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O Estatuto da Criança e do Adolescente: as medidas socioeducativas e a organização

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2.2 A “Era dos direitos”: a configuração do atendimento destinado aos adolescentes em

2.2.1 O Estatuto da Criança e do Adolescente: as medidas socioeducativas e a organização

No âmago da redemocratização do país é promulgada a Lei nº 8.069/90 denominada Estatuto da Criança e do Adolescente, que difunde no Estado a Doutrina de Proteção Integral da Criança e do adolescente. Com o novo paradigma, a criança e o adolescente passam a ser sujeitos que gozam de todos os direitos destinados a pessoa humana, inclusive educação. E mais, são prioritários na elaboração de políticas públicas destinadas à garantia dos direitos humanos e sociais.

O Estatuto regulamenta o artigo 228 da Constituição Federal, que traz em sua redação a inimputabilidade penal de pessoas com idade inferior a 18 anos de idade, as quais estariam sujeitas às normas de uma legislação especial. Essa legislação especial a partir de 1990 passa a ser o Estatuto, que enfim revoga o já obsoleto Código de Menores.

A legislação coloca como prioridade de atuação da família, da sociedade e do Estado, a garantia dos direitos de crianças e adolescentes, ao considerá-los pessoas em condição peculiar de desenvolvimento e sujeitos prioritários de todos os direitos destinados aos cidadãos. “Com o Estatuto, institui-se a participação da sociedade civil na gestão da política, por meio dos Conselhos de Direitos das Crianças e dos Adolescentes e dos Conselhos Tutelares” (CARVALHO, BALTAZAR, 2014, p. 236).

Em termos legislativos e sociais é possível elencar os principais indicativos da política de atendimento do Estatuto, fundamentada na Doutrina da Proteção Integral:

1. A extinção do termo “menor” e todas as outras subcategorias dele emergidas, como

representação jurídica e social de crianças e adolescente em situação de risco social;

2. A universalização dos direitos da criança e do adolescente, situando-os como sujeitos de direitos com absoluta prioridade e peculiar processo de desenvolvimento;

3. A concepção de criança e adolescente como sujeitos de direitos, e não objetos de proteção pelo Estado;

4. A instituição da sociedade civil na gestão da política, por meio da implantação dos Conselhos de Direitos e Conselhos Tutelares;

5. A descentralização do atendimento, através dos municípios e estados;

6. Aos Juizados da Infância e da Juventude, são reservadas as atribuições que lhes são próprias, desmembrando-se do atendimento assistencial;

7. A classificação, com base em aspectos biopsicossociais, de criança e de adolescente, este correspondendo às pessoas com idade entre 12 e 18 anos, e aquele às pessoas de

até 12 anos incompletos, entre outros (CARVALHO, BALTAZAR, 2014; SARAIVA, 2016)

Além de vários outros indicativos, também não mencionamos os princípios fundantes da política de atendimento para adolescentes aos quais se atribui a prática de ato infracional. Para eles reservamos, assim como o ECA, um segundo momento. O Estatuto traz uma parte

especial para tratar da política de atendimento e nesta se delineiam as medidas de caráter

protetivo e as medidas socioeducativas. Para Silvino Neto (2010) essa segunda parte (o Livro II) pode ser interpretada como a Lei de Inclusão Social. Sob essa ótica, evidenciaremos, as medidas socioeducativas visto que são impostas, exclusivamente, aos adolescentes em conflito com a lei.

É a partir do ordenamento jurídico do Estatuto que adolescentes que desrespeitam as leis penais são submetidos ao cumprimento de medidas socioeducativas. Isso significa, que os adolescentes – pessoas entre 12 e 18 anos de idade23 – são submetidos a um controle social especial, fundamentado em dois princípios: o primeiro é elencado constitucionalmente, ao legislar como penalmente inimputáveis as pessoas com idade inferior a 18 anos e o segundo, pelo entendimento de que crianças e adolescentes são pessoas na condição peculiar em processo de desenvolvimento (BRASIL, 1998)

O controle social especial reflete-se no cumprimento de medida socioeducativa em vez da pena. Entretanto, corroborando com Karina Sposato (2011) a medida socioeducativa nada difere da pena stricto sensu. Com efeito, a diferença pode ser percebida pelo carácter pedagógico e educacional das medidas socioeducativas, que deveria ultrapassar a intenção sancionatória (BRASIL, 1990; SPOSATO 2011). As medidas socioeducativas são listadas no artigo 112 do Estatuto:

Art. 12. Verificada a prática de ato infracional, a autoridade competente poderá aplicar ao adolescente as seguintes medidas: I - advertência; II - obrigação de reparar o dano; III - prestação de serviços à comunidade; IV - liberdade assistida; V - inserção em regime de semiliberdade; VI - internação em estabelecimento educacional; VII - qualquer uma das previstas no art. 101, I a VI. § 1º A medida aplicada ao adolescente levará em conta a sua capacidade de cumpri-la, as circunstâncias e a gravidade da infração. § 2º Em hipótese alguma e sob pretexto algum, será admitida a prestação de trabalho forçado (VOLPI, 2014, p. 21)

A medida socioeducativa de internação deve ser a última medida aplicada, pois como bem nos aponta Carvalho e Baltazar (2014), o Estatuto garante o direito à convivência familiar

23 As crianças até doze anos de idade incompletos que cometem atos infracionais não são submetidas ao cumprimento de medidas socioeducativas, porém, são direcionadas às medidas chamadas protetivas, que estão elencadas no art. 101 do Estatuto (BRASIL, 1990).

e comunitária para crianças e adolescentes, o afastamento desse convívio deve ser uma excepcionalidade. Quando aplicada a medida de internação pelo Juiz da Infância e Juventude, os adolescentes são encaminhados às unidades de internação e devem ter todos seus direitos assegurados. Os artigos 121 a 12424 tratam da medida de internação, assegurando direitos aos adolescentes que irão cumpri-la e possibilidades de defesa e garantias não viabilizadas nas legislações anteriores:

Art. 124. São direitos do adolescente privado de liberdade, entre outros, os seguintes: I - entrevistar-se pessoalmente com o representante do Ministério Público; II - peticionar diretamente a qualquer autoridade; III - avistar-se reservadamente com seu defensor; IV - ser informado de sua situação processual, sempre que solicitada; V - ser tratado com respeito e dignidade; VI - permanecer internado na mesma localidade ou naquela mais próxima ao domicílio de seus pais ou responsável; VII - receber visitas, ao menos, semanalmente; VIII - corresponder-se com seus familiares e amigos; IX - ter acesso aos objetos necessários à higiene e asseio pessoal; X - habitar alojamento em condições adequadas de higiene e salubridade; XI - receber escolarização e profissionalização; XII - realizar atividades culturais, esportivas e de lazer; XIII - ter acesso aos meios de comunicação social; XIV - receber assistência religiosa, segundo a sua crença, e desde que assim o deseje; XV - manter a posse de seus objetos pessoais e dispor de local seguro para guardá-los, recebendo comprovante daqueles porventura depositados em poder da entidade; XVI - receber, quando de sua desinternação, os documentos pessoais indispensáveis à vida em sociedade (VOLPI, 2014, p. 25-26)

O Estatuto da Criança e do Adolescente é mais um marco na trajetória das políticas públicas de atendimento às crianças e aos adolescentes, não apenas porque rompe com um

24 Art. 121. A internação constitui medida privativa da liberdade, sujeita aos princípios de brevidade, excepcionalidade e respeito à condição peculiar de pessoa em desenvolvimento.

§ 1º Será permitida a realização de atividades externas, a critério da equipe técnica da entidade, salvo expressa determinação judicial em contrário.

§ 2º A medida não comporta prazo determinado, devendo sua manutenção ser reavaliada, mediante decisão fundamentada, no máximo a cada seis meses.

§ 3º Em nenhuma hipótese o período máximo de internação excederá a três anos.

§ 4º Atingido o limite estabelecido no parágrafo anterior, o adolescente deverá ser liberado, colocado em regime de semi-liberdade ou de liberdade assistida.

§ 5º A liberação será compulsória aos vinte e um anos de idade.

§ 6º Em qualquer hipótese a desinternação será precedida de autorização judicial, ouvido o Ministério Público. § 7o A determinação judicial mencionada no § 1o poderá ser revista a qualquer tempo pela autoridade judiciária.

Art. 122. A medida de internação só poderá ser aplicada quando:

I - tratar-se de ato infracional cometido mediante grave ameaça ou violência a pessoa; II - por reiteração no cometimento de outras infrações graves;

III - por descumprimento reiterado e injustificável da medida anteriormente imposta.

§ 1o O prazo de internação na hipótese do inciso III deste artigo não poderá ser superior a 3 (três) meses, devendo ser decretada judicialmente após o devido processo legal§ 2º. Em nenhuma hipótese será aplicada a internação, havendo outra medida adequada.

Art. 123. A internação deverá ser cumprida em entidade exclusiva para adolescentes, em local distinto daquele destinado ao abrigo, obedecida rigorosa separação por critérios de idade, compleição física e gravidade da infração. Parágrafo único. Durante o período de internação, inclusive provisória, serão obrigatórias atividades pedagógicas (BRASIL, 1990).

legado perverso de políticas execráveis, mais também porque inclui o caráter pedagógico nas práticas educativas e universaliza o atendimento, deixando de lado o assistencialismo- clientelista. Porém, como nos fez pensar Silvino Neto (2010), seria ingenuidade nossa acreditar que após a aprovação do Estatuto os problemas presentes há décadas estariam resolvidos. O estatuto ainda é um jovem de 27 anos, que já fez grandes avanços em sua caminhada, mas que ainda há muito “chão pela frente”.

Neste contexto de novas possibilidades de atendimento, como se configuraram as práticas educativas nas instituições de internamento? Através de uma reportagem publicada no

site25 do Ministério Público de Pernambuco, intitulada Os entraves da ressocialização, com a

data de 14 de julho de 2008, podemos ter uma dimensão de como foi o cotidiano escolar dos meninos nas unidades de internação da FUNDAC:

Mil trezentos e noventa pessoas se espremem nas 690 vagas de internação dos oito abrigos de regime fechado e cinco casas de semiliberdade destinados a menores de 18 anos de idade, no Estado. O atual déficit na capacidade supera a marca dos 50%. Pernambuco, segundo dados de 2007 da Secretaria Especial de Direitos Humanos (SEDH) da Presidência da República, ocupa o 2º lugar em número de adolescentes cumprindo esses dois tipos de medida socioeducativa, respondendo por 7,87% de todos os infratores mirins reclusos do Brasil - fica atrás apenas do estado de São Paulo, que detém índice de 34,88%. Acrescenta-se ao aperto nas celas a escassez de investimento que os relega a condições subumanas e abre lacunas em itens básicos como acesso à saúde, higiene, alimentação, educação e perspectiva de trabalho. As contas se fecham no alto índice médio de reincidência dos que cumprem medidas socioeducativas: cerca de 30% regressam ao mundo do crime [...] Na unidade do Cabo, existe apenas um professor para um público de 320 pessoas, exemplifica Suelly. Outro ponto contestado por especialistas é o grande volume de sanções de medida de internação. Para os casos onde um infrator primário comete um furto, um roubo sem emprego de violência ou delitos de menor potencial ofensivo, a Justiça deveria repensar sobre as medidas. A reclusão deve ser a última opção, mas observamos que acaba sendo a primeira, argumenta a diretora da Fundac (MINISTÉRIO PÚBLICO DE PERNAMBUCO, 2008)

Passados dezoito anos da promulgação do Estatuto até a publicação da reportagem, percebemos ainda vários entraves no processo de atendimento institucional: a falta de investimento; a superlotação das unidades; o alto índice de reincidência; precária infraestrutura; falta de higiene; e a falta de escolarização e profissionalização. Direitos preconizados no Estatuto não respeitados e garantidos pelo poder público.

25Disponível em:

<http://www.mppe.mp.br/siteantigo/siteantigo.mppe.mp.br/index.pl/clipagem20081407_violento.html>. Acesso em 02 de nov. de 2017.

A política do Estatuto é uma política intersetorial, envolve para sua execução, o poder público, a sociedade (por meio de instituições não-governamentais) e a família. Em seus artigos 86 a 97 são dispostos diretrizes do atendimento aos direitos das crianças e dos adolescentes e os deveres das instituições executoras. Neste sentido, tem-se o que se formalizou como o Sistema de Garantia de Direitos (SGD).

O Sistema de Garantia dos Direitos da Criança e do Adolescente viabiliza-se por meio da articulação e integração das instâncias públicas governamentais e da sociedade civil na aplicação de instrumentos normativos e no funcionamento dos mecanismos de promoção, defesa e controle para a efetivação dos direitos humanos da criança e do adolescente, nos níveis Federal, Estadual, Distrital e Municipal. O Sistema articula-se com todos os sistemas nacionais de operacionalização de políticas públicas, especialmente nas áreas da saúde, educação, assistência social, trabalho, segurança pública, planejamento, orçamentária, relações exteriores e promoção da igualdade e valorização da diversidade. (BRASIL, 2006a; COSTA JÚNIOR, 2012).

A Resolução 113/2006 do CONANDA, dispõe sobre os parâmetros para a institucionalização e fortalecimento do Sistema de Garantia dos Direitos da Criança e do Adolescente, e define:

Art. 5º Os órgãos públicos e as organizações da sociedade civil, que integram esse Sistema, deverão exercer suas funções, em rede, a partir de três eixos estratégicos de ação: I - defesa dos direitos humanos; II - promoção dos direitos humanos; e III - controle da efetivação dos direitos humanos. Parágrafo único. Os órgãos públicos e as organizações da sociedade civil que integram o Sistema podem exercer funções em mais de um eixo (BRASIL, 2006a, p. 6). Sob essa lógica, não podemos deixar de sublinhar as conquistas após a promulgação da Constituição e do Estatuto. Na área de assistência social formula-se uma nova concepção, “incluindo-a no âmbito da seguridade social, tendo sido regulamentada pela Lei Orgânica da Assistência Social – LOAS em dezembro de 1993, como Política Social Pública, reafirmando- se a universalização dos acessos e da responsabilidade estatal” (CARVALHO, BALTAZAR 2014, p. 242).

A criação dos Conselhos de Direitos nos três âmbitos da federação e dos Conselhos Tutelares nos municípios é outra conquista. Para Silvino Neto (2010, p. 192-193), o Conselho Estadual de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente de Pernambuco (CEDCA), criado em 1990, “é um espaço público de deliberações entre a sociedade civil e o governo. Desde a sua fundação, teve como característica atuar como órgão de Estado e não de Governo”. O

CEDCA e Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (CONANDA) e os Conselhos municipais, de acordo com o Estatuto, artigo 88: “são órgãos deliberativos e controladores das ações em todos os níveis, assegurada a participação popular paritária por meio de organizações representativas, segundo leis federal, estaduais e municipais” (BRASIL, 1990). Ferreira, V. V. F. e Vescovi, R. G. L (2014) comentam que a participação da sociedade é um aspecto fundamental do Estatuto:

Um aspecto fundamental a ser destacado com a criação do ECA é a proposta de descentralização política e administrativa e a participação da sociedade. Isso significa que a sociedade civil, em conjunto com o Estado, exerce, a partir de então, participação paritária e deliberativa por intermédio de Conselhos dos Direitos da Criança e do Adolescente. Essa articulação entre sociedade e políticas públicas carrega, em seu bojo, os princípios de promoção, defesa e controle social (FERREIRA, V. V. F., VESCOVI, R. G. L, 2014, p. 209).

Além disso, o Estatuto da Criança e do Adolescente assegura as garantias decorrentes da CF/1988 sobre o devido processo jurídico para a internação do adolescente, que só deve ser aplicada após comprovação de autoria do ato infracional, garantida a ampla defesa. A insuficiência de recursos para subsistência, ou a prática de qualquer atividade que não se configure crime, não é passível de internação.

Ao darmos continuidade a trajetória histórica da institucionalização de adolescentes, chegamos ao século XXI. Segundo Albuquerque (2015, p. 44) “a partir da década de 2000 ocorreu um novo reordenamento administrativo e jurídico no contexto das políticas para a infância/adolescência”. Em 2003, durante o primeiro mandato do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, a área dos direitos humanos foi desmembrada do Ministério da Justiça, sendo criada a Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República (SDH/PR), na qual as questões acerca dos adolescentes e crianças ficou a cargo daSubsecretaria de Promoção dos Direitos da Criança e do Adolescente(SPDCA) (CARVALHO, BALTAZAR, 2014).

O Estatuto da Criança e do Adolescente traz, portanto, possibilidades de um atendimento institucional humanizado, que valoriza os aspectos educativos em detrimento de práticas meramente disciplinares e punitivas: o atendimento socioeducativo. O Estatuto agrega meios para a luta pelo respeito à dignidade da pessoa humana, através da participação da sociedade civil nos órgãos de fiscalização das instituições. A CF/1988 e o ECA são normatizações fundamentais no processo de efetivação de um atendimento pautado no respeito aos direitos humanos, mas claro que a questão ultrapassa os textos prescritos, é preciso investimento e mudanças de concepções e práticas.

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