CAPÍTULO 1. A SAÚDE E O ESFORÇO DE UM ENFOQUE GEOGRÁFICO
1.2. O meio geográfico e as tecnificação dos cuidados à saúde 1.2.1 Sobre os objetos técnico‐médicos
1.2.1. i A realidade sistêmica dos equipamentos médico‐ hospitalares e a medicina como instituição industrial
P. George (1974) quando nos ensina sobre a técnica como criadora de um novo meio de vida, mostra que sua influência sobre o espaço se realiza pela ocupação do solo pelas infra‐ estruturas das técnicas modernas e pela transformação generalizada a partir dos novos métodos de produção e de existência.
Ainda George (1974), escreve que o sistema espacial é redefinido permanentemente e, se antes os objetos se davam como conjuntos, hoje tendem a se dar cada vez mais como sistema. Em 1948, Sorre já assinalava o autocrescimento e rápida difusão da técnica como sistema.
Sabemos hoje que os nexos de dependência da técnica com a ciência revelam um processo contínuo de complexificação dos objetos. Graças a essa interdependência, a funcionalidade extrema, que os faz capaz de maior eficiência, amplia o potencial de criar sistemas técnicos.
Ademais, a intencionalidade embutida nos objetos modernos nos convida a reconhecer não apenas a acuidade das execuções médicas, mas, pela localização precisa onde tais objetos se instalam, vemos a lógica de um acontecer que escapa ao lugar, pois responde a interesses distantes. O que torna evidente a relação dos objetos médicos com a técnica, a ciência e o novo momento da produção moderna.
A natureza intencional da técnica admite a aparição de objetos sempre mais avançados, como sugere Ellul (1954) ao dizer que a técnica antecede a ciência. A tecnociência contemporânea permite observar a subordinação da ciência às exigências do progresso tecnológico, tornando‐a, como diz Ellul, um instrumento da técnica.
Vimos que o nascimento da ciência clínica no século XIX, como anúncio de uma consciência técnica dos cuidados à saúde, levou a medicina rumo à racionalidade instrumental dirigida à eficiência médica. É certo que a medicina moderna deste século XXI está marcada por conquistas antes impensáveis para a saúde.
Os avanços das ciências como a biotecnologia, a microeletrônica, são vantagens à vida, praticadas por uma ciência médica que se faz num meio técnico‐científico informacional, a qual, da mesma forma, contribui ao aparecimento de novos instrumentos de trabalho e práticas sociais.
Vale dizer que a prevenção e a educação sempre foram correlatas à esperança de vida. Não obstante, jamais houve uma etapa na produção da história em que a obtenção da saúde estivesse conduzida por um modo de fazer universalizante, confundido com os poderes das tecnologias médicas.
Nesse âmbito, a ciência médica não será uma disciplina pura, mas sim compreendida na constituição do próprio meio geográfico atual onde, pela primeira vez na história, estamos convivendo com uma universalidade empírica6 (Santos, 1984), graças aos progressos conjuntos da ciência, da técnica e da informação.
6 Santos (1996:92) assevera que “(...) graças aos progressos da técnica da ciência e da
informação, a noção de totalidade permite um tratamento objetivo. Pela primeira vez na história da humanidade, estamos convivendo com uma universalidade empírica (Santos, 1984).” Explica o autor que “A planetarização das técnicas e da ação de comando por meio da mais valia, voltando ao velho marxismo, cria a possibilidade, junto com a evolução técnica, a visão do planeta com satélites etc., de ver o mundo, e de não apenas confiar na grande intuição do gênio filosófico, mas na história se fazendo empriricamente. (...)Existe primeiro no mundo dito
Nesse sentido, é com prudência que vemos o progresso tecnológico como responsável por mudanças na estrutura mais ampla da morbidade das populações. Inserida num contexto fruto das condições historicamente produzidas, a medicina é apenas um elemento nesse processo em que a totalidade vai se fazendo mais densa e mais complexa.
A realidade sistêmica da técnica e a crescente universalização das tecnologias e procedimentos médicos são acompanhadas pela tendência apontada por G. Simondon (1989) ao destacar que as técnicas estabelecem entre si relações de dependência, graças à convergência entre seu projeto e sua construção.
Simondon (1958) mostra que esses objetos tornam‐se objetos concretos pela incapacidade de cumprir funções diferentes àquela prevista. Nesse sentido, os equipamentos médicos podem ser vistos pela crescente hipertelia que assumem, à medida que a medicina se torna mais e mais especializada.
Daí que a individualização do organismo humano pelas descobertas mais acuradas da ciência médica representa, em grande medida, a individuação dos objetos médicos, tornados tão hipertélicos e demandantes de outros objetos que o sirvam em sistema.
Apenas como breve exemplo de equipamentos modernos, podemos mencionar o ultra‐som, tão adequado para ver partes moles do corpo, mas esconder outras; e as ressonâncias magnéticas que apesar de altamente sofisticadas, apenas funcionam para ver o que não se move, o que dificulta que pacientes de Alzheimer sejam beneficiados.
Esses objetos médicos precisam de outros objetos que o acompanhe na sua operação, dentro e fora da sala de procedimentos, como objetos, soluções em gel e contraste específicos, camas especializadas, ar condicionado, computadores específicos. Que dirá numa sala de cirurgia?
tradicional, no qual você tem uma construção horizontal, uma construção e uma evolução a partir de elementos contíguos no espaço ou que têm alguma continuidade e cuja solidariedade funcional se deve em parte àquele espaço, àquele território, àquela área. A globalização muda isso, porque continua a existir esse processo, mas você tem outro processo que se dá brutalmente, rapidamente e externamente às realidades locais, horizontais, fundado sobretudo na informação e no dinheiro.” (Santos, 2004:40)
Ainda, há outros objetos que são demanda do paciente, como roupas paramentais, fones de ouvido. E mais, é necessário que o lugar também seja especializado, pois alguns equipamentos se valem de princípios físicos, como campo magnético, radiação atômica, que exigem altos níveis de segurança.
Nesse sentido, um hospital, ou mesmo um estabelecimento de saúde onde haverá práticas médicas menos complexas, é, assim, um grande demandante de objetos técnicos que, por sua vez, se dão como famílias de técnicas.
Esse dado da multiplicidade de objetos específicos, e que se dão como sistemas de objetos médicos quando se trata de um procedimento, tornou nossa pesquisa sobre os circuitos da economia urbana para a saúde ainda mais rica, pois capaz de conter grande diversidade de agentes.
O surgimento de doenças iatrogênicas não é algo velado, mas reconhecido pela própria medicina. Definida por Illich (1975) como a epidemia de doenças provocada pela própria medicina, o autor faz uma análise mais profunda do termo7, tratando a medicina como instituição industrial.
O processo iatrogênico, dado pela natureza técnica da medicina moderna, causada por se realizar como um “medical establishment”8, é manifesto em três dimensões iatrogênicas: iatrogênese clínica, social e estrutural.
7 I. Illich (1975), em sua crítica à medicina como instituição industrial, entende haver a partir
dela um processo de medicalização da vida que é, por isso, uma ameaça à saúde. Ao reconhecer o homem das culturas tradicionais diferenciado do homem da cultura industrial, Illich fundamenta sua avaliação ao observar que, nessa passagem, foi entregue às instituições sociais a responsabilidade do homem cuidar da sua dor. Admite que o significado íntimo e pessoal da experiência da dor se transforma em um problema técnico e acrescenta: “toda doença é uma realidade criada no seio da sociedade. O que significa e a pronta resposta que suscita já têm história.” (p.152). Nessa direção, aponta a iatrogênese como uma epidemia de doenças provocadas pela própria medicina. Escreve: “A medicalização da vida é malsã por três motivos: primeiro, a intervenção técnica no organismo, acima de determinado nível, retira do paciente características comumente designadas pela palavra saúde; segundo, a organização necessária para sustentar essa intervenção transforma-se em máscara sanitária de uma sociedade destrutiva, e o terceiro, o aparelho biomédico do sistema industrial, ao tomar a seu cargo o indivíduo, tira-lhe todo o poder de cidadão para controlar politicamente tal sistema” (p.10). Nesse sentido, Illich irá dizer que esses três níveis da iatrogênese, em seu conjunto, contribuem para o comprometimento da capacidade de autonomia dos homens.
8 O termo medical establishment do original em inglês foi traduzido para o português como
empresa médica por José Kosinski de Cavalcanti na edição Illich, I. 1975, Ed. Nova Fronteira, 2.ed, Rio de Janeiro.
Tratamentos propostos a uma determinada enfermidade podem dar origem a outras moléstias, a isso o autor (Illich, 1975) chama de primeiro nível de iatrogênese a doença causada pela intervenção técnica médica, mesmo que prescrita de acordo com as regras da arte9.
Entretanto, é a própria medicina que vem neutralizar essa iatrogênese clínica, quando busca curá‐la, adentrando, assim, outros níveis iatrogênicos10, pois o próprio sistema social passa a criar condições para que se dê uma colonização médica da saúde. Nesse sentido, há uma circularidade de consequências que alimenta a própria atividade médica e a legitima.
J. Baudrillard (1973:16) quando se refere ao sistema de objetos como dependentes de um sistema de práticas, assevera que “a descrição do sistema de objetos não se dá sem uma crítica à ideologia prática do sistema”. Daí nossa observação medicina como ciência aplicada, onde o processo iatrogênico terá importante papel na divisão do trabalho.
Observar essa relação híbrida entre os sistemas de objetos e de ações envolvidos na prática da medicina moderna nos faz alerta ao fenômeno social de penetração da ciência com a mediação da técnica. Mas, como assevera Granger (1994:16), não se pode confundir o pensamento científico e o saber técnico.
Nesse sentido, a criação das especializações médicas, dada pelos avanços científicos em diferentes áreas, e a tecnicidade hipertélica dos equipamentos médicos são processos
9 Nesse sentido, o primeiro nível, a iatrogênese clínica, apresenta-se pelos efeitos secundários