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O Espaço e a Técnica

Abordar as características da sociedade e do espaço em um determinado momento evolutivo é levar em consideração as relações com um dado sistema técnico. Desse modo, compreender os sucessivos sistemas técnicos é essencial para o entendimento das diversas formas históricas de estruturação, funcionamento e articulação do espaço.

Cada período técnico é portador de um sentido, partilhado pela sociedade e pelo espaço, representativo da forma como a história realiza as promessas da técnica. Dessa forma, podemos apontar como marcos definitivos alcançados pela técnica as revoluções neolítica, industrial e cibernética. Há, sem dúvida, várias outras maneiras de identificar o papel que as técnicas alcançam na produção da história mundial, mas no momento não se faz necessário tal abordagem. Entretanto o período atual, cheio de promessas, os paradigmas tecnoeconômicos apontam para as recentes inovações relativas a informação e a comunicação, onde encontramos os principais elementos do mundo novo e cuja formação estamos assistindo. Embora seja difícil prognosticar com firmeza seus futuros contornos.

Salientamos a existência sistêmica da técnica ao constatarmos que uma técnica nunca aparece só e jamais funciona isoladamente. Portanto, a noção de sistema é inseparável da ideia de técnica. Assim, Santos (1996, p.140) afirma:

Conjuntos de técnicas aparecem em um dado momento, mantêm-se como hegemônicos durante um certo período, constituindo a base material da vida da sociedade, até que outro sistema de técnicas tome o lugar. É essa a lógica de sua existência e de sua evolução.

Consequentemente, a complementaridade entre técnicas é estrutural, já que as mesmas estabelecem entre si relações de dependência, sendo que seu desenvolvimento histórico multiplica o número de inter-relações.

Focalizando o fato de que as épocas se distinguem pela forma de fazer, isto é, pelas técnicas, o que caracteriza a versão atual de tal sistema é o casamento entre a técnica e a ciência, nesse ponto, encontra-se a base material e ideológica em que se fundam o discurso da globalização. Outra característica marcante do sistema técnico atual, comparado com os anteriores, é a rapidez de sua difusão, já que vivemos a era da inovação galopante.

Considerando a brutal rapidez do processo de difusão técnica, tais sistemas podem ser compreendidos como invasores, no entanto, sua capacidade de invasão tem limites. Assim, Santos (1996, p. 143) considera a implantação de tais sistemas a existência de “sistemas integrados não-flexíveis e sistemas autônomos flexíveis”. Os primeiros são representativos dos sistemas econômicos hegemônicos e buscam instalar-se em toda parte, deslocando os sistemas autônomos, ou buscando incluí-los em sua lógica, segundo diferentes graus de dependência, no entanto, sua generalização não significa homogeneização.

Outra característica das técnicas atuais vem do fato de sua indiferença em relação ao meio em que se instalam. Se por um lado a técnica não necessita compor a priori com a herança cultural para se tornar localmente histórica, por outro lado, ela também não está obrigada a juntar-se às virtualidades do espaço. Santos (1996, p. 144) evidencia que a “tecnologia aparece como um elemento exógeno para uma grande parte da humanidade”.

Aqui duas constatações podem ser feitas: a primeira consiste na propalada flexibilidade atribuída ao presente modelo neoliberal, o qual defronta-nos com um verdadeiro enrijecimento organizacional, em função da indispensabilidade das normas de ação, tanto mais rígidas quanto mais se pretende alcançar a produtividade e a competitividade; a segunda, corresponde ao fato da tecnologia se por a serviço de uma produção em escala global, onde

nem os limites dos Estados, nem dos recursos, nem dos direitos humanos são levados em conta, exceto a busca desenfreada do lucro.

As inúmeras características atribuídas aos sistemas técnicos atuais são evidenciadas em duas dimensões por Santos (1996, p. 145), que define o fenômeno técnico contemporâneo como “racionalidade e artificialidade”. Sendo que a artificialidade do objeto técnico é a garantia de sua eficácia para as tarefas para o qual foi concebido, dessa forma, ele se torna concreto. É a partir dessa artificialidade que a característica da racionalidade se constrói.

Certamente, podemos considerar a informação como matéria prima da atual revolução tecnológica. Dessa informação pode ser dito também que é um novo modo dominante da organização do trabalho. Tal cenário não seria possível sem a convergência tecnológica que caracteriza a “era das telecomunicações”, baseada na combinação entre a tecnologia digital, a política neoliberal e os mercados globais.

Considerar o controle, ou seja, o modo dominante da organização do trabalho possibilita a visualização da noção de tempo real. É a partir do computador que a noção de tempo real torna-se historicamente operante. Santos (1996, p. 148) aponta que é a “construção técnica desse tempo real que vivemos uma instantaneidade percebida, uma simultaneidade de instantes, uma convergência de momentos”.

Portanto, a história das técnicas é a história da convergência dos momentos. Já a influência de tais técnicas sobre o comportamento humano, afeta as maneiras de pensar do sujeito, devido a lógica do instrumento. Logo, a racionalidade da técnica impõe ao homem um comportamento semelhante às máquinas, bem como, um tempo onipresente.

A manifestação da técnica em escala global implica em uma invasão que provoca misturas e composições, culminando com a redução do número de sistemas técnicos. E a cada novo momento, consagra fusões, supressões e interações, diminuindo o número de sistemas técnicos à medida que se ampliam as trocas entre as sociedades. Consequentemente, o movimento local das técnicas deixa de ser apenas horizontal e recebe uma influência, um componente vertical, incluindo o lugar numa história técnica e social mais abrangente.

Evidenciamos a unicidade técnica ao constatarmos o fato de que os sistemas técnicos hegemônicos são cada vez mais integrados e que constituem conjuntos de instrumentos que operam de forma conexa. Tal unicidade está associada à intencionalidade dos objetos técnicos. Santos (1996, p. 155) evidencia como “cada peça importante é de tal forma dependente das outras por trocas recíprocas de energia que ela somente pode ser o que ela é”.

Santos (1996, p.155) mostra o fato de que a tecnologia em sua forma atual, “é mais que a soma total de instrumentos separados e produtos desconectados”; é a “universalidade das técnicas e dos produtos” que ensejam a emergência do “sistema industrial mundial”.

Há que se considerar ainda outro aspecto inerente aos dias atuais. Trata-se do fato de conhecermos instantaneamente eventos longínquos e, assim, a possibilidade de perceber a sua simultaneidade, ou seja, em um determinado instante, um ponto que não é de nossa referência é atingido e podemos conhecer o acontecer que ali se instalou, então estamos presenciando uma convergência dos momentos, sendo que a sua unicidade temporal se estabeleceu das técnicas atuais de comunicação.

Constatamos, portanto, que tais momentos não são iguais, apesar de não se encontrarem no mesmo quadrante do relógio, são momentos unitários, melhor dizendo, unidos por uma lógica comum. Estamos diante de uma característica propiciada pela tecnologia que diferencia a nossa geração das anteriores. Já que a informação ganhou a possibilidade técnica de pedir instantaneamente, comunicando a todos os lugares, sem nenhuma defasagem o acontecer de um determinado lugar.

Tal processo de convergência de momentos se dá paralelamente ao desenvolvimento das técnicas, Milton Santos (1996, p. 169) evidencia que “sincroniza-se o global e o fragmento, a parte e o todo, o produto e o processo, o geral e o particular, no intercâmbio que cria um campo único, onde se expande o conhecimento e a ação”.

Certamente, devemos considerar a autoria do sujeito que interpretando os acontecimentos a seu modo, transmite tais informações, no entanto, isso não invalida a possibilidade de comunicar a distância e sem descompasso com o que está acontecendo em um lugar de referência. Os sistemas técnicos atuais generalizam a comunicação e a distância passa a não ser mais um fator de isolamento.

Dessa maneira a noção de tempo real ganha realidade, trazendo à dinâmica social, política e econômica, novos pontos de apoio. Logo, o uso aprovado e preciso do tempo e do espaço multiplica a eficácia dos processos e o poder de quem for capaz de utilizar essas novas possibilidades. Aqui se evidencia um sistema técnico universalmente integrado que viabiliza uma ação produtiva, financeira e informacional mundializada conhecida como globalização.

Porém, devemos frisar que o encurtamento ou irrelevância da distância promovida pela tecnologia não deve nos levar a interpretação errônea de que o tempo suprime o espaço. Referindo-se a essa interpretação delirante, Santos (1996, p. 161) enfatiza que a verdade é que “as informações não atingem todos os lugares [...] há inúmeros filtros intermediários [...] que interferem na natureza da informação [...] podendo descaracterizar o produto”.

Em realidade, não se trata da superação do espaço e sim de um novo comando da distância, pois sabemos que o espaço não é definido exclusivamente por essa dimensão. O espaço se torna mais complexo, mas essa nova acumulação de presenças, esse aumento de ações não se precipita de forma cega sobre qualquer espaço, pois as informações que constituem a base das ações são seletivas, buscando incidir sobre os lugares onde se possam tornar mais eficazes. Assim, Santos (1996, p.162) apresenta a seguinte reflexão:

As condições preexistentes em cada lugar, o seu estoque ou recursos, materiais ou não, e de organização – essas rugosidades – constituem as coordenadas que orientam as novas ações. Se considerarmos o espaço tal como existe em dado momento, como uma realidade objetiva, e o tempo como as ações que nele se vão inserir, então é o tempo que depende do espaço e não o contrário.

Evidentemente, a simultaneidade em apreço, ou seja, a unicidade das técnicas e a convergência dos momentos é um fato inovador para o conhecimento do real. Tal fato altera os paradigmas, já que os sujeitos hegemônicos da dinâmica social, política e econômica, podem escolher os melhores lugares para a sua atuação, enquanto que os demais sujeitos têm sua localização condenada a ser residual.

Continuando com a visualização das características espaciais da atualidade, enfocamos o objeto de hoje, que se mostra universal, pois resulta do funcionamento em nível global. É científico graças a natureza de sua concepção, é técnico por sua estrutura interna, é científico-técnico porque sua produção e funcionamento não separam técnica e ciência. Tal objeto é também informacional porque, de um lado, é chamado a produzir um trabalho preciso, ou seja, uma informação e, por outro lado, funciona a partir da informação.

O espaço está sempre mudando segundo o ritmo e a incessante sucessão dos objetos, daí a constatação de que vivemos o tempo dos objetos. Santos (1996, p. 170) cita Jean Baudrillard, para enfatizar que “os objetos são atores”, da mesma forma, cita Jean Paul Sartre, para assinalar que se trata de um “objeto que se tornou sujeito”. Em outras palavras, esse objeto-ator nos aponta comportamentos, porque ele próprio é um sistema, trata-se de um mecanismo que apenas funciona se obedecermos às regras próprias predeterminadas.

Portanto, os objetos não se caracterizam somente pelo comando da informação, mas, além disso, passam a ser, sobretudo informação, tornando-se assim indispensáveis quanto às formas de trabalho hegemônico. Logo, a existência de um objeto técnico se dá em função de uma série de operações que convergem para a sua produção.

Esses objetos atuais também se caracterizam pela intencionalidade, já que foram criados para exercer uma função predeterminada, um objetivo claramente estabelecido de antemão, mediante uma intencionalidade científica e tecnicamente produzida, que se constitui no fundamento de sua eficácia. Hoje, no lugar onde estamos os objetos não mais nos obedecem, mas sugerem o papel que devemos desempenhar.

Os objetos técnicos, universalizados, sistêmicos, informados e intencionais, são hoje mais numerosos e diversos que em qualquer outro momento da história. Tais objetos se inserem em um sistema mais amplo, o sistema de objetos. Esses sistemas atuais são formados de objetos dotados de uma especialização extrema, pois são criados para responder às necessidades de realização das ações hegemônicas dentro de uma sociedade. Assim, Santos (1996, p.176) afirma que:

[...] em nenhum momento, nem mesmo agora, um sistema técnico se impôs completamente à totalidade dos lugares e dos homens. Um certo número de agentes hegemônicos utiliza os subsistemas técnicos mais novos, por isso mesmo hegemônicos, enquanto no mesmo lugar permanecem subsistemas técnicos hegemonizados, trabalhados por agentes não-hegemônicos. Mas todos eles trabalham em conjunto. Ainda que as respectivas lógicas sejam diversas, há uma lógica comum a todos eles, presidida, exatamente, pelo subsistema hegemônico.

Aqui constatamos a alta capacidade de invasão do subsistema de técnicas da atualidade, que tende a competir vantajosamente com os sistemas técnicos precedentes instalados, para impor ao uso do espaço ainda mais racionalidade instrumental.

Da mesma forma que os objetos, as ações também se baseiam na ciência e na técnica. A ação codificada é presidida por uma razão formalizada, não isolada e que se dá em sistema, tendo, portanto, um papel fundamental na organização da vida coletiva e na condução da vida individual.

No tempo e no espaço, é a informação que permite a ação coordenada, indicando o momento e o lugar de cada gesto. Tal ação, tanto se vale do seu próprio discurso, quanto do discurso dos objetos. Santos (1996, p. 178) cita Jurgen Habermas e Jacques Attali para, respectivamente, enfocar que a “linguagem coordena a ação”, e que é a “linguagem que estrutura a ordem”.

Trata-se de uma linguagem do cálculo, fria, que deseja se impor com a exclusão da emotividade. O autor em tela cita ainda na mesma página, Max Horkheimer, para evidenciar que é assim que a ação exprime a “razão formalizada”, como também, Alain Gras, para

evidenciar que a ação seria, em grande parte, obediente a essa “lógica abstrata”, mediante as quais “o saber-fazer teórico incluído nas máquinas implica, reciprocamente, uma maneira racional de pensar”. Desse modo, Santos (1996, p.178) afirma:

Uma atividade parcelizada, que é tanto meio quanto fim, é o seu corolário. Daí essa incapacidade dos homens de nosso tempo de se avaliarem corretamente e, mesmo, de saber, plenamente, o que realmente são. A atual divisão do trabalho, entre indivíduos, empresas, instituições, tem como base essa aceitação da alienação.

A atualidade é marcada pela primazia da ação racional. Trata-se de uma ação nutrida na razão do instrumento. Santos (op. cit.) cita Agnes Heller para apontar que, na atual sociedade, “os tipos de ação racional preocupada com os fins ‘devoram’ completamente os tipos de ação racional preocupada com o ‘valor’”. Trata-se de uma ação precisa, que busca primordialmente resultados.

Portanto, na atualidade, o cenário do que se pode considerar “tempo real”, em que a informação pode ser transmitida instantaneamente, permitindo que, não só no lugar escolhido, mas também na hora adequada, as ações indicadas se deem, atribuindo maior eficácia, produtividade e rentabilidade aos propósitos daqueles que controlam tais ações. É essa possibilidade de ação imediata que gera a possibilidade da ação global.

Nesse ponto, devemos enfocar o seguinte fato: a diferença entre a escala da ação e a escala do resultado. Pois, podemos ter uma variável global com uma ação local, como também, uma variável distante com uma ação local. Uma coisa é um evento acontecendo em um lugar e outra é o motor, a causa última desse evento.

Dessa forma, cada lugar é o locus de combinações cujo fator de mudança é esse dado global. Sendo assim, cada lugar é a cada instante, objeto de um processo de desvalorização e revalorização, onde as exigências inerentes ao global têm um papel fundamental. No entanto, Santos (1996, p.180) coloca:

[...] os dados propriamente locais não são dissolvidos. A materialidade das coisas e a objetividade da sociedade (a corporeidade dos homens) permitem, metaforicamente, dizer que, em cada lugar, o chamado tempo do mundo convive com outros tempos, desejando dissolvê-los. Isso, porém, apenas é possível parcialmente. A materialidade herdada reage às ações novas.

Desse modo, é a materialidade existente em cada lugar que garante uma razão de ser, um princípio de equilíbrio, mesmo que relativo, já que nenhum lugar vive em isolamento.

Ainda quanto a ação atual, há que se considerar outro elemento fundamental, a retórica, pois os novos objetos, que transportam o sistema das técnicas atuais, exigem um discurso. Constatamos na presente sociedade os especialistas dos discursos especiais, ao mesmo tempo em que se deteriora a capacidade de produzir o discurso do todo, ou seja, a capacidade de entender a história, bem como, de propor uma nova história.

Como o discurso invadiu o cotidiano, ele se torna presente em todos os lugares onde se instala as ações da atualidade. No entanto, o discurso das ações e o discurso dos objetos às vezes se completam como base da desinformação e não propriamente da informação. Principalmente, quando o discurso dos objetos é apenas utilizado para legitimar uma ação, mas sem revelar as propriedades escondidas ou o discurso como base de uma ação comandada de fora do lugar que se vive.

Portanto, como todos os dias novidades são postas no mundo, cada dia somos ignorantes do que são e do que valem as coisas novas. Assim, Santos (1996, p.181) afirma:

Essa criação cotidiana do homem ignorante também leva regiões inteiras a ignorar o que elas são, sempre que não conhecem os segredos do funcionamento dos respectivos objetos e ações. Quanto menos dominam esses segredos, têm menos condições de comandar a sua própria evolução e mais dirigidas de fora tendem a ser.

Então, podemos constatar que o espaço é, na atualidade, a arena de encontro do sistema de objetos que impele ao sistema de ações e o condicionam. Sendo assim, os objetos técnicos são susceptíveis de influenciar comportamentos e, desse modo, encadeiam certa tipologia de relações. Mas, contrariamente, a força própria do lugar, ou seja, a interação humana pode forjar novas relações ao propiciar o exercício da criatividade.