• Nenhum resultado encontrado

3. O SOLO FÉRTIL E AS SEMENTES

3.1. O Ethos Acreano

Para Oliveira (2002), o Acre é uma região que fora ocupada por migrantes no Séc. XIX que buscavam na extração da borracha um futuro melhor. Em sua maioria nordestinos, a expressão espiritual destes migrantes pode ser considerada múltipla, uma vez que é constituída de elementos religiosos oriundos de diferentes espaços: a cultura indígena amazonense local; os aprendizados e práticas provenientes dos lugares de origem; a religiosidade católica misturada em aspectos populares e ‘tradicionais’.

A primeira fase de ocupação do Acre ocorreu no contexto da romanização da Igreja Católica, que rompeu com o catolicismo tradicional brasileiro entre 1880 e 1920. Esse processo de reforma religiosa ela qual passou a sociedade brasileira, promovida pela igreja católica, teve sua repercussão em todo território brasileiro, nas cidades, vilas, na zona rural e especificamente no nosso caso, nas cidades e nos seringais da Amazônia, em particular o Acre. As transformações aconteceram concomitantes à formação do Território do Acre que, a partir da segunda metade do século XIX, recebeu as primeiras levas de nordestinos para trabalharem na extração do látex (OLIVEIRA, 2002, p. 18)

Ainda para a autora, o contato entre o catolicismo institucionalizado e o popular não poderia acontecer de maneira suave, e atritos aumentam no ano de 1920 com chegada da missão católica italiana Servos de Maria, que na tentativa de transformar a fé do povo numa expressão mais sacramental começa a legitimar algumas práticas e desqualificar outras. Negando a realidade material dos seringueiros e negligenciando o modo de vida e costumes acreanos, o prioritário trabalho pastoral começou discriminando uma série da erráticas desde a chegada do primeiro bispo prelado, Dom Próspero Gustavo M. Benardi, na cidade de Manaus em 8 de Abril de 192068.

A missão do bispo era empregar os sacramentos, impor condições para a realização dos mesmos: não batizar os filhos de quem não se confessasse e recebesse a comunhão, uma forma autoritária de fazer com que os seringueiros cumprissem as obrigações religiosas da Igreja Católica, e quem não o fizesse ficava excluído do ritual. Era a religião devocional e leiga versus religião clerical e sacramental (OLIVEIRA, 2002, p.35)

68 Informações retiradas do site oficial dos Servos de Maria http://www.servitasbrasil.org/ (acessado dia 17/10/2016)

86 Para Oliveira (2002) e Silva & Morais (2012), a busca pela liberdade religiosa somada a solidão e precariedades de uma vida dentro da floresta, permitiram que, através das fronteiras da Bolívia e Peru, a prática xamânica da ayahuasca pudesse ser aprendida e adaptada, já que no Séc. XIX haviam ao menos 150 mil indígenas espalhados por 50 grupos diferentes na região69.

Os índios são os moradores mais antigos do Acre [...] Esses povos cresceram e se desenvolveram tendo a floresta como um elemento organizador da vida social, cultural e espiritual de suas populações: cada um com sua própria história, mitos, crenças, modos de vida, tradições, religião e sabedoria; conhecimentos adquiridos ao longo de uma antiga e forte relação com a mata e seus mistérios (SILVA & MORAIS, 2012, p. 5)

O interessante conceito de ‘bagagem espiritual’ proposto por Oliveira (2002) explica não só a utilização da ayahuasca nestes movimentos religiosos, mas como também como uma reinvenção do uso religioso da mesma. Modelo típico de resistência, novas relação sociais (e religiosas) reformularam constantemente as expressões culturais acreanas.

Quando o migrante experimenta novas expressões culturais, ele pode ou não se apropriar delas. A apropriação do uso da Ayahuasca, resultou na criação de novas práticas religiosas no Brasil, originariamente no Acre, o sujeito histórico se apropria reinventando o uso da conformidade com as crenças que traz como herança. É a reinvenção da sua crença e expressão religiosa (OLIVEIRA, 2002, p. 43)

Podemos considerar que, de uma forma ou de outra, elementos religiosos resistiram, uma vez que, por exemplo, a prática do batismo e da confissão permaneceram de forma adaptada, na ritualística da Barquinha, como veremos posteriormente.

Embasada pelo conceito de ethos, de Geertz (1978), Paskoali (2002) se utiliza do termo teia simbólica para apresentar o que em sua concepção, seria o ethos acreano, ou seja, qual seria o conjunto de costumes e hábitos fundamentais dessa cultura. Considerando o capítulo anterior e os primórdios da Barquinha com Daniel Mattos, ao jogar luz sobre o ethos acreano, ampliamos e compreendemos as estruturas que permitiram a criação da Capelinha de São Francisco. Isabela Oliveira, que estudou as constituições da religiosidade acreana pontua que:

Outra manifestação religiosa dos leigos era a capelinha de estrada, amostra mais cotidiana do povo, com suas festas, rezas, ladainhas e terços. Espaço comunitário, coletivo, congregacional, com calendário de festas em dias santificados, romarias, cânticos, tendo à frente o

87

capelão, que ergueu, consagrou e fez um altar para colocar o santo padroeiro e outros santos da sua devoção, da sua tradição. Ele mora próximo a ela, zelando e promovendo os encontros, não pediu licença a matriz para criá-la, mas foi legitimado pelo povo, não é reconhecido pelos clérigos, é um leigo, mas o povo confia nele, se confessa e respeita, pede conselho e batismo, é o padrinho e amigo, os laços de confiança e sociabilidade eram estreitados nas necessidades cotidianas (OLIVEIRA, 2002, p. 25)

Para Silva & Morais (2012), os movimentos migratórios têm sua origem nos anos de 1877 e 1879, decorrentes sobretudo da Região do Nordeste, em função “da maior crise sócio-econômica na Região” (p. 6), uma forte seca que assolou uma região já castigada pela miséria, o que culminou na migração de aproximadamente trezentos mil nordestinos além de “sírio-libaneses, espanhóis, portugueses, italianos, judeus” (p.7).

Ainda para as autoras, devemos considerar, mesmo que em menor escala, a presença de Africanos na região, cujo grupo étnico teve pouca representação sócio-economico-cultural - seja por causa do preconceito, ou seja porque os colonizadores da região não tinham dinheiro para comprar escravos. Veremos, no entanto, que a matriz afro é fortemente presente nas performances rituais.

Como visto, um grupo de extrema importância que se destaca na formação do povo acreano e influencia seu ethos religioso são os árabes. Principalmente sírios e libaneses, chegaram ao Acre como vendedores ambulantes e, acumulando riquezas, se estabeleceram nas cidades acreanas, se fortalecendo economicamente e facilitando a chegada de novos migrantes (muitas vezes familiares).

Com o tempo e a prosperidade proporcionada pelo comércio da borracha os árabes do Acre começaram a participar da maçonaria, dos clubes políticos e da fundação de clubes esportivos. As famílias de sírios e libaneses foram crescendo cada vez mais, ficando raízes em solo amazônico e ajudando na formação do povo acreano (SILVA & MORAIS, 2012, p. 8).

A autora reforça os dados até então apresentados, apontando que o Acre era povoado por populações indígenas, fora ocupado por migrantes brasileiros de diversos locais e também por pessoas do exterior. Dentre os brasileiros, o Acre fora povoado inicialmente por nordestinos e, noutro momento, por sulistas, especificamente provenientes de São Paulo, Paraná e Rio Grande do Sul; e dentro os estrangeiros, a autora confirma: além de portugueses, houve uma “forte presença da imigração árabe, libaneses fundamentalmente” (Ibid., p.80). É central para a compreensão das religiosidades que se formaram no Acre, entender parte da história do estado e seu conjunto de hábitos e costumes:

88

O ethos acreano apresenta uma característica marcante no que diz respeito à hospitalidade. É possível sentir um estado de satisfação no ato de receber e de acolher com entusiasmo “o que vem de fora”, o estrangeiro, ao mesmo tempo em que se aproveita para incorporar, ou recombinar à sua cultura os novos e diversos elementos culturais. É preciso salientar, inclusive, que toda essa diversidade cultural, permeada pelo traço do acolhimento, transpassou para o plano das crenças, levando a formação de um sincretismo religioso (PASKOALI, 2002, p. 80)

Tendo em vista essa multiplicidade cultural proveniente de diferentes culturas nacionais e internacionais, exploremos a natureza do campo religioso acreano para, a seguir, identificar as principais influências religiosas que culminaram na Capelinha de Daniel e nas extensões subsequentes.