, s/ p.). Figueiredo (2009)

também denota que os séculos que sucederam a locação da psicologia no campo do saber foram marcados por tal dispersão. “De lá para cá, o que assistimos fora a consolidação de

microcomunidades relativamente independentes, cada qual com suas crenças, seus métodos, seus objetivos, seus estilos, suas linguagens e suas histórias particulares” (p. 17).

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27 2. FENOMENOLOGIA: UM MARCO DISTINTO DA CIÊNCIA MODERNA

Neste capítulo, não temos o objetivo de explicitar de forma exaustiva os preceitos basilares da Fenomenologia, visto a ampla magnitude de trabalhos com esse intuito. Tão logo, possuímos como finalidade máxima tentar compreender o piso que ampara a Fenomenologia enquanto marco diferencial da metafísica, modelo hegemônico instaurado em nossa civilização.

O percurso que apontamos até então demonstrou que a ciência médica esteve pautada em um pensamento positivista. Esse paradigma está entrelaçado à crença de que o alcance da verdade só é possível por meio da previsibilidade, da mensuração e do controle dos fenômenos ocorrentes no mundo. A objetividade, assim, revelou verdades independentes das nuances da vida sensível, sendo esta última considerada pela ciência moderna um aspecto desvalorizado como instrumento para expressão do real.

Na edificação de tal pensamento, não podemos deixar de mencionar a figura de Descartes como o grande impulsionador ao estabelecimento da ciência moderna. Suas ideias pregavam que todo conhecimento cotidiano advindo da experiência imediata e do senso comum eram informações enganadoras devido a sua pouca precisão e confiabilidade, ou seja, tais noções passaram a ser descartadas diante dos parâmetros científicos. Na busca de regularidade e controle do conhecimento, o método experimental de pesquisa tornou-se, então, por excelência, o principal meio de acesso à verdade utilizado pelas ciências (Mancebo, 2004; Souza, 2007).

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28 Por conseguinte, a Psicologia, na intenção de também obter status científico, adotou os preceitos positivistas às suas pesquisas, aderindo aos processos de quantificação e generalização dos fenômenos por meio do controle de variáveis e do distanciamento calculado do pesquisador diante do seu objeto de estudo (Cornejo, 2005).

Porém, com esse cenário montado, a Psicologia começou a ser questionada quanto a sua possibilidade de neutralidade e objetividade. Como indagado por Minayo (1994), nas ciências humanas (logo, a Psicologia), há possibilidade de tratarmos de uma realidade da qual nós, seres humanos, somos agentes? Afinal de contas, os objetos de nossas pesquisas possuem um substrato comum de identidade com o pesquisador, que é a sua própria condição de coexistência. Como falar em leis inflexíveis e universais diante da imprevisibilidade do ser humano no seu processo de vir-a-ser?

O debate referente à cientificidade da Psicologia, como apontamos nas palavras de Roehe (2006), pode ainda ser mais ousado:

Talvez nenhuma outra área do conhecimento debata tanto sua cientificidade como a Psicologia. Talvez porque nenhuma outra área do conhecimento se distancie tanto do sujeito e do objeto da tradição como a Psicologia. E porque, talvez, a Psicologia seja a área do conhecimento menos informada a respeito daquilo que estuda. E também porque, talvez, a Psicologia estude o mais complexo dos objetos: aquele que nunca é objeto (p. 155).

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29 sentidos possuem seus precedentes e que muitos desses ocorrem nas relações e interações sociais (Liberman, 2009).

Ferreira (2010) aponta que, na busca por fundamentos, a Psicologia ficou marcada por atuações mais técnicas e científicas que ressaltavam dicotomias entre sujeito/objeto, mente/corpo. Na Fenomenologia, por outro lado, essa divisão não ocorre, pois sujeito e mundo não se comportam como entidades separadas, mas como uma combinação indissociável, integradas.

A importância da Fenomenologia, portanto, é destacada diante da dimensão de sua crítica aos limites da ciência vigente, instituindo uma revolução paradigmática na medida em que oferece outra epistemologia e outro método para as investigações científicas, tal como corrobora Holanda (2006).

Esse mesmo autor nos ajuda a pensar a Fenomenologia como uma iluminação da realidade humana na medida em que somos abertos a esta realidade. A vivência com o mundo, dessa forma, passa a ser integral. O fenômeno, por outro lado, nada mais é do que aquilo por si só, aquilo que se mostra e se revela, despido de representações, julgamentos ou qualquer tipo de notificação que tente objetivá-lo. Para o autor, a Fenomenologia, portanto, é ir às coisas mesmas, é envolvimento, é um modo de existir e de se colocar no mundo que não implica em aprisionamento, mas fazer parte desse mundo.

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30 bem como pelo conceito de intencionalidade1 de Franz Brentano, propôs uma análise profunda do conhecimento que vai além das fronteiras da Psicologia (Holanda, 2006; Forghieri, 2011). Refuta o psicologismo (as psicologias ditas científicas) e o logicismo (ciências que residem nas leis da lógica) devido à incompletude no domínio de suas investigações e sugere a Fenomenologia afirmando que só é possível alcançar o fenômeno em sua essência da forma como ele se apresenta, e não por meio de premissas ou hipóteses. Além disso, almeja, por meio da Fenomenologia, tornar a Filosofia uma ciência de rigor como base para todos os tipos de saber e justifica: “A filosofia é, em todos os sentidos e de pleno direito, a única ciência absolutamente rigorosa porque fornece a si própria os seus fundamentos e os de todas as outras ciências, sejam elas puras ou empíricas” (Husserl, 1980, p. XVIII).

Por se tratar de uma mudança no trato com a realidade, tal projeto enfrentou (e talvez enfrente ainda hoje) percalços para se firmar na ciência, pois a tradição positivista parece estar impregnada não só no campo das pesquisas, mas no próprio estilo de vida da sociedade. Porém, apesar de estarmos imersos nessa tradição, o mundo em que vivemos está em constante transformação e, acredita-se, jamais alcançaremos um local estático que nos possa fornecer total segurança. Critelli (2009) já dizia se tratar da sensação de inospitalidade que o mundo naturalmente nos oferece. Assim, dentre as várias invenções, uma das ideações humanas com importância basal para o homem na contemporaneidade, destinado ao resgate da segurança e a consequente abolição da sensação de angústia, foi a concepção de ciência moderna. De acordo com a proposta da metafísica, na tentativa de desvendar e varrer todos os aspectos abrigados pela impermanência da existência, a ciência da modernidade concebeu um método que se apoiava na redução da complexidade por

1

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31 meio de instrumentos e técnicas operacionais. A matemática, em decorrência, passou a abastecer a ciência como instrumento fundamental de análise e como lógica de investigação. A verdade de algo estaria relacionada, então, pela sua capacidade de mensuração e decodificação dos fenômenos.

Ao contrário disso, para se chegar ao fundamento do conhecimento de todo o saber, Husserl tomou como ponto de partida o retorno ao mundo vivido, tendo em vista a distorção que pré-concepções remontavam sobre a experiência sensível. De acordo com Ferreira, Calvoso & Gonzales (2002), citando a compreensão de Habermas (1983), o mundo vivido foi “colonizado” pelo uso da razão, ou seja, o conhecimento sensível foi

desvalorizado pelo mundo sistêmico através de ações da tecnociência. Devido ao que foi pregado na ciência moderna, o conhecimento passou a ser fruto de observações sistemáticas rigorosas e isentas de valores do investigador. Era incumbido à ciência desenvolver representações do real a partir de traduções por meio de formulações matemáticas. Husserl, então, parte do entendimento de que o existir humano está repleto de aspectos contrastantes, pois os objetos, determinados em si mesmos, acabam se sobrepondo à vivência intuitiva. Dessa maneira, para a perspectiva fenomenológica, os fenômenos psíquicos demonstrados pelos sujeitos não apresentam apenas manifestações passíveis de observação, mas contêm outros aspectos que permanecem ocultos (Forghieri, 2001; Ferraz, 2004).

É exatamente nessa linha de raciocínio, na possibilidade que o fenômeno tem de se mostrar e se ocultar, no caráter de impermanência da cotidianidade de sua existência, que se denota seu aspecto fenomênico. “O mostrar-se é fenomênico porque ao mesmo tempo

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32 fenômenos. A relatividade instaurada em toda manifestação de um fenômeno, ou seja, a impermanência existente nas coisas do mundo é recusada pela metafísica e tratada à risca, de modo que a concisão de suas mensurações tenta aplacar qualquer possibilidade de relatividade (Critelli, 2009). Em outras palavras, a ciência moderna se apoia na ideia de que existe uma realidade externa fundamentada de regularidades e regida por leis universais que reduzem ou chegam a eliminar a complexidade dos fenômenos. Mas para que isso seja possível, é necessário um caráter excludente dos valores humanos nos processos de investigação.

Todavia, a ênfase do caráter próprio do fenômeno é o que nos chama atenção nas palavras de Roehe (2006) quando ele tange a seguinte crítica:

Pretender excluir o nível fenomênico dos procedimentos científicos ou trabalhar supondo ser possível evitar referências à presença do pesquisador é o mesmo que separar o ato de conhecer do modo de ser humano. É a tentativa de subtrair ao homem uma faceta que lhe determina ontologicamente. Cria-se uma situação absurda: o pesquisador atua para conhecer, negando sua própria presença cognoscente. Assim, nenhum conhecimento seria possível. (...) Se o homem é iluminando (deixando aparecer) o mundo, qualquer procedimento científico que exclua a presença humana apaga a luz, consequentemente nada poderia ser visto” (p. 157).

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33 Para Critelli (2007) “No caso da fenomenologia, este horizonte em que o ser pode

ser compreendido na sua impermanência, no seu aparecer/desaparecer, é a existência humana mesma, entendida como coexistência (singularidade e pluralidade) em seus modos de ser no mundo” (p. 33).

Todavia, a discussão aqui travada não trata de assinalar uma única via de acesso à verdade em detrimento da outra, ou seja, não estamos denotando a ideia de que os feitos da metafísica se dão por meio de inverdades. Ao contrário, reconhecemos que a ciência moderna desenvolveu importantes revelações acerca do real com métodos quantitativos bem definidos e pela descrição de fenômenos a partir de sua própria linguagem. Todavia, nas palavras de Critelli (2007), “Não se trata, portanto, de provar o quão errada é a

perspectiva da metafísica, mas o quão única e absoluta ela não é” (p. 12). Diz respeito, sobretudo, a lançar outro olhar sobre os fenômenos e propor outras vias de acesso a esses mesmos fenômenos.

Embora o projeto de ciência moderna ainda pareça ocupar o lugar de destaque nos feitos científicos, muitas são as discussões quanto ao modelo de ciência instaurado na modernidade. Ao que se refere à fenomenologia, porém, alguns autores (Ferreira, Calvoso & Gonzales, 2002; Holanda, 2006) acreditam se tratar de uma mudança paradigmática tal como Thomas Kuhn explicitava. Isto se deve à recorrência do discurso que defende a impossibilidade de se reduzir a natureza a uma única linguagem, sendo esta dirigida demasiadamente pela matemática e pela experimentação.

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34 2.1 A Ciência Moderna e algumas considerações heideggerianas

Martin Heidegger, filósofo alemão que, por um tempo, fora seguidor de Edmund Husserl, caracterizou uma parcela de pensadores que defendia o questionamento frente à crença irrefletida na representação exata do conhecimento por meio de teorias específicas. Para ele, na referência a uma ontologia, a compreensão do ser não se dá por meio de sistemas de conceitos fechados e preestabelecidos. Contudo, a ciência veio demonstrando uma preocupação em descobrir o que é o ser, e não qual o seu sentido. Dessa forma, ao tentar desvendar o que ele é, a ciência acabou por considerá-lo como algo previamente dado, o que, por sua vez, descaracterizou seu âmbito ontológico2 ao reportá-lo como um ente qualquer (ôntico3).

O ser é um conceito que, por si só, é evidente por si mesmo. O ser é um conceito universal e, ao mesmo tempo, indefinível. Por outro lado, ele não é algo que possa ser encontrado em um objeto concreto. Na realidade, para Heidegger, o ser é impossível de ser vislumbrado pela ciência convencional, pois o mesmo possui uma identificação própria que não cabe apenas à vontade do homem ser investigado ou não.

Mas para que possamos dar prosseguimento ao pensamento de Heidegger quanto à ciência moderna e suas relações com o ser, cabe delinearmos algumas breves linhas sobre a existência humana tal como pensada pelo filósofo.

2

Pa a Heidegge , As a a terísticas fundamentais que possibilitam as várias maneiras de algo se to a a ifesto, ealizado, são a uilo a ue ha a de o tol gi o p. . E Seminários de Zollikon, Heidegger atribui como ontológico as nuances de alguns fenômenos não perceptíveis sensorialmente, pois estes já se mostram sempre, como, por exemplo, o existir de algo.

3

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35 Heidegger considera o homem como Dasein, como ser-no-mundo. Em sua análise: “A expressão composta “ser-no-mundo”, já na sua cunhagem, mostra que pretende referir

-se a um fenômeno de unidade” (1927/2002, p. 90). Assim, o homem e o mundo não são entidades que podem ser separadas, tomadas como elementos distintos. O ser-no-mundo não é um ser “dentro do mundo”, contido em um determinado espaço, mas sim um ser

lançado em sua facticidade onde o mundo se revela como sua extensão.

O mundo, no qual o ser humano existe, é anterior ao mundo espacial, topográfico, interior. “Ser-no-mundo” são as múltiplas maneiras que o homem vive e pode

viver, os vários modos como ele se relaciona e atua com os entes que encontra e a ele se apresentam (Heidegger, 1981, p. 16).

Sendo uma mescla indissociável, homem e mundo tornam-se uno, parte fundada e fundadora um do outro. Logo, percebe-se que a ideia da ciência moderna em dissipar estes dois elementos em sujeito e objeto institui algo inadmissível para o pensamento de Heidegger, visto que o Dasein se compõe no mundo e, portanto, não pode ser pensado como à parte deste. O próprio termo facticidade, aspecto que denota abertura e lançamento, já denota esse entendimento, pois a facticidade não revela um ser simplesmente dado, mas um caráter ontológico assumido na existência, parte constituinte do Dasein.

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36 Vê-se, portanto, que o Dasein é um ser de relação que sempre está inserido numa gama infinita de possibilidades ao seu redor, um ser que cria e recria sentidos e, portanto, não há nada definido e determinado, pois o ser está sempre na incompletude em seu processo de poder-ser.

Posto isso, o projeto científico natural, como pensado por Heidegger, sempre possuiu o objetivo de definir o ser-homem através de um método que, categoricamente, não foi pensado para alcançar a dimensão de sua essência particular. A única viabilidade de acesso ao fenômeno do ser do homem, quando muito, atinge apenas o ente natural. Com isso, o filósofo passou a indagar o rigor em considerar verdadeiro somente aquilo que estava subordinado a contínuas vinculações causais ou que correspondesse a condições de mensurabilidade. “Por que não haveria realidades impossíveis de serem medidas com exatidão? Uma tristeza, por exemplo” (2001a, p. 46). O que o filósofo salientava era que

determinados estados de humor e variáveis não poderiam ser considerados objetos, visto que o homem escapa à possibilidade de qualquer apreensão premeditada pela ciência moderna. “No máximo, posso tematizá-los” (p.158). E conclui:

Para o rigor de uma ciência é necessário que em seu projeto e em seu método ela corresponda a seu objeto. Mas nem toda ciência rigorosa é necessariamente ciência exata. A exatidão é apenas uma forma determinada do rigor de uma ciência, pois só há exatidão quando o objeto é colocado de antemão como algo mensurável. Entretanto, se há coisas que por natureza resistem à mensurabilidade, então toda tentativa de medir sua determinação pelo método de uma ciência exata é impertinente (p. 158).

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37 procedimentos empíricos, ensinando que, se partirmos de determinado princípio e seguirmos as devidas instruções, certamente chegaremos ao destino previsto. O método passou a designar um caminho, caminho este considerado correto para obtenção do real. O mesmo autor, porém, referenciando Heidegger, aponta que o filósofo sugere outra maneira de correspondência aos entes que até poderia ser considerado como método, porém, em um sentido mais amplo, designando que o caminho mais viável é traçado à medida que caminhamos. Isso designa estar aberto, suscetível às relações e às coisas que vêm ao nosso encontro. Como também destaca Feijoo (2000), o método, “Na ciência moderna entende

-se como repre-sentação; na fenomenologia é o sentido” (p. 100).

Todavia, o sentido, o caminho, a abertura denotam certa vulnerabilidade que não é bem quista pela ciência tradicional, pois, pela sua perspectiva, inviabiliza qualquer tentativa de apreensão do fenômeno. A essa forma de gerir objetivamente o conhecimento, Heidegger denominou por pensamento calculante. Com o império do pensamento calculante nos costumes sociais e frente às ciências, o mundo passou a ser compreendido e convertido em recursos essencialmente técnicos, a razão passou a ser avaliada como sinônimo de perfeição e eficiência, ao passo que tudo o que foge de seu domínio, faz-se secundário frente a essa forma de pensar (Feijoo, 2004; Ferreira, 2010).

Sá (2002) coloca que essa maneira de representação do real, ainda que sugira total semelhança aos feitos das ciências exatas por procurar um sentido para a realidade a partir do cálculo, não se resume apenas a esse tipo de ciência. Da mesma forma, as ciências humanas também estão submetidas a esse modelo, pois:

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38 Desse modo, o pensamento calculante atua de modo avaliativo e criterioso com relação aos fenômenos. Amparando-se no discurso de atingir resultados eficientes, assim como as inquestionáveis e reconhecidas aquisições obtidas pelas pesquisas científicas, o pensamento calculante, gradativamente, desenvolveu-se no sentido de tornar-se o único modo fidedigno de pensar.

É de se reconhecer, vendo por esse lado, que tal forma de pensar parece ter-se encaixado muito bem diante do mundo contemporâneo, tendo em vista o deslumbramento do homem diante do que aqui chamamos de Era da técnica. As coisas só parecem ter valor e garantia quando submetidas à aprovação da ciência tradicional, quando solucionadas de forma eficaz, quando encaixadas pelas presunções da razão. O mundo atual, regido por essa tradição tecnicista, parece reduzir o pensamento calculante ao que a técnica desvela.

Segundo Rodrigues (2004), fazendo menção a esse assunto, o pensamento calculante “é o mesmo pensamento representacional, que provoca a natureza a se desvelar enquanto “objeto” passível de ser calculado e que, em última análise, possibilita aquilo que entendemos como técnica moderna” (p. 38).

Contudo, de acordo com Heidegger, para que possamos pensar sobre essas questões, é necessário apresentar outro modo de abertura de fundamental importância diante desse contexto contemporâneo: o pensamento meditante. Como aponta Sá (2002), ao contrário do pensamento calculante, meditar sobre as coisas diz respeito ao que Heidegger denomina por Gelassenheit, traduzido como desapego, serenidade. Refere-se, sobretudo, a desprender-se das representatividades e adotar uma atenção mais livre, paciente e reflexiva sobre as coisas.

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39 mesmo tempo, sim e não à técnica, utilizando seus recursos sem deixar que os mesmos nos escravizem. Nesse sentido, a serenidade, como disposição do pensamento meditativo, caracteriza uma renúncia à vontade, permitindo uma entrega, em que as coisas podem vir à luz por si mesmas, não precisando estar sujeitas a horizontes mensuráveis (Sá, 2002; Rodrigues, 2004). Meditar requer estarmos abertos à experiência e empenharmo-nos na difícil tarefa de questionarmos explicações que reduzam a realidade a meras representatividades.

Porém, diante de uma tradição tecnicista, estaríamos nós aprisionados pela técnica e reduzidos ao pensamento que calcula? Ainda que pareça inoportuno dizer isso, a técnica não é o grande problema, mas sim a relação que é estabelecida para com ela, pois “Renunciar ao pensamento meditante e assumir o pensamento simplesmente calculante é estar entregue a técnica” (Ferreira, 2010, p. 48).

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40 3. A QUESTÃO DA TÉCNICA EM HEIDEGGER

Começos do Terceiro Milênio! Profusão exuberante de tecnologia, patamares científicos inéditos, resultados econômicos estrondosos, produção magnífica de bens de consumo. Olhando só para as conquistas, tudo é superlativo!

(Cortella, 2009, p. 15)

Heidegger, no primeiro capítulo de sua coletânea Ensaios e Conferências, publicada no ano de 1954, despende seus escritos no intuito de retratar a modernidade e sua tradição com relação à técnica. O homem sempre procurou dominar a técnica de maneira a suprir suas necessidades, criando novas aparelhagens e recursos, estreitando, dessa maneira, um relacionamento direto para com ela. No entanto, esse desejo de manipulação se torna mais imperativo à medida que a técnica ameaça fugir do controle e das rédeas humanas. O filósofo então sugere uma maneira mais livre de se relacionar com a técnica a partir do questionamento de sua essência, pois a técnica e sua essência são coisas distintas.

No início dessa empreitada, Heidegger (2001b) medita sobre a essência da técnica e retoma a compreensão consensual que a sociedade em geral possui da mesma: a técnica nos leva à conotação de instrumentalidade, um meio para um fim e, portanto, possui uma determinação antropológica. Ela está intimamente relacionada com a fundamentação das coisas do mundo e influenciando a relação do homem com o mundo.

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41 com essa concepção instrumental, sendo a técnica um meio para um fim, deduz-se que alguma coisa será obtida. Podemos remeter então ao sentido de causa, e a causalidade seria aquilo que tem como consequência um efeito.

A filosofia antiga, desde Aristóteles, define quatro causas: material, formal, final e eficiente. De acordo com o pensamento moderno, a causa eficiente passou a determinar de modo decisivo toda causalidade moderna, passando a ideia de que eficiência é sinônimo de obtenção de resultados e efeitos. No entanto, tal entendimento de causalidade difere da concepção grega, que nada tem a ver com a eficácia de um fazer. No sentido grego, a causa se refere a admitir que algo aconteça, um “deixar vir à presença”. Em sentido amplo,

é produção, poíesis.

Esse pro-duzir (poíesis), esse deixar as coisas se manifestarem e virem à luz, reflete tanto um ato do homem, como os feitos da natureza que vêm à presença por si mesma. Reflete, acima de tudo, um desvelamento. Como afirma Heidegger (2001b) “A produção

conduz do encobrimento para o desencobrimento. Só se dá no sentido próprio de uma pro-dução, enquanto e na medida em que alguma coisa encoberta chega ao des-encobrir-se” (p. 16). A poíesis denota que alguma coisa que ainda não é, pois encoberta até então, passa a ser no momento em que é trazida à luz (Pompeia & Sapienza, 2011).

Diz-se, pois, que o desencobrimento repousa como traço fundamental do que os gregos chamavam de téchne, pois nela reside toda elaboração produtiva. Além disso, enquanto forma de manifestação do que está oculto, a téchne passou a representar a

alétheia, comumente traduzida como verdade que, segundo Feijoo (2004), na

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42 Em referência a Heidegger, Dubois (2004) conclui que a téchne não faz alusão ao domínio do fabricar, do fazer ou na manipulação de meios, mas, sobretudo, à esfera do saber, do desvelamento. Vê-se aí que a técnica moderna não corresponde ao que chamamos de téchne, pois esta última, retomada por Heidegger a partir do entendimento grego, recai na idéia de desencobrimento. Porém, Heidegger destaca que existem dois modos de desencobrimento: a forma cooperativa, em que a téchne é desvelada e trazida à luz por si mesma, e a forma desafiadora, na qual o homem provoca a natureza.

No primeiro, a atitude diante da natureza é um deixar-acontecer, sem assumir o controle do processo. Heidegger (2001b) menciona a atividade do moinho de vento, o qual não se vale de fontes de energia ou de dispositivos pré-fabricados, mas apenas confia no sopro dos ventos para exercer sua função.

Na forma desafiadora, contudo, é extraída forçosamente da natureza todos os seus recursos com vista a suprir as necessidades do homem. Como destacado pelo filósofo (2001b):

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43 A técnica moderna toma a natureza como fundo de reserva para que haja garantia, ao final, de matéria-prima disponível. Desse modo, a técnica moderna veio se estabelecendo a partir do desvio do sentido da téchne, sendo tomada por um cargo interventivo que visa o progresso, o bem-estar humano. E tudo isso parece ser regido por um pensamento que calcula e modifica através da mensuração e do controle. O sentido da técnica moderna se baseou no utilitário da ciência, de modo a aniquilar qualquer suspeita de inospitalidade e insegurança diante do mundo.

Não obstante, o homem e a natureza se encontram em uma relação de troca por meio da técnica e, para essa provocação recíproca, Heidegger (2001b) denominou de Gestell (composição): o homem toma a natureza como fundo de reserva e esta incita o homem a revelar suas forças, tornando disponível o ente para uma ordem de consumo. Como afirma Dubois (2004), “Gestell é o sentido ontológico-histórico da técnica, o que significa que o homem, precisamente, encontra-se lançado nesse destino, compreende-se e ordena-se como técnico no sentido mais largo” (p. 138).

Heidegger, porém, quando cita Gestell, traz nas entrelinhas uma condição ambígua. Se, por um lado, a essência da técnica é um modo de desvelamento, por outro, a técnica altera o homem como mais uma peça dentre tantas outras presentes na ordem da disponibilidade, pondo em risco a verdadeira essência do homem.

Assim, além da dominação da natureza, estaria engajado um projeto de dominação do ente. Seríamos apenas os recursos humanos, o consumidor-alvo ou produto/material humano, ou seja, estaríamos predestinados ao vazio da existência e à coisificação do ser-homem. É exatamente nessa perspectiva que Heidegger ressalta o perigo da técnica.

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44 nas questões profissionais ou pessoais. A técnica se revela enquanto parte constituinte do que nós somos.

Além disso, estamos ditados pelo domínio da ciência, a “nova religião” (Heidegger, 2001a, p. 45), a qual avança pelas camadas culturais e sociais sem dar o mínimo sinal de freio ou hesitação. Ambas, ciência e técnica, caminham juntas determinando avanços, prevendo crises e podando a sociedade sem que nos demos conta da magnitude de suas anunciações.

Heidegger não interroga a veracidade de suas conquistas e não sugere outras formas de saber. O exame de sua crítica caminha pelo modo com que o homem se relaciona para com a técnica na época moderna e a espécie de deslumbre que a mesma ressalta aos olhos da humanidade (Sá, 2002).

Isso nos leva a pensar: estaríamos nós, seres humanos, destinados ao domínio da técnica? Segundo propõe Heidegger, o essencial caberia ao modo como nos dispomos diante dela, cabendo ao pensamento que medita uma postura reflexiva diante de e ausente de qualquer aspecto ditador que dificulte o verdadeiro desencobrimento da técnica.

Pretendemos, portanto, justamente a partir de um debruçar no pensamento que medita, ampliar a questão da técnica ao âmbito da psicologia clínica. Até que ponto o psicólogo clínico é amparado pela técnica? Estaria o profissional de psicologia melhor amparado pelos recursos técnicos no momento de sua atuação? Que capacidade é essa que a técnica possui de modo a fazer acreditar que sem ela, o atendimento clínico está fadado ao mero diálogo sem propósitos?

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45 3.1 A técnica e a Psicologia Clínica

Mário Sérgio Cortella (2009), um filósofo contemporâneo, retrata que nos últimos cinquenta anos, o homem obteve mais conhecimento e desenvolvimento inventivo do que em toda a história antecedente da humanidade. Isso quer dizer que estamos em um ritmo acelerado de produção e que, a cada dia, nos deparamos com novas invenções. Produtos originais são lançados diariamente no mercado e temos que aprender a lidar com eles para que possamos “fazer parte” da cultura moderna. Ao contrário disso, a falta de

conhecimento por inventos tecnológicos gera a imagem de uma desatualização informativa. Não é a toa que hoje, na visão do autor, parece estarmos predestinados a uma subordinação da liberdade de escolha em favor de uma compulsão irrefletida.

Essa cultura imediatista em que as notícias de ontem já são consideradas ultrapassadas, em que tudo é factível e produzível, é tratada por Heidegger como a Era da Técnica e, para ele, a técnica é o que fundamentalmente caracteriza a época atual. Parece que chegamos a um ponto onde é impossível imaginar a vida sem a técnica, pois o mundo caminhou seguindo sua direção, de modo que hoje, de acordo com Pompeia e Sapienza (2011), funciona de forma independente: a técnica provoca mais técnica. Ela é compreendida como instrumento utilizado para determinado fim, intimamente ligada à ideia de crescimento, avanço, atualização e desenvolvimento.

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46 disso, algumas propostas psicoterápicas também ajudam a disseminar tal ideia, pois reiteram um discurso que nos leva a crer numa amenização dos problemas através de instrumentos sofisticados que podem ser ministrados em um curto período de tempo.

E os problemas a serem resolvidos são dos mais variados. Há os que se queixam pela falta de controle com as emoções ou os que buscam adquirir maior tranquilidade nas tarefas habituais com intuito de não serem absorvidos pelo estresse. Existe também o desejo de curar as dores físicas e também as sequelas da alma: a angústia, a tristeza, a raiva, o ciúme. Alguns buscam extinguir a agressividade, o pânico, pois tais comportamentos estão atrapalhando no convívio social. Há também o anseio de controlar a compulsão, seja pelas compras, pelo trabalho, pelo sexo, pela comida, pela limpeza.

A necessidade de ter as rédeas da vida é notável e, porque não, natural do ser humano. Diante disso, os questionamentos da sociedade quanto à eficiência das ações clínicas começam a fazer sentido devido à própria dinâmica da existência na modernidade. Nessa conjuntura, a técnica, no campo da Psicologia Clínica, é entendida como instrumento psicoterápico, ou seja, é o grande pilar que sustenta e auxilia a atuação do psicólogo em sua prática. A técnica é vista como meio que instrumenta a ação do psicólogo de modo que, na falta dela, gera muitas vezes a sensação de desamparo teórico. É como se estivéssemos entregues a uma atuação às cegas por não termos um instrumento padrão capaz de nos orientar em nossas ações, indicar uma uniformidade interventiva ou mesmo uma classificação dos diversos tipos de sofrimento. Contudo, como nos aponta Ferreira (2010), não fazer uso de técnicas não estabelece uma condição de inconsistência metodológica, pois, ao contrário, “exige um esforço e um conhecimento maior e, acima de tudo, um sólido sentimento de confiança” (p. 38).

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47 tendo que corresponder à soberania de certas representatividades. É pensar o exercício clínico de modo a deixar que o fenômeno ali presente se desvele ao seu tempo, tal como ele se constitui no seu modo livre de ser. É também sobrepor o pensamento meditante nas intermediações clínicas, dando margem ao esforço de reflexão, considerando a abertura e o caráter indefinível das coisas, não cabendo, deste modo, uma conduta técnico-calculante diante da imprevisibilidade que o modo de ser do homem implica.

A clínica psicológica, então, fundada na techné, abriga um ente que vem à presença pela sua própria maneira de existir. Uma maneira de existir, vale salientar, uno, singular, o que exclui a possibilidade de tratá-lo a partir de instrumentos previamente elaborados ou com o manusear de teorias pensadas como um molde de tamanho único cabível em todos. A clínica pensada enquanto techné não ocorre pela antecipação de acontecimentos. Ao contrário, a sua atuação acontece na imprevisibilidade, na irregularidade e no consequente desvelamento ocorrido no encontro, encontro este ausente de condutas ou pensamentos calculados ou antecipados pelo uso excessivo da razão.

Por outro lado, a proposta da psicologia clínica, quando dirigida pelo pensamento que calcula, muitas vezes parece se instalar nas ações terapêuticas de modo a ofuscar a busca por outros sentidos. Dessa forma, o homem, quando entendido como um ser encapsulado e dado por si mesmo, será sujeito a manipulações que visem sua mudança, isto é, que tendam a adequá-lo em parâmetros mais aceitáveis, abolindo o que é considerado desviante e doentio. Isto quer dizer também que a atuação clínica, quando tomada pela técnica sob o modo de desencobrimento explorador, vasculha o ser homem, o explora, o analisa, tenta sacar seus recursos, deixá-lo pronto, adequado. Como expresso por Feijoo (2004), essa forma de atuação também consiste:

Referências

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