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O entendimento da sequência narrativa para além do protótipo:

Weinrich (1974), no campo da narrativa, não trata da sequência em si, mas aponta elementos formais, enfocando essencialmente os tempos do verbo e o que a eles está atrelado. Seguindo esse direcionamento, atenta para três características que fazem parte desse sistema temporal, dentro de uma macrossintaxe do texto: atitude de locução, perspectiva de locução e indicação de relevo (WEINRICH ,1974).

2.5.1 Os tempos verbais e a situação comunicativa

As três características do sistema temporal vistas por Weinrich (1974) são subordinadas entre si, sendo que a referência basilar é a classificação mundo narrado e mundo

comentado, que envolve a atitude de locução. Em cada um desses mundos, podem-se

encontrar diferentes perspectivas: retrospectiva, grau zero e prospectiva. A indicação de relevo – primeiro plano e segundo plano –, normalmente, articula-se com a perspectiva zero e ocorre visivelmente no mundo narrado. Como diz Weinrich (1974, p. 275-276), “não só a oração isolada, como também o texto inteiro, é um andaime de determinação cujas partes mantêm interdependência”.

Por atitude de locução, Weinrich (1974) compreende o tipo comunicacional da linguagem adotado por um locutor (falante ou escritor). Para ele, há dois tipos de atitude de locução: comentário e narração. São textos em que prevalece o comentário: a conversação, o ensaio literário, a exposição científica, os artigos de opinião e outros mais que exigem uma atitude relaxada, seja, de comprometimento com a mensagem, na produção ou na recepção. Constituem textos com sequências predominantemente do mundo narrado: a novela, o romance, a lenda, a anedota, a notícia policial, as histórias do cotidiano e qualquer texto que

exija do interlocutor uma atitude contraída. Adotar essa atitude significa não proceder a nenhuma reação face ao que está sendo dito.

Com o fim de indicar a atitude comunicativa, cada língua possui tempos verbais próprios. Por exemplo: a) em francês: no comentário, utilizam-se o passé composé, présent e

futur e, na narração, o passé antérieur, plus-que-parfait, imparfait, passe simple e

conditionnel; b) em português: no comentário, fazem-se uso do pretérito perfeito, presente e

futuro do presente e, na narração, do pretérito mais que perfeito, pretérito perfeito, pretérito imperfeito e futuro do pretérito.

Na atitude de comentar, o que prevalece é o que as gramáticas chamam de tempo presente. Na atitude de narrar, o que vai predominar é o tempo pretérito. Esse tempo, porém, pode ser utilizado em atitude de não narração (cf. perspectiva de locução no comentário). E, ainda, no dizer de Weinrich (1974, p. 104), “inversamente, podemos narrar o que não seja passado”. Tem-se narrativas no presente, por exemplo, na transmissão de jogo de futebol, corrida automobilística, vaquejada e outras competições esportivas.

O uso do pretérito se dá no texto em atitude de narração, não simplesmente porque apresenta fatos no passado, mas sobretudo porque conduz os interlocutores para uma atitude de contração. Nesse sentido, o leitor (ou o ouvinte) não precisa estar implicado na discussão do conteúdo, como o fará necessariamente quando se tratar do mundo comentado.

Mas o que se constitui sinal indicativo de que se trata de uma atitude ou de outra? De acordo com Weinrich (1974), é preciso considerar a inserção do texto em uma situação de comunicação, o que permitirá observar, por exemplo, que os morfemas de tempo e de pessoa (bem como os advérbios) estão ligados à relação de interlocução. Esses apresentam indícios que revelam ao interlocutor a ideia de que se trata de comentário ou de narração, uma atitude de envolvimento ou de passividade, respectivamente.

Por esse prisma, não é o passado como tal que é expresso pelo tempo verbal, mas a atitude comunicativa que essa forma do verbo imprime, se de contração ou de relaxamento, no contexto em que ocorre.

Apesar da possibilidade de a forma do pretérito aparecer tanto em contexto do mundo narrado como do mundo comentado, um mesmo tempo verbal não pertencerá simultaneamente a atitudes de locução distintas (WEINRICH, 1974), todavia essas podem imbricar-se em um mesmo texto. Assim, pelo que diz Weinrich (1974), os morfemas temporais, ao indicarem comentário e narração, possibilitam que o locutor influencie o ouvinte/leitor, ajustando a recepção que pretende para seu texto.

Convém enfatizar que esse pesquisador, ao falar de narração, refere-se especificamente a uma atitude de locução, distinguindo-a do tipo de texto denominado narrativo. O texto narrativo, por sua vez, compreende atitude de narração (predominantemente) e de comentário.

A perspectiva de locução diz respeito ao eixo no tempo em que se coloca o locutor para, a partir de então, ordenar temporalmente os fatos. Sendo desse modo, tem-se, tanto no grupo do comentário como no da narração, os tempos zero (sem perspectiva), retrospectivo (volta ao passado) e prospectivo (antecipação do futuro). Esses tempos exercem a função de expressar a relação entre o tempo do texto e o tempo da ação, bem como de situar o locutor e o interlocutor em um eixo cronológico. Ressalta-se, no entanto, que são os tempos zero os que mais se utilizam. Para o mesmo pesquisador, isso demonstra, na prática de nosso discurso, a falta de interesse por uma orientação (a partir dos tempos verbais) baseada em perspectiva.

Então, os tempos menos usados têm a ver ou não com o Tempo? Segundo Weinrich12,

Não creio que os tempos na perspectiva comunicativa sejam formas mais temporais (de Tempo) que em suas outras características. Ao dizer que os tempos da linguagem nada têm a ver com o tempo, isso não quer significar que os tempos neguem o fenômeno extralinguístico do Tempo, e inclusive o próprio discurso é um desses processos. Esse tempo físico, mensurável, já está pressuposto na linguagem ao mesmo tempo que o mundo real. É coisa que não tem nada de particular; afinal a palavra “hora” também pressupõe tempo. Da mesma maneira, também as perspectivas de retrospecção e prospecção, em alguns tempos, pressupõem tempo (WEINRICH, 1974, p. 99).

De modo idêntico ao que ocorre com as outras características, as formas verbais indicando retrospecção e prospecção também sinalizam para uma atitude comunicativa

adotada pelo falante: “A retrospecção e a prospecção são no mundo comentado manifestações de compromisso; a retrospecção e a prospecção são no mundo narrado manifestações de liberdade” (WEINRICH, 1974, p .100).

A indicação de relevo, por outro lado, consiste na função dos tempos verbais de dar destaque e distinção a certas partes de um texto, dispondo alguns conteúdos em primeiro plano e outros em segundo plano.

O primeiro plano vem expresso pelo tempo verbal que conduz o fio da narrativa, representando os eventos que se sucedem em uma ordem cronológica. Já o segundo plano – ou pano de fundo – é indicado pelo tempo verbal que representa eventos co-ocorrentes ou simplesmente representa enunciados explicativos ou descritivos a respeito do que é abordado pelo primeiro plano.

A esses dois planos associa-se a noção de velocidade, em função do ritmo que se estabelece na abordagem dos fatos. Esses, ao serem representados, em língua portuguesa, pelo pretérito perfeito – primeiro plano –, adquirem uma certa rapidez. Se representados pelo pretérito imperfeito – segundo plano –, apresentam lentidão (WEINRICH, 1974).

2.5.2 As transições temporais no texto

Apesar de a narrativa, em seu transcurso, vir representada eminentemente pelo tempo verbal no pretérito perfeito como primeiro plano e pretérito imperfeito como pano de fundo, outras formas verbais podem transitar na construção do texto, compondo tal seqüência ou inserindo-lhe alguma seqüência.

Para Weinrich (1974), as transições temporais, que representam a passagem de um tempo verbal a outro, articulam-se, entre si, através das noções de atitude de locução, perspectiva de locução e indicação de relevo. Nessas três dimensões do sistema temporal da situação comunicativa podem aparecer transições homogêneas ou heterogêneas.

As transições homogêneas ocorrem no interior de uma das referidas dimensões – exemplo, a) na atitude de locução: mundo narrado ↔ mundo narrado, mundo comentado ↔ mundo comentado; b) na perspectiva de locução: grau zero ↔ grau zero, informação antecipada ↔ informação antecipada, informação passada ↔ informação passada; c) na

indicação de relevo: pano de fundo ↔ pano de fundo, primeiro plano ↔ primeiro plano.

As transições heterogêneas se dão na passagem de uma dimensão a outra – exemplo, a) na atitude de locução: mundo narrado ↔ mundo comentado, mundo comentado ↔ mundo narrado; b) na perspectiva de locução: grau zero ↔ retrospecção, retrospecção ↔ grau zero, retrospecção ↔ prospecção; c) na indicação de relevo: pano de fundo ↔ primeiro plano, primeiro plano ↔ pano de fundo.

Bastos (2001), estudando a relação de coerência e coesão em narrativas escolares, observou que a noção de transição vai além da proposta de Weinrich (1974). A pesquisadora brasileira chegou à conclusão de que as transições verbais podem ser constatadas, também, associando-se um determinado tempo verbal a um determinado momento da narrativa: no resumo, na situação inicial, na complicação, na (re)ação/avaliação, na resolução, na situação final e mesmo na moral.

Em nossa pesquisa, ao observarmos o movimento dos tempos verbais em cada parte da narrativa, pautamo-nos na noção de transição, tomando como base a proposta de Weinrich (1974), mas complementando com a proposta de Bastos (2001).

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