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1. O CONCEITO DE NAÇÃO E SEUS DERIVATIVOS

1.3. O habitus nacional

Como deve estar claro, até aqui discutimos o conceito de nação e a grande conclusão que podemos tirar é a de que ela nada mais é senão um espaço social imaginado, onde os indivíduos reconhecem-se como membros de uma determinada comunidade nacional que tem seus limites políticos e geográficos e almeja a soberania. Pois bem, as nações se diferenciam uma das outras dependendo da forma pela qual foram imaginadas e do contexto sociosimbólico em que esse processo decorreu. Isto quer dizer que Moçambique, por exemplo, se diferencia de outras nações devido às peculiaridades do contexto social que esteve por detrás da ação das elites nacionalistas, ou seja, daqueles que tiveram um papel significativo na imaginação e difusão da idéia de nação, assim como pelas condições que levaram às populações a legitimar ou não esse projeto. A procura desse contexto peculiar, que é representado por símbolos, por exemplo, nos levou a direcionar nossa análise de nação a uma dimensão simbólica e não essencialista.

Do conceito de nação podemos subtrair vários derivativos que ajudam a torná-lo menos abstrato e mais operacionalizável. Trata-se de conceitos como por exemplo “caráter nacional”, “identidade nacional” ou “habitus nacional”. Poderíamos, neste estudo, usar qualquer um desses conceitos para tornarmos o conceito de nação mais operacionalizável. Contudo, a revisão bibliográfica que fizemos sobre tais conceitos sugere-nos que eles nem sempre são de uso pacífico nas Ciências Sociais. Referimo-nos sobretudo aos conceitos de “caráter nacional” e “identidade nacional”, que muitas vezes são conotados com uma concepção essencialista, a qual temos rejeitado neste estudo. Um exemplo disso é a definição de Otto Bauer (2000), para quem, “caráter nacional” se refere ao complexo de características

físicas e mentais comungadas pelos diferentes indivíduos pertencentes a uma nação e que permite diferenciá-los dos membros de outra nação. Aqui, como podemos ver, o autor em alusão evidencia aspectos físicos e de personalidade para definir o padrão do povo de uma nação. Isto pode ser ainda mais claramente visível em Darcy Ribeiro, que ao abordar a especificidade do povo brasileiro, defende que a identidade nacional matriz do brasileiro é o homem mestiço, que foi se moldando historicamente, tanto em decorrência das relações interraciais entre brancos e negros, como de negros e índios ou brancos e índios.

Este tipo de concepção é deveras problemática. Efetivamente, para De Menezes (2008), por exemplo, o conceito de caráter nacional assim como os seus correlatos como “identidade nacional”, tem pouca relevância para a Sociologia pelo fato de sugerir uma idéia de unicidade, de consenso dentro de uma coletividade humana; enquanto, na verdade, as relações sociais são permeadas de tensões e conflitos sociais a ponto de não se poder ver tal “unicidade nacional”, nem física e muito menos cultural13. Este argumento está igualmente presente em Elias (1993; 1994; 2010) ao considerar que o social nunca é estático e unívoco. Para o autor, o social é processual, relacional e encerra dentro de sí vários conflitos ou antagonismos. Assim, dentro de um país, como Moçambique, por exemplo, podemos encontrar antagonismos de classe, etnia, região e sexo, entre outros.

O conceito de habitus nacional, porém, pareceu-nos ser o menos problemático em relação aos citados anteriormente. Efetivamente, o seu uso na Sociologia, sobretudo a partir de definições a ele atribuída por Bourdieu ou Elias, nos sugere que o habitus são disposições que apesar de dizerem respeito a um determinado agrupamento social – classe, profissão ou nação – nos sugerem, igualmente, que tais disposições encerram tensões sociais e que se encontram mergulhadas num processo social de criação e recriação, isto é, de mudança. É levando em consideração isso, e sobretudo pelo fato do conceito não sugerir essencialismos, que optamos por operacionalizar o conceito de nação através do

habitus nacional, dado que estamos convencidos de que a idéia de nação, longe de

13 De Menezes vai mais longe ao considerar que esses conceitos, encerram, acima de tudo questões moralistas que estiveram na origem, ou pelo menos serviram de justificativa para a implementação de regimes políticos repressivos e autoritários, como o Nazismo. Por isso, considera que eles devem ser evitados nas ciências sociais ou pelo menos usados com redobrada vigilância para não se cair em essencialismos.

encerrar conformismos e homogeneidade, caracteriza-se por tensões sociais constantes .

Assim sendo, devido aos propósitos desta pesquisa, optamos por trabalhar com o conceito de habitus nacional apresentado por Elias, pois nos pareceu melhor se adequar ao trabalho, pelo fato mesmo de serem os pressupostos teóricos e metodológicos deste autor, assentes na Sociologia dos Processos, o suporte da presente pesquisa. É assim que definimos o habitus nacional como sendo o conjunto de autoimagens, sentimentos e do nós-ideal que determinado povo - que pertence ou almeja pertencer a um Estado - tem de si e dos outros (Elias 1997). Como podemos notar, Elias, ao definir habitus nacional, enfatiza a questão das autoimagens, dos sentimentos e do nós-ideal como sendo indicadores que acompanham esse conceito. Este habitus que, apesar de ter sido impulsionado por processos de concentração da violência física, da expansão econômica e industrial, isto é, do Estado moderno, foi principalmente favorecido por processos simbólicos, que concomitantemente aos materiais, estiveram na vanguarda da imaginação das nações européias e da emergência de um habitus nacional mais ou menos “padronizado” nesses países. Tais foram os casos, por exemplo, das edições livrescas de vária natureza, desde os religiosos até aos de etiqueta, passando pelos romances (Elias, 1993; Anderson, 2008) que possibilitaram a que as pessoas passassem, depois de longos anos de leitura, a comungarem certas visões de mundo, sentimentos e um ideal de comunidade mais ou menos “padronizados” no espaço nacional – o habitus nacional. É, portanto, deste caráter simbólico do processo de construção da nação, que este estudo se vale, para compreender como é que os livros escolares produzidos e difundidos em Moçambique no período em análise, indicavam o sentido que se pretendia atribuir à jovem nação em formação.