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3 O espiritismo na Europa

3.3 O espiritismo e o cenário cultural europeu: diálogos e

Ao estudarmos a obra de Kardec é possível percebermos que a sua participação na elaboração da doutrina espírita supera a de um simples sistematizador, sendo bem maior do que ele procura demonstrar. A apresentação do espiritismo como sendo uma ciência de observação e uma filosofia espiritualista, com consequências morais, por exemplo, é um ato do próprio Kardec e não dos espíritos.

A participação de Allan Kardec no processo de constituição do espiritismo, na condição de uma doutrina, é determinante em sua estruturação, principalmente no que se refere à articulação dos pressupostos apresentados em ‘O Livro dos Espíritos’, que tomam a forma de um todo orgânico.

A maneira impessoal, formal e objetiva com que as perguntas são formuladas e suas respostas comentadas, bem como a forma didática como o conteúdo é disposto ao longo da obra, demonstram claramente a intenção de Kardec de apresentar o espiritismo como uma doutrina filosófica que se apoia no método experimental e que se mantém aberta aos avanços da ciência, principalmente no que diz respeito à objetividade com que os assuntos são tratados e a noção de progresso que permeia todo o livro. Aliás, ele denomina um dos capítulos de ‘O Livro dos Espíritos’ como “Lei do Progresso”, asseverando que este “é uma condição da natureza humana”, não estando ao alcance de ninguém a ele se opor (KARDEC, 2013a [1857], p. 353).

Os espíritos, por exemplo, são enquadrados por Kardec em um esquema progressista que obedece a um critério evolutivo em que a sua individualidade é preservada, já discutido acima, quando se mencionou a visão espírita sobre a reencarnação:

São iguais os espíritos, ou há entre eles qualquer hierarquia? – São de diferentes ordens, conforme o grau de perfeição que tenham alcançado [...] A classificação dos espíritos se baseia no grau de adiantamento deles, nas qualidades que já adquiriram e nas

imperfeições de que ainda terão de despojar-se. Esta classificação, aliás, nada tem de absoluta. Apenas no seu conjunto cada categoria apresenta caráter definido. [...] Os espíritos, em geralmente, admitem três categorias principais, ou três grandes divisões. Na última, a que fica na parte inferior da escala, estão os espíritos imperfeitos, caracterizados pela predominância da matéria sobre o espírito e pela propensão para o mal. Os da segunda se caracterizam pela predominância do espírito sobre a matéria e pelo desejo do bem: são os bons espíritos. A primeira, finalmente, compreende os espíritos puros, que atingiram o grau supremo da perfeição (KARDEC, 2013a [1857], p. 90-92).

Ao mesmo tempo, Kardec reitera em diversas ocasiões que a doutrina espírita segue o método experimental, estando, portanto, inserida dentro do contexto da ciência moderna:

Como meio de elaboração, o espiritismo procede exatamente da mesma forma que as ciências positivas, aplicando o método experimental. Fatos novos se apresentam, que não podem ser explicados pelas leis conhecidas; o espiritismo os observa, compara, analisa e, remontando dos efeitos às causas, chega à lei que os rege; depois, deduz-lhes as consequências e busca as aplicações úteis. Não estabeleceu nenhuma teoria preconcebida; assim, não se apresentou como hipótese a existência e a intervenção dos espíritos, nem o perispírito, nem a reencarnação, nem qualquer dos princípios da doutrina; conclui pela existência dos espíritos, quando essa existência ressaltou evidente pela observação dos fatos, procedendo de igual maneira quanto aos outros princípios. Não foram os fatos que vieram a posteriori confirmar a teoria: a teoria é que veio subsequentemente explicar e resumir os fatos. É, pois, rigorosamente exato dizer-se que o espiritismo é uma ciência de observação e não produto da imaginação. As ciências só fizeram progressos importantes depois que seus estudos se basearam sobre o método experimental; até então acreditou-se que esse método só era aplicável à matéria, ao passo que o é também às coisas metafísicas. (KARDEC, 2013e [1868], p. 22-23, sem grifos no original).

Absolutamente contrário à ideia de se tratar a existência do mundo espiritual como algo posto fora da natureza, envolto em mistérios de caráter místico, como faziam várias das doutrinas espiritualistas, o organizador do espiritismo procura nos postulados científicos de sua época o apoio para encarar o tema:

O pensamento é um dos atributos do espírito; a possibilidade, que eles têm, de atuar sobre a matéria, de nos impressionar os sentidos, e, por conseguinte, de nos transmitir seus pensamentos resulta, se assim nos podemos exprimir, da constituição fisiológica que lhe é própria. Logo, nada há de sobrenatural neste fato, nem de maravilhoso. [...] Entretanto, objetarão, admitis que um espírito pode

suspender uma mesa e mantê-la no espaço sem ponto de apoio. Não constitui isto uma derrogação da lei de gravidade? – Constitui, mas da lei conhecida; porém, já a natureza disse a sua última palavra? Antes que houvesse experimentado a força ascensional de certos gases, quem diria que uma máquina pesada carregando muitos homens, fosse capaz de triunfar da força de atração? Aos olhos do vulgo, tal coisa não pareceria maravilhosa, diabólica? (KARDEC, 2013b [1861], p. 23-24).

Um dos primeiros resultados que colhi das minhas observações foi que os espíritos, nada mais sendo do que as almas dos homens, não possuíam nem a plena sabedoria, nem a ciência integral; que o saber de que dispunham se circunscrevia ao grau, que haviam alcançado, de adiantamento, e que a opinião deles só tinha o valor de uma opinião pessoal. (KARDEC, 2005 [1890], p. 328).

Ao mesmo tempo, ele alega que os fatos espíritas não estão reduzidos à esfera dos meros fenômenos mecânicos, na medida em que são produzidos por seres inteligentes, os espíritos, requerendo novos parâmetros para a sua interpretação, que deveriam ser buscados em um novo ramo do conhecimento. Numa época em que a própria ciência havia se tornado profundamente dogmática, Allan Kardec propõe que se abra mão de sistemas preconcebidos:

Repetimos mais uma vez que, se os fatos a que aludimos se houvessem reduzido ao movimento mecânico dos corpos, a indagação da causa física desse fenômeno caberia no domínio da ciência; porém, desde que se trata de uma manifestação que se produz com exclusão das leis da Humanidade, ela escapa á competência da ciência material, visto não poder explicar-se por algarismos, nem por uma forca mecânica. Quando surge um fato novo, que não guarda relação com alguma ciência conhecida, o sábio, para estuda-lo, tem que abstrair da sua ciência e dizer a si mesmo que o que se lhe oferece constitui um estudo novo, impossível de ser feito com ideias preconcebidas. (KARDEC, 2013a [1857], p. 30).

Assim, o espiritismo advoga uma visão de ciência que não apenas põe a existência da alma sob análise experimental, mas que se posiciona no campo filosófico, com base nas experiências que faz em torno do espiritual. Por outro lado, a ciência espírita complementa a ciência dita materialista:

A ciência espírita compreende duas partes: experimental uma, relativa às manifestações em geral; filosófica outra, relativa às manifestações inteligentes. Aquele que apenas haja observado a primeira se acha na posição de quem não conhece a Física senão por experiências recreativas, sem haver penetrado no âmago da ciência. (KARDEC, 2013a [1857], p.46).

O espiritismo e a ciência se complementam reciprocamente; a ciência, sem o espiritismo, se acha na impossibilidade de explicar certos fenômenos só pelas leis da matéria; ao espiritismo, sem a ciência, faltaria apoio e comprovação. O estudo das leis da matéria tinha que preceder o da espiritualidade, porque a matéria é que primeiro fere os sentidos. Se o espiritismo tivesse vindo antes das descobertas científicas, teria abortado, como tudo quanto surge antes do tempo (KARDEC, 2013e [1868], p. 23).

É com base nesse pensamento que Allan Kardec propõe uma reconciliação entre a fé e a razão, entre a ciência e a religião. Essa reconciliação estaria contida na própria doutrina espírita:

Em certas pessoas, a fé parece de algum modo inata; uma centelha basta para desenvolvê-la. Essa facilidade de assimilar as verdades espirituais é sinal evidente de anterior progresso. Em outras pessoas, ao contrário, elas dificilmente penetram, sinal não menos evidente de naturezas retardatárias. [...] A fé necessita de uma base, base que é a inteligência perfeita daquilo em que se deve crer. E, para crer, não basta ver; é preciso, sobretudo, compreender. A fé cega já não é deste século, tanto assim que precisamente o dogma da fé cega é que produz hoje o maior número dos incrédulos, porque ela pretende impor-se, exigindo a abdicação de uma das mais preciosas prerrogativas do homem: o raciocínio e o livre-arbítrio. É principalmente contra essa fé que se levanta o incrédulo, e dela é que se pode, com verdade, dizer que não se prescreve. Não admitindo provas, ela deixa no espírito alguma coisa de vago, que dá nascimento à dúvida. A fé raciocinada, por se apoiar nos fatos e na lógica, nenhuma obscuridade deixa. A criatura então crê, porque tem certeza, e ninguém tem certeza senão porque compreendeu. Eis por que não se dobra. Fé inabalável só o é a que pode encarar de frente a razão, em todas as épocas da Humanidade.

A esse resultado conduz o Espiritismo, pelo que triunfa da incredulidade, sempre que não encontra oposição sistemática e interessada (KARDEC, 2013c [1864], p. 255-256).

Assim, Kardec valoriza a razão, a experimentação, mas não abre mão da intuição e da revelação espiritual, controlada através do método experimental, que ele aplica em seus estudos sobre a mediunidade. Ele questiona os espíritos e alega somente aceitar uma verdade revelada sobre o mundo espiritual quando esta é anunciada inúmeras vezes, em vários locais diferentes, através de vários médiuns. É o que ele chama de ‘controle universal dos ensinamentos dos espíritos’ (KARDEC, 2013c [1864]).

Portanto, o organizador do espiritismo colhe na ciência positiva de sua época uma série de elementos para as suas análises em torno do intangível, mas, ao

mesmo tempo, propõe a superação do reducionismo positivista, na medida em que postula que a natureza não se limita à matéria e abarca também o espírito.

De acordo com Kardec (2013a [1857]; 2013c [1864]), o homem, como espírito encarnado, não perde jamais a sua natureza espiritual e isso lhe possibilita superar a estreiteza empirista. Ou seja, ele propõe que o conhecimento não é acessível apenas por meio dos cinco sentidos, mas também através da intuição e da revelação mediúnica, próprias da natureza espiritual humana.

Segundo a proposta espírita, o homem traz consigo, no inconsciente, toda a bagagem do que viveu em suas encarnações passadas, o que explica muitas de suas tendências positivas e negativas e se constitui em farto material psíquico influenciador de condutas. Mais uma vez, no tocante a este último ponto, surge a importância da educação para a doutrina espírita: “a desordem e a imprevidência são duas chagas que só uma educação bem entendida pode curar. Esse o ponto de partida, o elemento real do bem estar, a garantia da segurança de todos” (KARDEC, 2013a [1857], p. 320).

Outra questão interessante a considerar no processo de inserção do espiritismo no universo cultural europeu é a sua posição em relação ao aparecimento do homem na Terra. Em ‘O Livro dos Espíritos’, obra editada em 1857, portanto dois anos antes de Charles Darwin publicar “A origem das espécies”, Kardec busca conciliar o criacionismo com o evolucionismo.

No primeiro capítulo da obra fundamental do espiritismo o homem aparece como sendo obra da criação divina. No entanto, o seu surgimento é apresentado como o resultado de um longo processo evolutivo:

37 – O Universo foi criado ou existe de toda a eternidade, como Deus? – É fora de dúvida que ele não pode ter-se feito a si mesmo. Se existisse, como Deus, de toda a eternidade, não seria obra de Deus.

38 – Como criou Deus o Universo? – Para me servir de uma expressão corrente, direi, pela sua Vontade. Nada caracteriza melhor essa vontade onipotente do que estas belas palavras de Gênesis (1:3) – ‘Deus disse: faça-se a luz e a luz foi feita’.

[...]

43 – Quando começou a Terra a ser povoada? – No começo tudo era caos; os elementos estavam em confusão. Pouco a pouco cada coisa tomou o seu lugar. Apareceram então os seres vivos apropriados ao estado do globo.

50 – A espécie humana começou por um único homem? – Não; aquele a quem chamais Adão não foi o primeiro, nem o único a povoar a Terra.

[...]

53 – O homem surgiu em muitos pontos do globo? – Sim e em épocas várias, o que também constitui uma das causas da diversidade das raças. Depois, dispersando-se os homens por climas diversos e aliando-se os de uma aos de outras raças, novos tipos se formaram (KARDEC, 2013a [1857], p. 67-70).

Ao contrário da Igreja Católica, que na mesma época condenou o evolucionismo, o organizador do espiritismo posicionou-se sobre o tema não questionando a autoridade da Bíblia, mas sim a sua interpretação oficial, buscando conciliar ciência e religião:

Diz também a Bíblia que o mundo foi criado em seis dias e põe a época da sua criação há quatro mil anos, mais ou menos, antes da Era Cristã [...] a ciência positiva, a inexorável ciência, prova o contrário. A história da formação do globo terráqueo está inscrita em caracteres irrecusáveis no mundo fóssil, achando-se provado que os seis dias da criação indicam tantos outros períodos, cada um de, talvez, muitas centenas de milhares de anos. [...] Dever-se-á daí concluir que a Bíblia é um erro? Não; a conclusão a tirar-se é que os homens se equivocaram ao interpretá-la. [...] em vez de executada milagrosamente por Deus em algumas horas, [a criação] se realizou, sempre pela sua vontade, mas conforme a lei das forças da Natureza, em alguns milhões de anos (KARDEC, 2013a [1857], p. 73).

Esse posicionamento de Kardec, em que ele não apenas busca se colocar diante dos problemas científicos de sua época, mas também se propõe a acompanhar o progresso da ciência, igualmente favoreceu a penetração do espiritismo na Europa da segunda metade do século XIX, na medida em que representa a proposição de uma filosofia de consequências morais não dogmática, que não se fecha em um corpo doutrinário estanque, mas que pretende permanecer aberta ao diálogo com a ciência em uma época que tem na ideia de progresso um de seus signos mais representativos.

Pode-se também dizer que o espiritismo amplia o leque progressista ao aplicar o esquema evolucionista à alma. Darwin formulou a teoria que explica como os corpos evoluem. Comte, a seu turno, formulou a tese do progresso social, em parte adotada até mesmo por Marx, quando este sustenta a evolução necessária,

que nos levaria a uma sociedade comunista. Kardec, por sua vez, propôs a noção de evolução dos espíritos.

Desta forma, a doutrina espírita se coloca mais uma vez estrategicamente em meio ao cenário cultural do século XIX, propondo a tese de evolução espiritual de modo complementar às ideias de evolução biológica e social, desenvolvidas pela Biologia e pela nascente Sociologia, respectivamente.

Justamente por isso encontrou acolhida entre os socialistas utópicos, a maior parte deles já adeptos da reencarnação, bem antes do próprio Kardec. A pluralidade das existências era tema recorrente entre os escritos de muitos dos utópicos, que reconheciam nela a possibilidade de se alcançar a equidade e a justiça social. De acordo com esses idealistas, adeptos do reencarnacionismo, na medida em que o espírito progride, através das vidas sucessivas, ele depura-se, aperfeiçoa-se, despojando-se do egoísmo, causa do mal social. Assim, uma sociedade constituída por espíritos evoluídos, reencarnados em homens aperfeiçoados, seria sinônimo de uma sociedade justa, onde haveria paz social e onde a exploração dos fortes sobre os fracos não encontraria vez.

Fourier, um dos principais representantes do socialismo utópico, era adepto não apenas da pluralidade das existências, mas também de uma causa social que englobava o melhoramento individual, como forma de se atingir uma sociedade ideal, tese depois também adotada pelo espiritismo. Em sua ‘Teoria dos Quatro Movimentos’, ele afirma que a alma assume um corpo cada vez mais etéreo à medida que for atravessando as existências que lhe foram destinadas.

Jean Reynaud83 foi outro socialista que antecipou as ideias espíritas em seu país. Em 1854 publicou o livro ‘Terra e Céu’, em que defende a imortalidade da alma e a reencarnação, compreendida como a chave para a melhoria social. Da mesma forma que Kardec, mas antecipando este em dez anos, ele advogou o retorno aos valores ancestrais da França druídica na obra ‘Considerações sobre o espírito da Gália’, publicada em 184784

.

83

Jean Reynaud (1808-1863): Subsecretário de Estado para a Instrução Pública na França e membro da Assembleia Nacional Constituinte de 1848.

84 Não devemos esquecer que ‘Allan Kardec’ é um nome druida, adotado como pseudônimo pelo organizador do espiritismo.

De acordo com Aubrée e Laplantine (2009), muitos dos revolucionários de 1848, além de socialistas utópicos eram reencarnacionistas. Esses idealistas, frustrados com os rumos que a França tomou após o golpe de Luís Napoleão, encontraram no espiritismo a promessa de justiça social, a ser conquistada através do melhoramento do homem por meio da reencarnação. É o caso de Jean-Baptiste André Godin (1817- 1888), adepto de Fourier e deputado da esquerda socialista francesa, que se tornou importante propagandista do cooperativismo e do espiritismo.

Esses idealistas, frustrados com a Revolução de 1848, passaram a buscar outros meios de reformar a sociedade. A ‘educação’ seria um desses meios, para muitos o mais importante. É justamente aí, além da ideia de reencarnação, que podemos encontrar o vínculo entre espiritismo e socialismo utópico. Novamente voltamos àquela que é a questão central do espiritismo: a educação.

Longe se ser uma doutrina alheia às questões de sua época, o espiritismo se posiciona diante dos problemas sociais do século XIX:

Doutrina progressista e igualitária, o espiritismo vai trazer uma contribuição de peso para essa ideologia comum [a melhoria da qualidade de vida dos trabalhadores]. Afastando-se, progressivamente, de seu comedimento teórico-doutrinal, vai participar da grande luta pela libertação do homem e une-se ao partido dos deserdados, pois acatar o que dizem as mesas significa engajamento (AUBRÉE; LAPLANTINE, 2009, p. 96).

Ao mesmo tempo em que defende a causa dos injustiçados, o espiritismo prega a paz social, na medida em que é contrário à violência como forma de mudar o mundo. Isso explica o sucesso que fez na França de meados do século XIX, tanto entre membros do proletariado, quanto entre a burguesia.

Esse posicionamento é significativo, especialmente se o analisarmos frente ao quadro de efervescência social que a Europa estava atravessando, com o crescimento das camadas proletárias.

A doutrina reencarnacionista, ao propor o renascimento das almas sob o jugo da lei de ação e reação85, quando interpretada sob uma ótica conformista, que não era aquela de Kardec, poderia servir aos interesses burgueses, na medida em que

85 Também conhecida no oriente como “lei do carma”, segundo a qual o indivíduo se submete a provas e expiações numa vida como decorrência do que vivenciou na vida anterior.

estabelece a conformidade com as condições sociais adquiridas pelo nascimento, que seriam fruto de uma lei justa e soberana, devendo ser assim mantido o status

quo social.

Contudo, na doutrina reencarnacionista, ensinada pelo espiritismo, é possível ver uma característica revolucionária, isto é, a ideia de progressão dos espíritos e melhoria moral do ser humano como forma de transformar a sociedade e pôr um fim a problemas sociais, à exploração e à luta de classes.

Léon Denis86, talvez o maior continuador da obra de Allan Kardec depois de sua morte, chegou a propor que a doutrina espírita complementava a ideia socialista de evolução histórica, oferecendo a chave para a compreensão do processo na sua intimidade, através da noção de progresso através da reencarnação:

Espiritismo e Socialismo estão unidos por laços estreitos, visto que um oferece ao outro o que lhe falta a mais, isto é, o elemento de sabedoria, de justiça, de ponderação, as altas verdades e o nobre ideal sem o qual corre ele o risco de permanecer impotente ou de mergulhar na escuridão da anarquia.

[...]

Enquanto o homem ignorar o alcance de seus atos e sua repercussão sobre o seu destino, não haverá melhoria durável na sorte da Humanidade. O problema social é, sobretudo, um problema moral, dissemos. O homem será desgraçado enquanto for mau. [...]

A sociedade não é senão um agrupamento de almas. Para melhorar o todo, é preciso melhorar cada célula social, isto é, cada indivíduo. (DENIS, 1987, p. 31, 51 e 67).

Também Pierre-Gaëtan Leymarie, que sucedeu Allan Kardec na direção da Revista Espírita após a sua morte, era socialista e o próprio organizador do espiritismo reconhece a sua dívida em relação aos utópicos em um artigo publicado na Revista Espírita, um dia após a sua morte (KARDEC, 2004 [1869]).

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