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O espaço do século XX: entre Geografia, Planeamento e Urbanismo

CAPÍTULO II | ESPAÇO RURAL

2.2 Definição de espaço

2.2.2 O espaço do século XX: entre Geografia, Planeamento e Urbanismo

A viragem do século XIX para o século XX, foi a ocasião para consolidar as abor- dagens interdisciplinares à noção de espaço, decorrentes dos extraordinários progres- sos realizados nos cem anos que acabavam de se esgotar e imprimir uma aceleração ao processo de modernização em curso. Ao longo de todo o século XX, o processo de indi- vidualização, especialização e articulação da noção de espaço operado pelos geógrafos, planeadores e urbanistas, resulta de uma permanente tensão dialéctica, redefinindo-se sob a influência antagónica das teorias possibilista/regional, (neo)positivista, da Geogra- fia quantitativa, estruturalista, humanista, marxista-radical e mais recentemente da Ge- ografia pós-estruturalista. Assim, nos primeiros 30 anos do século XX, a relação entre

Natureza e Homem foi ainda mais reforçada pela corrente do Possibilismo, suportada no principio da “contingência em tudo o que se refere ao homem” e na noção de liber- dade humana em relação ao meio, segundo a qual o homem utiliza as possibilidades que a natureza oferece de acordo com as suas necessidades e depois de uma decisão livre e conscientemente tomada (Lema, 1999). Os princípios do Possibilismo10 influenciaram de

forma determinante o pensamento do geografo francês Vidal La Blache, segundo o qual a relação entre ser humanos e a Natureza, estabelecida ao longo dos séculos, determina características espaciais únicas que constituem as bases para a delimitação das diferen- tes regiões (Holt-Jensen, 2009).

Com as teorias de Vidal de la Blache, assiste-se à afirmação da Geografia Regional como mais um ramo especializado da Geografia sendo que, como evidencia Ribeiro, (1995), "a análise de elementos separadamente é o objectivo da Geografia Física e da Geografia Humana; a acumulação das observações mostra a importância das relações locais, de uma variedade ainda mal sistematizada, dos tipos de extensão mais ou menos limitada ressaltando o largo papel dos estudos regionais". No entanto, a posição fulcral do Possibilismo “There are no necessities, only possibilities”11, idealizada por Febvre

(1922) e reinterpretada no âmbito da Geografia por Vidal de la Blache, reflecte a natu- reza vaga deste pensamento que inviabiliza a formulação de teorizações e generaliza- ções causais. Assim, sob a influência da corrente filosófica do Positivismo, a natureza essencialmente descritiva da Geografia que, até os anos 50, favorecia a interpretação da paisagem natural e humana e valorizava as particularidades das regiões e lugares, foi posta em causa (Kitchin, 2006).

O princípio da revolução metodológica, que irá ocorrer na Geografia a partir de 1950, tem origem na teoria dos lugares centrais de Christaller (1933). A modelação ma- temática e estatística e os modelos espaciais resultantes, bem como a concepção do espaço como superfície geométrica, elaborados por Christaller, deram um contributo determinante, para a teoria da Geografia começar a adquirir metodologias específicas e

10De facto, foi o historiador francês Lucien Febvre (1922) que primeiramente elaborou o termo Possibi-

lismo, em oposição ao Determinismo ambiental, influenciando o pensamento de Vidal de la Blache (Holt-Jensen, 2009: 45)

explicar os padrões e processos espaciais de forma científica (Gomes, 1996). O período que se seguiu à Segunda Guerra Mundial, constitui um momento de grande dinamismo conceptual e metodológico, e que pode ser enquadrado numa perspectiva de retomar os valores científicos da concepção. Neste enquadramento, o Positivismo, considerando os dados obtidos empiricamente como objectos fundamentais do conhecimento, surge com o intento de explicar os fenómenos sociais através da utilização de princípios e mé- todos científicos, desenvolvidos pelas ciências naturais e exactas (Kitchin, 2006). O con- tributo mais significativo da lógica positivista, no que se refere à noção de espaço, re- flecte-se no surgimento da Ciência Espacial e na Revolução Quantitativa12 que lhe veio

no encalço, com o objectivo de dar respectivamente, suporte metodológico-analítico e robustez explicativa-preditiva à Geografia enquanto disciplina científica (Holt-Jensen, 2009; Queirós e Vale, 2013).

Em 1960, a abordagem ao espaço foi caracterizada pelo desenvolvimento de análises dos padrões espaciais, onde as regiões e os lugares do ponto de vista físico e humano, eram representados cartograficamente como entidades bem definidas, e onde se distinguia claramente o urbano e o rural, traço presente desde os primórdios do pla- neamento (Queirós e Vale, 2013). Segundo Bunge, (1966) e Haggett, (1965), a Geografia deste período afirma-se então como ciência das relações espaciais, sendo a geometria a sua linguagem. Deste modo, um fenómeno é identificado através de padrões espaciais geométricos, enquanto a sua posição relativa no espaço é considerada o factor respon- sável pela sua ocorrência. O conceito da relatividade da posição espacial, suporta uma noção do espaço, entendido não como contentor que delimita a totalidade do território ou da paisagem, mas sim como um sistema de relações baseado no parâmetro da dis- tância entre objectos (Hard, 1973). A definição de estruturas espaciais, que confirmam esta abordagem, é evidente no diagrama elaborado por Hagget (1965), e apresentado na Figura 4.

12O termo “Revolução Quantitativa” foi cunhado pelo geógrafo canadiano Ian Burton em 1963 (Holt-Jen-

Figura 4: Modelo de Hagget (1965) para o estudo do sistema espacial Fonte: Holt-Jensen, (2009)

Este modelo representa um exemplo do processo de desagregação de uma re- gião funcional, operado através de seis elementos de natureza geométrica: movimen- tos, corredores, nós, hierarquias, superfícies e difusão (Haggett, 1965).

Com vista ainda ao enquadramento da noção de espaço neste período, é impor- tante referir como a sistematização dos padrões espaciais, proporcionada através de imagens icónicas, mapas e diagramas, teve e continua a ter, uma grande importância nos domínios do planeamento territorial e regional em geral e do urbanismo em parti- cular. Os planeadores, pela orientação desta abordagem geográfica, descobriam as re- gularidades espaciais, a ordem hierárquica, a área de influência, os nós e as redes, e outros conceitos garantindo a objectividade e rigor entendidos como necessários à ac- tividade de planeamento à escala do território (Queirós e Vale, 2013). Por outro lado, os objectivos urbanísticos estabelecidos pela Carta de Atenas13 em 1933, encontravam

agora, na Geografia Quantitativa, contributos fundamentais que levaram ao desenvol- vimento dos conceitos de zonamento e definição de classes de espaços, fundamentais para planear as cidades (CIAM, 1933).

No entanto, a atenção excessiva para as análises estatísticas, o mapeamento e a construção de modelos matemáticos, que tornou a natureza do espaço absoluta, rígida e sem nexos de causalidade, determinou nos anos 70, um quadro de crítica geral da

13A Carta de Atenas define como objectivos do urbanismo: a ocupação do solo, a organização da circulação

abordagem quantitativa pelo que a corrente Neopositivista entrou em crise (Holt-Jen- sen, 2009). Segundo Minshull, (1970), Sack, (1972) e Holt-Jensen, (2009) , o que estava a ser posto em causa era a informação perfeita, baseada em espaços isotrópicos que os modelos disponibilizavam para a fase de tomada de decisão, desvalorizando factores como a história, a dimensão social e individual. Com efeito, os contributos para a rede- finição das questões, metodologias e práticas da disciplina geográfica, advieram de ou- tras linhas de pensamento, interligadas às alas estruturalistas, humanistas e marxistas- radicais, em oposição à abordagem modernista. Este processo de crítica está directa- mente ligado ao conceito da “human agency”14 teorizado por Giddens (1994), que co-

loca a ênfase nas pessoas, associando-as ao significado, à imaginação, à auto-reflexão. Esta abordagem junta-se à corrente intelectual humanista na Geografia, propondo a adopção de metodologias qualitativas para captar a complexidade dos sistemas sociais. Deste modo, e segundo Fosso, (1997) e Holt-Jensen, (2009), o espaço relativo do Neo- positivismo é aqui ultrapassado pelo espaço relacional, ou seja, um espaço definido como fenómeno social e condição necessária que, por sua vez, é uma consequência da acção humana e não uma causa.

Por outro lado, o marxismo aceita o conceito estruturalista de agente que res- ponde à uma estrutura e identifica uma variedade de processos sociais entre os quais, por exemplo, a formação da classe trabalhadora industrial, as lutas pelos direitos civis, a desvalorização do trabalho feminino, etc., que não eram captados através das lentes dos modelos espaciais (Queirós e Vale, 2013). Nesta linha, o espaço é considerado como socialmente produzido e consumido e politicamente utilizado, sendo, que no âmbito do planeamento, a questão começou a centrar-se em como as práticas sociais e individuais criam e utilizam espaços diversificados. Neste contexto, é importante referir como a dé- cada de 1970 ficou igualmente marcada pelo processo da globalização, que induziu as condições necessárias para a ascendência de novos territórios estratégicos: as regiões e

14 O termo “Human Agency” surge no âmbito da teoria do Estruturalismo elaborada por Giddens (1984),

que muda o paradigma da abordagem epistemológica das correntes passadas para uma orientação mais ontológica em relação à sociedade humana (Holt-Jensen, 2009).

as cidades. Mudando as estruturas hierárquicas, os impactos da globalização e da mo- dernização da sociedade levam a que esses novos territórios devam ser considerados como áreas controladas dentro da totalidade do espaço (Queirós e Vale, 2013).

Em 1990, o pós-estruturalismo, a última das correntes do século XX, ganhou pre- ponderância sobre as abordagens anteriores, relevando a contingência geográfica e o espaço relacional, associando-se à tradição interpretativa das ciências sociais (Davoudi e Strange, 2008). O pós-estruturalismo, anuncia assim o fim dos tempos modernos, e define um novo ciclo que procura ir mais além na compreensão dos lugares e espaços do quotidiano, inquirindo como se produzem e reproduzem. A abordagem pós-estrutu- ralista desconstrói as dinâmicas urbanas e territoriais de forma a evidenciar a plurali- dade de sujeitos que habitam as diferentes realidades urbanas, sublinhando as necessi- dades sociais (Governa e Memoli, 2011). Deste modo, a leitura que faz dos fenómenos tende, por exemplo, à crítica do pensamento dicotómico (homem/mulher, ocidente/ori- ente, heterossexual/homossexual, etc.) mostrando assim que o mundo é culturalmente construído e não se enquadra facilmente num sistema binário de categorização (Queirós e Vale, 2013). Na perspectiva de Davoudi e Strange, (2008), a forma como o pensamento espacial e o planeamento responderem a estes debates está bem retractado na “Escola de Los Angeles”, através do trabalho de Dear e Soja, durante as décadas de 1980 e 1990. Rejeitando noções universais e binárias de espaço e lugar, Dear (1988) e Soja (1989) defendem a identidade, a linguagem e a diferença na base da conceptualização dos lu- gares e do papel do espaço que produz e é produto de relações e não de estruturas pré- definidas (Queirós e Vale, 2013). Neste contexto de procura de identidade dos lugares, das especificidades culturais e das suas redes de relacionamento, o planeamento alarga- se a outros temas, dando peso à história, ao valor patrimonial e ambiental dos lugares (Haughton et al., 2009). Simultaneamente, liberta-se da procura da ordem hierárquica de organização dos lugares de Christaller, em favor do policentrismo; abandona as cer- tezas quanto ao futuro, focando as incertezas e definindo cenários; perde a rigidez das funções reguladoras do quadro normativo valorizando a dimensão estratégica e, como tal, torna-se flexível e interpretativo (Queirós e Vale, 2013).