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CAPÍTULO 1.  A SAÚDE E O ESFORÇO DE UM ENFOQUE GEOGRÁFICO 

11 A iatrogênese devida à dominação do médico sobre a linguagem do doente; a iatrogênese devido a um tipo de controle social pelo diagnóstico, onde as diferentes idades são submetidas à

1.2.3.  O endurecimento tecnológico dos equipamentos médicos 

Sabemos  que  em  nossas  sociedades  modernas  o  discurso  industrial  estabelece  o  crescimento  como  um  objetivo  central  e,  nessa  medida,  a  criação  de  resposta  às  necessidades,  úteis  ou  fúteis, se torna uma autojustificação da indústria.  

Todavia,  onde  uma  visão  ingênua  conceberia  um  equilíbrio  dinâmico  entre  medicina  e  saúde,  a  indústria  médica  não  deixa  dúvida  de  que  o  estado  das  técnicas  disponíveis  ao  aperfeiçoamento  da  sociedade  é  alienável  quando  mediado  por  uma  lógica de mercado.  

Inquestionáveis  são  as  conquistas  no  processo  de  busca  por  eficiência  médica,  entretanto,  o  poder  para  instituir  inovações 

de  alguns  grandes  atores  hegemônicos  denota  um  movimento  sob  o  domínio dos interesses de mercado e a garantia de seus lucros. 

No  dizer  de  Illich  (1975:83),  “em  certas  condições  de  existência,  o  instrumental  da  sociedade  determina  as  necessidades  que  a  aplicação  dos  instrumentos  pode  também  satisfazer”.  Mas,  ainda  que  o  produto  industrial  seja  capaz  de  tornar  a  ação  mais  eficaz,  os  imperativos  de  uma  eficiência  técnica  e  de  mercado  estrangulam  valores  de  uso,  fazendo  esmorecer  formas  autênticas  e  insubordinadas  de  produção  e  cidadania. 

Em  sua  noção  de  confiscação  institucional18  do  savoir‐faire,  Gaudin (1978) explica que o crescimento industrial se dá por uma  tendência  ao  endurecimento  tecnológico19.  A  respeito  dos  equipamentos  médicos,  observamos  esse  movimento  de  produção  global pelo número de empresas e países que dominam o mercado de  objetos técnicos modernos. 

TABELA  2  –  Principais  importadores  e  exportadores  no  comércio  internacional de aparelhos e instrumentos para usos médico‐hospitalares –  2003‐2006   Exportação  Importação      EUA  EUA  Alemanha  Alemanha  Holanda  Japão  Irlanda  Holanda  Japão  Reino Unido  Suíça  França  França  China  China  Canadá  Hong Kong    Austrália    Reino Unido    México    Outros  Outros      Fonte: Elaboração da Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas (FIPE), São Paulo, 2008.        

18 Gaudin (1978: 127) já ensinara que o movimento das técnicas nos dá as modalidades de

transmissão do savoir-faire. Dirá o autor que a manipulação dos circuitos financeiros, da informação, dos preços, a introdução da tecnologia, máquinas e engrenagens, revela a aposta dos tempos modernos de despossar o homem moderno de sua técnica, tirando-o do lugar da produção.

19 O endurecimento tecnológico é expresso em três fases: a escolha de um modelo mais

rentável, a produção em grande escala para que substitua os modelos correntes (daí a construção de uma ferramenta específica), e a restauração de uma variedade artificial, com lançamentos permanentes de acessórios, embalagens etc. (Gaudin, 1978)

Vemos  que  os  maiores  exportadores  e  importadores  de  equipamentos  médico‐hospitalares  e  odontológicos  são  países  desenvolvidos,  sendo  que  EUA,  Alemanha  e  Japão  têm  forte  vantagem  comparativa  na  produção  de  instrumentos  e  aparelhos de  medicina, cirurgia, odontológica e veterinária (FIPE/IPT, 2008).  

Segundo  o  estudo  da  FIPE  e  IPT  (2008),  as  dez  maiores  empresas  norte‐americanas  são  Jonhson  &  Jonhson,  GE  Medical  System,  Baxter  Internacional,  Tyco  Healthcare,  Medtronic  Inc.,  Abbot  Laboratories,  Becton  Dikinson,  3M  Heathcare,  Guidant,  Stryker Corp.  

Entretanto,  para  essas  empresas,  a  competição  com  a  Siemens  (Alemanha),  Corporação  Médica  Hitachi  Toshiba  (Japão),  Philips  Eletronics (Holanda) e Sistemas Medicos Marconi (Itália) envolve  principalmente produtos com elevado conteúdo tecnológico.  

No  endurecimento  tecnológico,  apesar  da  multiplicação  dos  objetos médicos, há uma redução da diversidade da técnica. O que  se revela quando atentamos a produção hegemônica é a promoção de  equipamentos  médicos  cada  vez  mais  performáticos  e  especializados,  cuja  diferenciação  é,  em  grande  parte,  incremental ou aparente20. 

Daí  o  envolvimento  de  especialistas  médicos  ser  crucial  no  desenvolvimento  das  inovações  dos  equipamentos  médico‐ hospitalares,  dirá  o  estudo  de  Albuquerque  e  Cassiolato  (2002:142). Como a produção de equipamentos é dependente de uma  diversidade de outras áreas do conhecimento e outras indústrias,  a  produção  desses  aparelhos  exige  um  saber  próprio  do  médico  para “trazer” a tecnologia para a área da saúde. 

Essa  proximidade  do  médico  à  indústria  se  torna  um  fator  da  difusão  da  inovação,  onde  o  processo  entre  a  invenção,  a  aceitação para fins industriais e sua afirmação histórica é por  isso acelerado. Daí, ainda, poder dizer dos hospitais como parte  do  sistema  de  pesquisa  dos  equipamentos  médicos  (Albuquerque  e  Cassiolato, 2002:138). 

Empresas  como  a  Siemens,  Philips,  GE  são  grandes  conglomerados  em  que  a  área  da  saúde  é  apenas  uma  dentre  as        

20 Quando são grande revelações como os tomógrafos, em relação ao raio x, e as ressonâncias, em relação ao ultra-som, são grandes avanços de outras áreas do conhecimento, como a física, a genética, a eletrônica, entre outras.

frentes de produção globalizada. Nesse sentido, seus empenhos em  pesquisa  e  desenvolvimento  são  dirigidos  às  plataformas  tecnológicas,  onde  a  saúde  é  apenas  um  aperfeiçoamento  apropriado à área médica. 

Entretanto,  somos  convidados  a  crer  numa  diversidade,  ou  melhor,  numa  variedade  supérflua  de  necessidades.  Daí  que  algumas opções tecnológicas se tornam assentadas na força dessas  empresas  incitarem  ao  consumo.  Entretanto,  tais  modernizações  terminam  por  trazer  a  inflação  de  um  terciário  terapêutico  em  detrimento  da  capacidade  produtiva  de  bens  à  saúde  nos  diferentes lugares. 

Parece que estamos vendo um processo de padronização de modos  de fazer, conduzido por poucas e grandes empresas produtoras de  equipamentos  acrescidos  de  melhorias  que  são  estéticas  e  funcionais,  não  apenas  à  saúde,  mas  funcionais  no  interior  do  próprio objeto técnico.  

Num  ensaio  sobre  técnica  e  estética,  Simondon  (2002:258)  escreve que ainda que não seja verdade que todo objeto estético  tenha  um  valor  técnico,  pode‐se  dizer  que  todo  objeto  técnico  tem,  sob  certo  aspecto,  um  teor  estético.  A  indústria  médica  certamente se vale desse caráter para diferenciar seus produtos.  

Poder‐se‐ia  argumentar  sobre  as  necessidades  clínicas  dos  aperfeiçoamentos  estéticos,  mas  certamente  não  podemos  deixar  escusos  os  interesses  de  mercado  da  indústria  do  design  e  do  conforto enquanto abordagem do objeto técnico, e, ainda, o poder  do discurso do uso embutido na estrutura funcional dos objetos. 

No caso extremo da ressonância magnética, a claustrofobia de  muitos  pacientes  já  é  hoje  razão  de  competitividade  entre  as  grandes empresas na fabricação de aparelhos onde o indivíduo não  precisa mais entrar e ficar todo envolvido pelo aparelho. 

Casos  mais  simples,  podemos  dizer  dos  produtos  chineses  que  invadem  o  mercado  nacional  com  preços  inferiores  aos  nacionais,  apresentando  agulhas  com  sofisticado  design  apropriado  para  o  maior  conforto  do  paciente.  Mas,  também  podemos  dizer  da  diferenciação  de  produtos  para  o  conforto  dos  médicos,  onde  o  manejo  dos  instrumentos  deve  lhe  oferecer  um  incremento  de  facilidade, muito próximo a um prazer motor.  

Atualmente  os  equipamentos  médicos  são  incrementados  também  e, sobretudo, em seus níveis informacionais, facilitando funções  propriamente  médicas,  mas,  antes,  exigindo  maior  sistemismo  entre as partes, numa sala, num consultório, num hospital. Esse  incremento  não  é  diretamente  à  saúde,  mas  é  certo  que  serve  a  maior produtividade que almeja o prestador do serviço. 

Constituído pela estreita associação e interdependência entre  a ciência, a técnica, a indústria, a defesa, a administração, um  novo  sistema  de  técnicas  se  faz  pela  concentração  do  poder  financeiro  de  agentes  hegemônicos, o  que  favorece  esse  processo  de endurecimento tecnológico.  

Suporte de um novo sistema de relações sociais, esse contexto  hegemônico  da  produção  médica  moderna  é  responsável por  ocultar  o  savoir‐faire,  transmitindo‐o  somente  no  interior  das  instituições  produtoras.  Esse  é  o  modo  pelo  qual,  assevera  Gaudin  (1978:175),  controla‐se  a  técnica,  “o  verdadeiro  lugar  das escolhas estratégicas e do exercício do poder”.  

Se  antes  a  diferenciação  dos  objetos  esteve  assentada  em  consequência  do  uso  cada  vez  mais  especializado,  hoje  é  válido  acrescentar  nesse  processo  as  estratégias  de  mercado  das  empresas  hegemônicas.  Nesse  sentido,  a  confiscação  da  técnica  pelo  endurecimento  tecnológico  parece  algo  como  uma  confiscação  da saúde.  

Nessa  direção,  Sennet  (2006:128)  dirá  que  o  que  torna  lucrativa  a  diferenciação  de  produtos  no  contexto  moderno  se  sustenta  no  que  chamou  de  paixão  consumptiva.  Ao  gosto  individual, a paixão consumptiva se baseia numa identificação do  comprador  com  o  excesso  de  capacidade  contido  no  objeto.  Na  indústria  eletrônica  é  comum  que  equipamentos  sejam  adquiridos  sem que sejam utilizados em todas suas virtualidades21.  

Ainda  que  médicos  ou  pacientes,  hospitais  ou  governos  não  sejam  simples  consumidores,  tampouco  serem  os  objetos  médicos  quaisquer  objetos,  todos  estão  sujeitos  aos  mecanismos  que  encorajam  consumos  ostentatórios,  pois  se  trata  de  um  processo  mais abrangente nas sociedades.  

      

21 Sennet (2006:139) assevera que a renúncia ao objeto hoje não é vivenciada pela perda, mas se