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Eu nasci na cidade de São Paulo no dia 24 de março de 1970. Tenho 32 anos e possuo deficiência intelectual (síndrome de down). Eu sou a caçula da minha família, tenho pai, mãe, uma irmã e um irmão mais velhos do que eu e dois sobrinhos, que eu cuido com muito carinho. Meu pai é político e empresário e minha mãe é diretora da Associação Carpe Diem, uma instituição só para pessoas com deficiência intelectual que eu também participo. Meus pais são divorciados e eu moro apenas com a minha mãe em um apartamento bem grande, onde tenho meu próprio quarto, computador, celular, carro e motorista.

Apesar de eu ter deficiência intelectual, meus pais nunca me protegeram muito e sempre me estimularam a ser independente... Eles me tratam muito bem. Eles me respeitam e com a minha vontade. Eles estão orgulhosos de mim porque comecei a trabalhar. Era isso que minha mãe queria e hoje eu estou fazendo isso. E o meu pai também. Eles me apóiam bastante. Eu sou muito amiga dos meus pais, eles sempre respeitam as minhas decisões, até quando eu decidi que queria morar em João Pessoa, e me dão abertura para falar tudo o que eu desejo, inclusive quando fala de sexualidade também, eles são super abertos, eles me escutam muito bem, porque eu já levo a relação para os dois. Eles me respeitam em decisões difíceis, como quando decidi morar sozinha. Eles querem que eu tenha autonomia, quando eles viajam, eu fico sozinha em casa só com a secretária, mas o meu sonho mesmo é morar sozinha, em minha própria casa. Meus pais me vêem como adulta, me ajudam a alcançar os meus sonhos e hoje eu tento ser mais determinada... eu já quero mostrar conhecimento, experiência, convivência para um mundo lá fora, para que outras pessoas possam trabalhar também e preparar os pais e a família.

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Esse grupo existe para auxilar as pessoas com deficiência intelectual a lidar com as questões e desafios diários advindos do mercado de trabalho onde estão inseridos. As reuniões acontecem uma vez por semana, no Carpe Diem, onde os jovens possuem um momento de compartilhar e também aprendem sobre assuntos importantes relacionados ao trabalho, como férias, 1/3 salário, FGTS, ética, dentre outros.

Eu sou alfabetizada e estudei toda minha vida em escolas especiais privadas, desde os oito anos de idade até por volta dos quinze anos, eu acho. Na escola especial eu sempre recebi muito apoio dos professores e da equipe pedagógica e eu gostava muito, eu fiz amizades e quando eu era pequena eu já comecei a namorar com o Léo na escola. Eu passei um tempo muito bom na escola especial, conheci muitas pessoas e a maioria dos amigos que tenho hoje são desde aquela época da escola. Quando eu tinha dificuldade para entender a matéria ou fazer dever de casa os professores sempre me ajudavam. Eu nuca repeti nenhum ano escolar, porque na escola especial não tinha isso, mas eu também não concluí nenhuma série da educação básica. Na escola especial eu nunca tive preconceito porque todos eram iguais a mim, mas também eu só tinha amigos com deficiência. Eu saí da escola especial quando minha mãe fundou o Carpe Diem, pois ela não gostava destas escolas que eu estudava. Ela juntamente com o apoio de duas amigas, que também trabalhavam na escola especial, criou o Carpe Diem em 1996 e quem deu o nome da associação, que quer dizer “aproveite o dia”, foi o meu pai, Rogério Amato. No Carpe Diem eu comecei a estudar em uma turma de EJA, que faz parte do PEC (Programa de Educação Continuada), onde a gente estudava português e matemática e também eu participei de diversos grupos e atividades, como Ateliê de Pintura, Grupo de Cidadania, Orientação Vocacional, o Grupo Vivendo com Autonomia, Grupo Terapêutico, etc. Hoje eu faço parte apenas do Grupo Operativo, onde nós aprendemos sobre o trabalho e do Grupo Com a Palavra o Jovem com Deficiência Intelectual, onde nós fazemos palestras em muitos congressos.

Além de freqüentar o Carpe Diem, eu já fiz alguns cursos profissionalizantes no SENAI e curso de informática, para poder aprender mais e conseguir um emprego. Eu gosto de estudar, mas eu não penso em fazer faculdade. Eu quero me tornar uma mediadora do Carpe Diem e assim poder ajudar outras pessoas com deficiência, é isso o que eu desejo para o meu futuro.

Mariana teve origem em uma família de condição social elevada da cidade de São Paulo e foi criada em “berço de ouro”, diante das melhores oportunidades de desenvolvimento possíveis. Apesar de ser a caçula e ter nascido com uma deficiência, os seus pais sempre a estimularam a criar autonomia e nunca permitiram que o ‘rótulo’ de deficiente tivesse um efeito limitador ou denegridor em sua vida.

O posicionamento dos pais de Mariana em relação a sua vida e escolhas, revela o papel-chave que eles tiveram na construção da sua autoadvocacia, a despeito do que Neves (2005) discorre quando afirma que a ideia inicial da autoadvocacia foi muito difícil para inúmeros pais que criam os seus filhos como pessoas dependentes e infantilizadas, mesmo quando já estão na fase da vida adulta. A família de Mariana, que a educou para ser independente e não viver continuadamente sob a tutela deles

contribuiu muito para o seu processo de empoderamento e para a eliminação do rótulo de deficiente que poderia existir sobre sua história.

A relação de amizade desenvolvida entre Mariana e os seus pais, refletida em sua fala quando ela afirma que ‘eles me respeitam... eles são super abertos, eles me escutam muito bem’ revela o apoio que eles oferecem a ela, assim como o respeito que têm por suas decisões, até quando envolve assuntos relacionados à sexualidade. Os pais de Mariana a tratam como adulta e respeitam as suas decisões auxiliando-a a alcançar os seus sonhos. Um exemplo dessa relação respeitosa que os pais têm com ela, foi o fato deles terem permitido que ela morasse sozinha em João Pessoa, na casa de uma amiga, por um período de oito meses, como a jovem menciona em seu depoimento, em uma cidade carente, sem condições alguma de oferecer a vida que Mariana possuía em São Paulo.

Toda essa liberdade concedida pela família de Mariana desde criança, permitindo que ela expressasse os seus desejos, sonhos, vontades, e realizasse os seus projetos de vida, ajudou-a a desenvolver uma identidade própria, firme, que não se confunde com a sua deficiência, mas que revela a sua singularidade enquanto pessoa humana. A presença dessa identidade única é refletida em diversos aspectos da fala de Mariana, como por exemplo, quando ela expressa com convicção que ‘hoje eu tento ser mais determinada... eu já quero mostrar conhecimento, experiência, convivência para um mundo lá fora’.

A construção dessa identidade própria de Mariana foi essencial para que ela pudesse criar autoestima, autoconfiança e assim desenvolver um dos aspectos chaves da autoadvocacia que é autonomia e participação. Essa autonomia de Mariana e o desejo de ser cada vez mais independente é revelada no fato da alegria que ela sente em poder ficar em casa sozinha com a secretária quando sua mãe viaja e quando expressa o seu imensa vontade de conquistar o seu próprio lar, ‘meu sonho mesmo é morar sozinha, em minha própria casa’.

Mariana estudou toda a vida em escolas especiais privadas, onde pôde desenvolver muitas relações de amizade e até de namoro, revelada em sua fala quando afirma que ‘eu fiz amizades e quando eu era pequena eu já comecei a namorar com o Léo na escola’. Mariana teve um tempo muito bom na escola especial, fez muitos amigos que estão presentes até hoje em sua história e recebeu todo o apoio pedagógico que necessitava.

Na escola especial, como se observa, Mariana não encontrou as barreiras atitudinais presentes na vida escolar de Alseni e Thiago dentro do sistema regular de ensino, nem foi vítima de preconceito ou exclusão, tendo em vista que naquele lugar a sua deficiência não constituía diferença, mas normalidade. Por outro lado, por estar inserida em um sistema especial de ensino, a educação que Mariana recebeu também foi limitada, uma vez que não a proporcionou a conclusão da educação básica, assim como a convivência com pessoas sem deficiência. No entanto, Mariana conseguiu se tornar uma pessoa muito articulada socialmente porque a partir do suporte oferecido pela família, sempre teve oportunidades de inserir-se em outras esferas sociais.

Mariana saiu da escola especial quando sua mãe, insatisfeita com o sistema de ensino em que sua filha estava inserida, criou o Carpe Diem. A filosofia do Carpe Diem de favorecer a autodeterminação/autoadvocacia das pessoas com deficiência intelectual revela o engajamento da sua mãe de proporcionar ferramentas para que a filha não se tornasse alguém invisível socialmente, mas conseguisse ter seu próprio projeto de vida e as condições para alcançá-lo. Dentro do Carpe Diem Mariana participou de muitos grupos e atividades pedagógicas e sociais que favoreceram ainda mais a construção de sua autonomia e a consciência acerca dos seus direitos.

Dentro desta instituição Mariana se desenvolveu enquanto pessoa humana, aprendeu sobre sexualidade e descobriu a sua vocação, as metas que queria perseguir em sua vida. Mariana mostra indícios de sua autonomia quando ela afirma que não vive a vida dos pais, mas ‘eu quero me tornar uma mediadora do Carpe Diem e assim poder ajudar outras pessoas com deficiência’. O fato de Mariana escolher para o seu futuro outro caminho sem necessariamente dar continuidade aos seus estudos mostra a sua subjetividade enquanto pessoa e ainda revela o exercício da autoadvocacia na medida em que o empoderamento constitui um processo de desenvolvimento de potencialidades individuais, visando tornar a pessoa capaz de direcionar a sua vida de acordo com seus sonhos e desejos (SILVA, 2009). Ou seja, o empoderamento não implica seguir um padrão de vida determinado pelo sistema ou pela maioria das pessoas, mas escolher um estilo de vida em consonância com sua vocação e desejo, como Mariana reflete em sua fala.