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4. O “HOMEM NOVO” EM FORMAÇÃO

4.2. Os “inimigos” do trabalho

Para se construir essa ética do trabalho a partir do discurso, a FRELIMO procurava solidificá-lo a partir da criação de uma outra imagem, oposta à do trabalhador, mostrando desta forma, que existem dois caminhos possíveis de identificação do indivíduo: pelo trabalho ou contra ele. Assim, sendo os livros escolares, tentam demonstrar esse lado oposto à ética do trabalho e desta forma desencorajá-lo. Vejamos em seguida dois exemplos. O primeiro é uma fábula, que ocorre numa floresta que estava a braços com a falta de água e os animais que lá viviam deveriam solucionar tal problema; o segundo ilustra uma situação em que o alcoolismo pode constituir um “inimigo” da ética do trabalho.

Havia falta de água na floresta e, por isso, os animais resolveram abrir um poço.

Mas o coelho, que era preguiçoso, não quis trabalhar.

Quando a obra acabou, os animais puseram o macaco de guarda para não deixar o coelho tirar água.

Um dia, o coelho sentiu sede e dirigiu-se ao poço. Ao ver o macaco, disse- lhe.

- olá! Como me sinto contente hoje! Trago-te aqui uma prenda. Queres ver? O coelho mostrou-lhe um embrulho com mel, abriu-o e deu-lhe um pouco. - Prova. Então? Gostas?

- Gosto muito. Dás-me mais? - pediu o macaco.

- se me deixares tirar água, dou-te o resto – respondeu o coelho. - Está bem.

O coelho deu o mel ao macaco e encheu a lata que trazia. Durante vários dias, o coelho foi tirando a água, em troca de mel que dava ao macaco. Os outros animais iam perguntando ao companheiro que guardava o poço: - Então, o coelho já apareceu a pedir água?

- Não, nunca o vi – respondia sempre o macaco.

Muito admirados, pois na floresta não havia água em parte alguma, resolveram investigar o que se passava.

Esconderam-se nas proximidades do poço e, algum tempo depois, viram o coelho chegar, trazendo uma lata e um embrulho que entregou ao macaco. Logo perceberam que o companheiro se tinha desviado do cumprimento do dever, pela ambição de receber presentes.

Ali mesmo o prenderam e ao coelho também. A impala perguntou, então:

- O que vamos fazer-lhes?

- Julgá-los e reeducá-los (MEC, 1989?, p.70-71. Livro de leitura da 4ª classe)

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O alcoolismo

Mário é casado e pai de dois filhos.

Trabalha numa fábrica, onde era um bom operário, pontual e trabalhador. Tudo quanto ganhava era para o sustento da família.

A mulher cuida de uma pequena machamba no terreno contíguo à casa, contribuindo também com o seu trabalho para o bem-estar de todos. Mário vivia feliz com a família, vendo crescer os filhos, fortes, alegres e bons estudantes.

Mas, a partir de certa altura, a vida desta família mudou.

Mário começou a beber excessivamente. Ás vezes percorre grandes distâncias à procura de bebidas, regressando a casa muito tarde.

Quando chega, é freqüente acordar toda a família aos gritos, incomodando a vizinhança que começa a perder a estima que tinha por ele.

Deixou de ser um elemento útil à família que agora sofre maus tratos, e vive em grandes dificuldades.

Gasta todo o salário na compra de bebidas e quando o dinheiro acaba faz dívidas para sustentar o seu vício.

Na fábrica, a sua produtividade baixou e falta muitas vezes ao trabalho. A sua noção de responsabilidade desapareceu.

O alcoolismo parece ter vencido este homem. No entanto, temos a certeza de que ele é capaz de recuperação, de voltar a ser o que era: um bom operário, pontual e trabalhador [...] (MEC, 1989?, p. 53. Livro de leitura da 4ª classe).

Os dois textos acima apresentados, sem dúvida, constituem uma estratégia discursiva para reforçar ainda mais a idéia de que o trabalho é a única forma de integração na sociedade e não a preguiça, a troca de favores ou o consumo excessivo de drogas, mais concretamente, do álcool. O coelho e o macaco, que no caso concreto do primeiro texto representavam exemplos, por um lado, de um personagem que não se identificava com o trabalho (o preguiçoso) e por outro, do personagem que é capaz de pôr em causa o esforço coletivo em troca de favores (o corrupto), tiveram como condenação social a passagem por um novo processo de reeducação, para aprenderem a viver em comunidade.

O mesmo acontece com o Mário, personagem do segundo texto, que devido ao consumo excessivo do álcool, viu a sua condição de trabalhador exemplar e pai de família que cumpria com as suas obrigações domésticas, deteriorar para um indivíduo que apenas perturbava e trazia mal-estar às pessoas ao seu redor. Porém, o texto encerra, abrindo a possibilidade, ou a esperança, que o Mário volte a ser o homem que era antes, isto é, um trabalhador exemplar e cumpridor de suas obrigações sociais. Como podemos ver, tanto no primeiro quanto no segundo texto, a regeneração, através da reeducação, parece ser a solução para esse tipo de comportamento e atitude.

Esses textos, longe de representarem uma situação totalmente fictícia, refletem uma prática que era recorrente durante o processo de construção da nação moçambicana. Efetivamente, olhando o discurso da FRELIMO, a partir do posicionamento de seu então presidente, Samora Machel, pode-se ver essa tendência de “criminalizar” os comportamentos contrários ao habitus trabalhador que se pretendia instituir. Para Machel (1980), existiam certos moçambicanos que não se adaptavam ao novo estilo de vida que estava sendo implantado em Moçambique, o

qual os denominou de “inimigos internos”. Esses moçambicanos, a partir de suas atitudes como preguiça, corrupção, desleixo, indisciplina, alcoolismo, prostituição, boemia, entre outros, punham em causa a assimilação do trabalho enquanto atividade fundamental para a reprodução da sociedade moçambicana. A estas pessoas, nada mais restava, segundo Machel, senão sua integração forçada nos campos de produção para que fossem ressocializadas, ou seja, para que incorporassem a ética do trabalho como seu principal modus vivendi.

Assim sendo, os personagens dos textos acima apresentados, cujo fim foi seu encaminhamento para a reeducação, representam exemplos negativos nos quais os alunos não deveriam se inspirar, senão teriam o mesmo fim. Isto vem enfatizar, em nosso entender, a idéia de que os livros escolares a partir de contos, fábulas e outros tipos de textos nele contidos, procuram, sem dúvida, sugerir para os alunos que a pertença à sociedade moçambicana implica na adequação aos princípios que simbolicamente a procuram definir. Neste caso, a ética do trabalho é, sem dúvida, determinante.