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2. A MONOPOLIZAÇÃO DOS CONTROLES SOCIAIS E A FORMAÇÃO DO HABITUS

2.2. O ensino enquanto instância de socialização

O ensino, de acordo com Worsley (1983), é uma das formas de transmissão e aquisição de conhecimentos, o que se designa no âmbito das Ciências Sociais por socialização. Contudo, a transmissão do conhecimento não é feita apenas pelo ensino, pois, para este autor, a socialização está presente em vários processos de interação nos quais indivíduos se envolvem durante a sua vida, seja na família, igreja, ciclo de amigos, ou em outros espaços de sociabilidade. É nesta ordem de idéias que Peter Berger e Thomas Luckmann (2010) defendem que esse processo é

caracterizado por duas fases: a socialização primária e a secundária15. No primeiro caso trata-se do primeiro contacto da criança com a sociedade, onde esta interioriza, de uma forma genérica e carregada de afetividade, o comportamento, valores e visões de mundo de seus semelhantes mais próximos. Trata-se daquele contacto e assimilação de valores e normas que a criança apreende no meio familiar ou no ciclo restrito de amigos, por exemplo. A socialização secundária, por sua vez, tem a ver com a interiorização, pelo indivíduo, relativamente já crescido em relação à fase anterior, dos valores, normas e visões de mundo que não se limitam ao seu meio familiar e sim que o introduzem num mundo mais complexo. Ou como os próprios autores dizem: “a socialização secundária é a interiorização dos „submundos‟ institucionais ou baseados em instituições” (Berger e Luckmann, 2010, p. 178). Na segunda fase desse processo de socialização, segundo os autores, o caráter de afetividade que caracterizou a primeira fase é substituído por instituições que se baseiam no princípio da racionalidade, onde se “exige pelo menos os rudimentos de um aparelho legitimador, frequentemente acompanhado de símbolos rituais ou materiais” (idem, p. 179). Nesta lógica a escola, que fazendo uso de seus aparelhos legitimadores é, sem dúvida, uma instância de socialização secundária, onde a criança é introduzida simbólica ou profissionalmente num meio social mais amplo e mais complexo que o seu grupo de pertença primário.

Assim sendo, o tipo de socializaçao pelo qual a criança passa na escola difere em sua forma e conteúdo daquele que conhecera no meio familiar. Efetivamente, para Worsley (1983), o que torna a socialização por via do ensino diferente das outras formas de transmissão de conhecimento é o fato deste ser um processo deliberado e consciente, onde,

não só se fornece aos indivíduos um [aprendizado] dirigido, com fins próprios e por um largo período de tempo, de forma constante e insistente, sendo de fato uma preparação especializada para uma tarefa ou uma ocupação específica, mas também se lhes ministra um ensino amplo, geral, constituído por certo número de conhecimentos básicos (ler, escrever e contar) e são ensinadas matérias que não são imediatamente relevantes para qualquer ocupação especial (Worsley, 1983, p. 205-6).

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Deste modo, acreditamos que o ensino visa, por um lado, conferir aos indivíduos habilidades técnicas e especializadas de modo que estes se integrem na estrutura ocupacional duma sociedade; por outro lado, fornece conhecimentos que têm a ver com o domínio e interpretação dos códigos da sociedade, tais como a escrita, as contas, a moral. Esta afinidade entre ensino e moral já tinha sido evidenciada por Emile Durkheim em seu livro intitulado Educação Moral (2008). Nesta obra o autor argumenta que a educação escolar constitui o núcleo da moralização da sociedade, pois está convencido de que ela, usando procedimentos assentes na disciplina e autoridade, está mais apta (em relação a outras instituições socializadoras) a criar na criança o espírito altruísta em relação à comunidade política a que pertence e por conseguinte, em nosso entender, a fazê-la interiorizar o

habitus nacional. Este posicionamento de Durkheim, ao eleger a escola como

veiculadora da moral enquadra-se no processo de profundas transformações sociais na sociedade em que ele viveu e que se caracterizava, entre outros, pela agudização do processo de laicização da sociedade. Tratava-se do processo de substituição da moral religiosa que outrora dominara a sociedade européia e a francesa de uma forma particular, por procedimentos que se baseavam na racionalidade. Durkheim não tinha dúvidas de que a escola pública, sendo a imagem do emergente Estado-laico e racional, longe de se preocupar em inculcar nas crianças a moral assente em pressupostos religiosos, deveria engajar-se na difusão dos novos valores emergentes que caracterizavam a sociedade moderna. Tratava- se de promover o espírito da racionalidade, da disciplina e acima de tudo, do altruísmo em relação aos grupos sociais, principalmente da comunidade nacional.

Esse processo de inculcação e interiorização dos valores da sociedade por via da escola, porém, nem sempre é manifestamente visível. Ele aparece muitas vezes de uma forma sutil, como nos mostra Michel Foucault (1999), ao estudar as instituições socializadoras do século XX. Efetivamente, o autor considera que as instituições com poder disciplinar (como a escola) conseguem alcançar seus objetivos recorrendo a técnicas sutis de inculcação tais como a vigilância hierárquica, a sanção normalizadora e o exame. Quanto à vigilância hierarquizada, o autor considera que numa instituição disciplinador existe, por um lado, os detentores

de poder e por outro, os objetos desse poder. Aqui, os detentores do poder, que para o nosso caso é o corpo docente e administrativo duma escola, são considerados vigilantes. Estes têm segundo Foucault, a função de combinar as técnicas disciplinares sobre os alunos. O objetivo dessa vigilância feita pelos que estão no topo da hierarquia do poder é de sancionar a conduta dos alunos dentro das instituições. A sanção tem a ver com a conformidade ou não com as normas escolares. Assim, nos casos de incumprimento das normas escolares pelos alunos a escola tem mecanismos de punir tais condutas visando sua correção. Tal punição consiste para Foucault em tudo aquilo que é capaz de fazer o indivíduo sentir a sua falta e, ao mesmo tempo é capaz de humilhá-lo, confundi-lo ou destituí-lo.

É importante notar que a sanção não é apenas o ato de punir mas também é o ato de remuneração, pois, segundo Foucault, os indivíduos que se conformam a tais normas são premiados ao passo que os que inobservam as mesmas normas, são punidos. Contudo, Foucault mostra que para a instituição disciplinadora sancione é preciso que se faça o exame, que consiste num “controle normatizante, uma vigilância que permite qualificar, classificar e punir. Estabelece sobre os indivíduos uma visibilidade através do qual eles são diferenciados e sancionados” (Foucault, 1999, p.154). Assim sendo, Foucault considera que na instituição escolar existe o recurso constante ao exame, por forma a poder manter a normalidade (ordem) por via das sanções. É na base desse seu método de proceder que em nosso entender a escola interioriza nos alunos os valores da identidade nacional. Assim, parece-nos legítimo afirmar que a escola visa, entre outros, uniformizar nas crianças um habitus nacional, onde cada uma delas interiorize as maneiras de ser, estar e sentir comuns consideradas desejadas por uma nação (pelo menos pela elite política).