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4 Presença do Coque na Internet

4.2 O espaço discursivo do Coque na web

Antes de partirmos para a análise dos temas e das figuras elencados no espaço discursivo formado pelos enunciados55 sobre o Coque-Recife reunidos no YouTube e no Orkut, é

conveniente traçar brevemente um perfil de cada um dos três posicionamentos discursivos circunscritos nesse espaço, a fim de que possamos entender de que maneiras eles interagem e se diferenciam na produção de seus discursos sobre o Coque-Recife. Discursos, segundo Maingueneau, podem ser entendidos como uma “dispersão de textos, cujo modo de inscrição histórica permite definir como um espaço de regularidades enunciativas” (2008, p. 15). É a verificação dessas regularidades no Discurso, segundo Maingueneau, que permite relacionar uma superfície discursiva – “o corpus feito objeto de um tratamento, do qual se extraímos os elementos pertinentes para uma pesquisa dada” (Charaudeau e Maingueneau, 2008, p.461) – com determinados posicionamentos.

Cada posicionamento abriga uma identidade enunciativa e é, ao mesmo tempo, delimitado por ela e, segundo Charaudeau e Maingueneau (2008, p.267), essa identidade “caracteriza a posição que o sujeito ocupa em um campo discursivo em relação aos sistemas de valor que aí circulam, não de forma absoluta, mas em função dos discursos que ele mesmo produz”. Para Charaudeau (apud Charaudeau e Maingueneau (2008, p.393):

O posicionamento corresponde à posição que um locutor ocupa em um campo de discussão, aos valores que ele defende (consciente ou inconscientemente) e que caracterizam reciprocamente sua identidade social ideológica. Esses valores podem ser organizados em sistemas de pensamento (doutrinas) ou podem ser simplesmente organizados em normas de comportamento

55 Segundo Charaudeau e Maingueneau (2008, p. 196) em um nível transfrástico, “o enunciado é considerado uma sequência verbal que forma um todo constitutivo de um determinado gênero de discurso: um boletim metereológico, um romance, um artigo de opinião, uma conversação, etc. trata-se de uma espécie de equivalente de texto.”

social que são então mais ou menos conscientemente adotadas pelos sujeitos sociais e que os caracterizam identitariamente. Pode-se falar, portanto, de 'posicionamento' também para o discurso político, midiático, escolar. . .

Para os autores, a referência direta a posicionamentos seria preferencial no tratamento de identidades de fraca consistência doutrinal (Charaudeau e Maingueneau, 2008, p.393), como é o caso dos discursos referentes ao Coque na web, onde podemos encontrar até mesmo enunciadores com origem no mesmo espaço social assumindo posicionamentos discursivos conflitantes. Para os autores, a opção por tratar essas identidades enunciativas como posicionamentos evitaria lidar com o caráter “mal definido” de um outro conceito, o de Formação Discursiva56, ao mesmo tempo em

que permitiria fortalecê-lo como ferramenta para análise de discursos de posições políticas e ideológicas mais bem delimitadas.

No caso do Coque, delineamos três posicionamentos distintos, constituindo um espaço discursivo que relaciona identidades enunciativas de caráter não doutrinário, recortadas a partir de suas posições ideológicas, funções e estratégias argumentativas. Estas, por sua vez, interagem entre si a partir do interdiscurso (atualizada, no caso do Coque, no compartilhamento de temas e figuras), mas seu processo de interação é regido pelo que Maingueneau (2008) denomina interincompreensão regulada (novamente, no caso do Coque, essa interincompreensão regulada se manifesta na inversão de valores e no deslocamento de figuras entre alguns dos temas57).

Um primeiro posicionamento toma como lugar de fala “a comunidade” (sem que pertençam, entretanto, a um mesmo aparelho institucional ou mesmo que sejam dotadas das mesmas posições ideológicas) e se estrutura a partir de uma função mais expressiva. Sua estratégia argumentativa é de caráter individualista, carecendo de um projeto comum apesar da noção de um pertencimento coletivo ao Coque, baseada no desejo de inclusão/assimilação. Do seu caráter expressivo (e da origem individual), vem certa predominância de material bruto, registro sem formatação (edição, marcação) para a adequação a um gênero audiovisual.

O segundo posicionamento surge a partir da “Rede Coque Vive” (valendo-se de seu caráter aglutinador de campos sociais distintos, como a universidade, a comunidade e os movimentos sociais, como argumento de legitimidade) e baseada na mobilização de temas de ordem

56 Segundo Charaudeau e Maingueneau (2008:242), o termo diz respeito a “todo o conjunto de enunciados sócio- historicamente circunscrito que pode relacionar-se a uma identidade enunciativa”. Entretanto, segundo os autores, percebe-se um certo desuso dessa noção após seu uso indiscriminado nos anos 1980, de modo que hoje “tende-se a empregá-la, sobretudo, para os posicionamentos de ordem ideológica; também se fala mais facilmente de “formação discursiva” para discursos políticos ou religiosos do que para o discurso administrativo ou publicitário”.

57 P. ex. A figura do marginal hora é mobilizada como símbolo da violência pelo discurso da mídia, hora como símbolo do poder pelo discurso da comunidade, de onde podemos inferir que o tema da criminalidade assume um valor negativo para o discurso da mídia em que o recorte está inserido, enquanto aparece com valor positivo em parte do discurso da comunidade.

social, como a luta pela terra ou a discriminação social, no que fica evidente a presença de um sentido de coletividade. As produções são mais adequadas às convenções de gêneros, mas não estão presas a nenhuma determinação institucional, de modo que podem ser encontradas produções ora mais denotativas (documentários, reportagens), ora mais conotativas (videoclipes e até vinhetas experimentais). De um modo geral a produção adota uma estratégia de argumentação indutiva, segundo a qual os enunciados acionados (registros de memórias e acontecimentos particulares, questionamentos sobre a situação da comunidade) constroem o panorama de uma verdade mais ampla (de um Coque rico em experiências compartilháveis), composta desses fragmentos (e que se contrapõe à verdade homogeneizante construída pela mídia).

Um terceiro posicionamento pode ser percebido nos enunciados produzidos pela grande mídia. Também localizamos, aqui, os discursos produzidos por membros da comunidade ou outros enunciadores ligados em especial à Orquestra Criança Cidadã, vinculada ao Pólo Jurídico e ao empresariado local58. Estes discursos, embora não sejam oriundos diretamente das mídias, parecem

pautados por ela e por sua abordagem. Os posicionamentos dessa ordem demonstram ser mais homogêneos que os demais e a produção adota uma estratégia argumentativa baseada numa lógica abdutiva, segundo a qual a apresentação de casos particulares (os crimes e ações violentas registrados na comunidade) confirma uma verdade geral (a de um Coque violento como um todo) não necessariamente enunciada. Observa-se, aqui, a intenção de se produzir um certo efeito de objetividade, graças ao predomínio da função denotativa e da opção pelos gêneros jornalísticos.

Uma vez delineadas cada um desses posicionamentos passaremos a observar as suas presenças e interações na rede a partir do Orkut e do YouTube. Identificaremos de que maneira o tratamento semântico59 dado aos temas comuns a cada posição ideológica permite a circulação

desses enunciados entre os posicionamentos, se esta se dá livre dos enquadramentos preferenciais de cada posicionamento ou apenas através da “tradução” dos enunciados de cada uma das posições ideológicas no “registro negativo do seu próprio sistema”, que Maingueneau (2008, p. 100) denomina como estratégia da polêmica60.

Num primeiro momento, a observação da dinâmica de uso do Orkut por parte dos

58 Idealizada em 2005 pelo Juiz João José Rocha Targino, a orquestra criança cidadã tem como parceiros, entre outros, o Exército Brasileiro, a Companhia Hidrelétrica do São Francisco (Chesf), a Confederação Nacional da Indústria (CNI), a Celpe, Fundación Meridional, Grupo Gerdau, Banco BGN, Pamesa, Shineray Motos, Instituto de co- responsabilidade pela Educação, Construtura Queiroz Galvão e Unimed Recife. Seu custo de manutenção anual é de R$1. 440. 177,30 (fonte: http://www. orquestracriancacidada. org. br/occ/?p=479)

59Segundo Maingueneau (2008:1 p. 82) mais importante que os temas em sí é modo como são tratados, que permite reivindicar ou ou rejeitar determinados semas a partir de cada uma dessas posições discursiva, observando o que é específico (temas específicos) de cada formação e o que é imposto (temas impostos).

60 Maingueneau trata a polêmica como “uma espécie de homeopatia pervertida”, onde o Outro é introduzido no discurso “para melhor afastar sua ameaça, mas esse Outro só entra anulado enquanto tal, simulacro. ” (Maingueneau, 2008[1] :108)

moradores do Coque permite comprovar as lacunas de acesso e circulação dos conteúdos a que já nos referimos anteriormente. A opção por remeter ao Orkut na investigação da circulação dos conteúdos, se justifica pela presença quase que exclusiva dos enunciados referentes ao posicionamento da comunidade, enquanto que a presença das demais identidades enunciativas pode ser percebida a partir do modo como essas identidades são retomadas interdiscursivamente nos enunciados da comunidade.

Por outro lado, no YouTube podemos perceber de modo concreto as presenças dos três posicionamentos; e a partir dos enunciados postos em circulação por cada um, podemos observar os tratamentos dedicados aos temas compartilhados, seu processo de afirmação ou rejeição e quais os temas específicos de cada identidade enunciativa. A partir das observações da circulação e das continuidades temáticas, poderemos, então, passar à discussão do papel do CoqueVive na implementação de uma dinâmica de ocupação da web pelo Coque.