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2. A MONOPOLIZAÇÃO DOS CONTROLES SOCIAIS E A FORMAÇÃO DO HABITUS

2.5. O perfil dos livros de leitura moçambicanos

Tendo em conta que o nosso estudo centrou-se na análise do livro de leitura, algumas palavras sobre a sua especificidade devem ser ditas. Para Ane Marie Chartier e Jean Hébrard (1995), o livro de leitura tem a função de aculturar os estudantes a partir da prática da leitura, através da qual memorizam e incorporam aquilo que neles é veiculado. Assim, para os autores, além do livro de leitura visar alfabetizar (ensinar a ler e familiarizar-se com a escrita) visa igualmente inculcar nos alunos as visões de mundo dos poderes sociais estabelecidos. Tais poderes podem ser de índole diferenciada: religiosos, políticos, econômicos ou intelectuais.

Fazendo uma análise dos livros de leitura usados nas escolas francesas entre 1880-1980, Chartier e Hébrard (1995) constroem uma tipologia das funções que os livros de leitura tiveram nesse período. Eles constataram a existência de três tipos de livros de leitura: enciclopédicos, moralizantes e estéticos. Os livros de leitura enciclopédicos caracterizavam-se por serem manuais únicos, onde estavam compilados textos dos mais diferentes conteúdos (História, Arquitetura, Moral, Biologia, etc.) num único livro e a sua função era meramente instrutiva. O livro de leitura moralizante, por seu lado, surge quando os outros conteúdos, sobretudo os

das ciências naturais, passam a se autonomizar e ter manuais específicos; aqui, os livros de leitura passam a ter uma função mais moralizante (e menos instrutiva) através de narrativas em forma de contos, lendas ou fábulas cuja intenção era inculcar nos alunos a moral dominante naquela época. Finalmente, os livros de leitura literários, embora contenham alguma dose de moral, tem como principal função a estética, assim como a preservação do patrimônio cultural da nação através de leitura de autores eruditos e basilares da comunidade nacional. Como podemos ver, Chartier e Hébrard (1995) entendem o livro de leitura não apenas como instrumento de alfabetização, mas também como um manual que tem uma função instrutiva, moralizante e estética.

Esta tipificação dos livros de leitura apresentada acima nos permite fazer algumas observações sobre os livros de leitura usados em Moçambique no período pós-colonial. Cabe-nos a seguir apresentar algumas características básicas de tais livros de forma a ficarmos cientes de seu perfil. Vejamos o quadro abaixo:

Título do livro Ano de

publicação

Autor ou

Editor

Tipos de conteúdos dos textos Livro de leitura

da 2ª classe

1977

Ministério da Educação

Os livros são enciclopédicos: incorporam textos dos mais variados conteúdos desde História de Moçambique, contos populares, Geografia, Ciência e Tecnologia, testemunhos da guerra colonial, entre outros. Livro de leitura da 3ª classe 1989? Livro de Leitura da 4ª classe 1989? Livro de leitura da 5ª classe 198- Livro de leitura da 6ª classe 198-

O quadro acima apresentado, contendo o perfil dos livros de leitura em análise, nos permite fazer algumas observações. A primeira é a de que em tais livros,a data de publicação não é apresentada na sua ficha técnica, com exceção do livro de leitura da 2ª classe, cujo ano de publicação é claramente indicado (1977). Diante deste cenário, a data aproximada da publicação dos restantes livros nos foi

possibilitada pela aproximação que fizemos com a data de entrada do livro na biblioteca do Ministério da Educação de Moçambique, visível no carimbo da instituição.

Outro aspecto importante que caracteriza os livros em análise diz respeito à sua autoria. Pudemos notar que tais livros não apresentam um autor ou coordenador individual, apenas a etiqueta do Ministério da Educação e que em alguns deles pode-se ver nas páginas preliminares uma mensagem do Presidente da República, Samora Machel dirigida aos alunos, conforme verificamos no seguinte livro de leitura da 5ª classe:

O estudo é como uma lanterna à noite, mostra-nos o caminho.

Trabalhar sem estudar é andar às escuras; pode-se avançar, é certo, mas grandes são os riscos de tropeçarmos, de nos enganarmos no caminho (MEC, 198-, p. 1).

Ou ainda no livro de leitura da 4ª classe:

Podemos estudar muito, ler muito, mas para que servirão essas toneladas de conhecimentos se não os levarmos às massas, se não produzirmos? Se alguém guarda as sementes de milho na gaveta, será que vai colher maçaroca? (MEC, 1989?, p. 5)

Isto revela, em nosso entender, um caráter institucional que se pretendia atribuir à autoria do livro, mas, uma institucionalidade que refletia as visões de mundo que a FRELIMO pretendia inculcar nas crianças. O fato de nos referidos livros, os autores serem anônimos leva-nos a estabelecer uma diferenciação com aquilo que temos verificado, por exemplo, na literatura atinente ao livro escolar no Brasil. Aqui pudemos ver que os autores de livros escolares não eram anônimos, pelo menos durante o processo de construção da Republica, onde podemos encontrar autores de livros de leitura como é o caso de Olavo Bilac (Bittencourt, 2004; Leão, 2007), responsáveis pela autoria ou compilação dos textos que compunham os livros escolares. Em Moçambique, pelo contrário, essa função era institucional e estava a cargo do Ministério da Educação. Esta comparação com a realidade brasileira não quer dizer, porém, que os autores dos livros escolares no

Brasil eram autônomos, no sentido de que escreviam apenas aquilo que pensavam e que seu pensamento não refletia os condicionamentos sociais a que estavam sujeitos. Pelo contrário, Bittencurt na sua pesquisa sobre os autores dos livros escolares brasileiros, defende que:

o autor de uma obra didática [é], em princípio, um seguidor dos programas oficiais propostos pela política educacional. Mas, para além da vinculação aos ditames oficiais, o autor é dependente do editor, do fabricante do seu texto, dependência que ocorre em vários momentos, iniciando pela aceitação da obra para publicação e em todo o processo de transformação de seu manuscrito em objeto de leitura, um material didático a ser posto no mercado (Bittencurt, 2004, p. 479)

Em suma, o que estamos dizendo aqui é que, independentemente do autor do livro escolar ser uma entidade coletiva, como é o caso de Moçambique, ou de ser manifestamente apresentado como autor individual, como acontece no Brasil, os livros por eles produzidos representam sempre, consciente ou inconscientemente, as visões de mundo que determinados grupos sociais pretendem criar ou reproduzir. Isto significa, em outros termos e concordando com Foucault (1996) que o discurso, neste caso o do livro escolar, é sempre consequência ou indicador dos poderes sociais que o antecedem.

Finalmente, voltando à discussão que fazíamos mais acima com Chartier e Hébrard (1995) sobre a tipologia dos livros de leitura, constatamos igualmente que os livros de leitura em análise neste estudo, apesar de serem enciclopédicos, não apresentam unicamente um pendor instrutivo, moralizante ou estético de uma forma separada. Pelo contrário, essas três funções encontram-se imbricadas. Destarte, podemos ver que os livros de leitura apresentam compilação de textos versando sobre os mais diferentes conteúdos. Isso pode ser comprovado pelos títulos de alguns textos selecionados aleatoriamente em cada um dos livros: “Um pouco da nossa história17, “Os primeiros socorros”18, “Os homens e os outros animais”19, “O coelho e o camaleão”20, “Os meios de transporte”21. Estes textos em sua apresentação gráfica, são acompanhados por imagens, mais concretamente por

17 Livro de Leitura da 6ª classe, p.5 18 Livro de leitura da 3ª classe, p.11 19

Livro de Leitura da 4ª classe, p.18 20

Livro de Leitura da 5ª classe, p.21 21

fotografias ou gravuras para ilustrar com mais eficácia os significados simbólicos que se pretendia inculcar nas crianças.

Adentrando um pouco mais na análise dos livros de leitura pudemos notar que ao longo do seu corpus, os diferentes textos que os compõem têm uma situação digna de se notar: verificamos que nos livros da 2ª, 3ª, e 4ª classes, os textos neles compilados, de uma forma geral, não têm os seus autores identificados; o mesmo não acontece com os livros da 5ª e 6ª classes, cujos textos têm, na sua maior parte, um autor identificado ou qualquer referência que remeta às circunstâncias em que o texto foi escrito. Isto nos leva a pressupor que nas classes elementares os livros são concebidos dando ênfase à prática de leitura, enquanto que nas classes mais avançadas eles não são apenas para a leitura e sim mas para desenvolver igualmente a capacidade do aluno de estabelecer nexos entre tais textos e seus autores, daí o contexto de sua produção.

Por conseguinte consideramos igualmente importante a constatação de que nos textos em que a autoria é referenciada, os autores são na maior parte moçambicanos e constituem a elite da FRELIMO. Ou seja, tais autores além de terem os seus textos publicados nos livros de leitura, ocupavam cargos políticos e diretivos no topo da hierarquia de poder da FRELIMO: trata-se de autores como Marcelino dos Santos, Samora Machel, Armando Guebuza, Oscar Monteiro, entre outros. Este fato contribuiu, em nosso entender, para a disseminação das suas autoimagens entre a população estudantil dado o fato de estarem diretamente ligados à FRELIMO. Esta peculiaridade dos livros de leitura produzidos em Moçambique por uma elite vinculada à FRELIMO, remete-nos ao debate que Karl Mannheim (2008) levanta sobre a classe intelectual, a que chama de intelligentsia. Por intelligentsia o autor se refere concretamente àquele grupo de pessoas, sobretudo ligado às artes, política, academia ou burocracia estatal, que durante determinado período histórico procura definir sua posição dentro da sociedade, e ao mesmo tempo tenta difundir e homogeneizar suas visões de mundo sobre os demais membros da sociedade. Tal grupo pode ou não estar vinculado ou comprometido com as instituições sociais (habitats sociais) em que eles vivem, afirma Mannheim. No caso concreto de nosso estudo, onde nos referimos a autores de textos que estão compilados nos livros de leitura, enquadramos tais autores nessa categoria:

eles constituem a intelligentsia sim, mas manifestamente estão vinculados ou comprometidos com a FRELIMO e como tal, são idealizadores ou porta vozes da autoconsciência ou autoimagens desse grupo político. Ou, usando a expressão de Gramsci, eles são intelectuais orgânicos (1982).

Além de textos de autoria de moçambicanos, intelectuais orgânicos da FRELIMO, são igualmente mencionados textos de autores de outros quadrantes do mundo. Trata-se, sobretudo, de textos oriundos da intelligentsia dos países outrora de orientação socialista, nomeadamente, a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, a República Democrática Alemã, o Vietname e a China)22. Igualmente pode-se encontrar textos produzidos pela elite nacionalista dos países africanos outrora colonizados, sobretudo os de língua oficial portuguesa (Angola, Cabo Verde, Guiné Bissau e São Tomé e Príncipe),23 que também viviam em seus países momentos de descolonização e de re-imaginação nacional. Finalmente, é possível encontrar textos de autores portugueses e brasileiros24.

Isto nos leva a pensar, na senda de Elias (1997), que este processo de construção da nação moçambicana tinha o outro como referência, ou seja, era um processo de formação de um habitus nacional que não se fechava sobre si mesmo e sim procurava dialogar com outros processos que ocorriam em outros países e que interessavam à intelligentsia moçambicana. No caso dos países socialistas, havia uma identificação com a política e ideologia marxistas, a qual a FRELIMO abraçou; com as ex-colônias identificava-se quanto ao passado colonial e à luta de libertação em que se viram envolvidos e finalmente, com o Brasil e Portugal, tal ligação se evidenciava no uso da língua portuguesa enquanto veiculo de comunicação.

22

Neste sentido, é possível notar a presença de textos de autores como Vladimir Lenine (URSS) , Ho Chi Minh (Vietname), Bertolt Brecht (RDA) e vários textos no anonimato de autores chineses.

23 Destes, pode-se assinalar, entre outros, a existência de textos de Amílcar Cabral, Agostinho Neto, Baltazar Lopes.

24

Do Brasil, por exemplo, pode-se destacar um texto de Vinícius de Morais e de Portugal os de autoria de Eça de Queirós, Papiniano Carlos, entre outros.

2.6. Em outras palavras

Neste capítulo procuramos de uma forma mais explícita, expor a teoria que dá suporte a este estudo, assim como dedicar atenção à compreensão do livro escolar enquanto lócus de pesquisa. Da discussão que fizemos vale a pena reter aqui as idéias principais que dela podemos extrair. Em primeiro lugar, dissemos que o processo de monopolização dos controles sociais, no caso, o sistema de ensino, levou a que se criassem condições para que a elite dirigente da FRELIMO pudesse difundir suas visões de mundo e tentar hegemonizá-las sobre aqueles que consumiam os produtos escolares – os alunos. Esse processo caracterizou-se basicamente pela concentração e centralização dos meios de ensino, que no período colonial estavam difundidos pelas igrejas, sobretudo a católica e as protestantes.

Os livros escolares e particularmente os de leitura, é que se encarregavam de difundir essas visões de mundo, do habitus nacional, que a elite da FRELIMO pretendia que os alunos absorvessem. Em termos de estratégias de concepção de tais livros, é possível notar, a partir de seu perfil, que optou-se por torná-los o mais impessoais e atemporais possível, dando-lhes uma autoria coletiva (ou institucional) sob a chancela do MEC, não havendo a preocupação de descriminar claramente o ano de publicação dos mesmos. Isto quer dizer, em outros termos, que se procurava, a todo o custo construir um “nós” como sendo o autor dos livros, independentemente de quem o compilou e quando. Esse “nós”-autor, apesar de ser representado como tendo sido o MEC, é na verdade a FRELIMO, enquanto movimento político que tinha o controle do monopólio do sistema de ensino e reclamava tal autoria. Aqui, porém, vale notar que conforme o discurso da FRELIMO, ela era o “povo” e por consequência, o autor coletivo dos livros escolares era o povo moçambicano como um todo. Ou seja, ela procurou difundir a idéia de que o autor dos livros escolares era o povo e, por isso, os alunos, sendo filhos do “povo” moçambicano, deviam aceitar e assimilar os conteúdos dos referidos livros, uma vez que era a vontade do “povo” que estava em causa. Para compreendermos melhor essas estratégias discursivas, faz-se necessário investigar o processo de hegemonização e legitimação de visões de mundo pela elite da FRELIMO. Esse constitui um dos pontos a ser discutido no capítulo que se segue.