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3. O SOLO FÉRTIL E AS SEMENTES

3.2. Sincretismo e Ecletismo Religioso

Também embasado principalmente por Geertz (1978), Araújo (1999) apresenta de maneira antropológica e etnográfica a Barquinha Casa de Oração Culto Jesus Fonte de

Luz, a fim de aprofundar a concepção subjetiva que os membros da barquinha têm em

relação a si mesmos, além de se preocupar em responder quais e como são construídas as imagens simbólicas da missão dos adeptos.

Ele usa principalmente o âmbito do espaço para organizar e constituir seu trabalho, servindo para ligar o que em sua concepção, são os três pontos chaves: história, cosmologia e rituais. Apesar do autor não definir o conceito de religião, uma preocupação comumente não considerada pelos estudiosos das Barquinhas, o mesmo deixa a entender que partiu do pressuposto que religião seria um processo. Para ele, os ensinamentos de Daniel, mesmo após a sua morte, fizeram com que os principais membros pudessem realizar a continuidade do trabalho, como também a manutenção destes.

Para o autor, essa manutenção acontece através dos desmembramentos (apenas três citados) da Capelinha de São Francisco, pontuando que por diversos motivos, acabaram por “fundando um novo espaço com ideias da missão de Daniel” (Ibid., p.246).

Acreditamos que esse tipo de prática recorrente das doutrinas não indígenas que fazem a ingestão da ayahuasca torna-se um feito riquíssimo, porque as rupturas acendem novas idéias, novos sentimentos e uma variação simbólica impressionantes (ARAÚJO, 1999, p. 246)

Ainda para o Araújo (1999), essa composição simbólica eclética, provem tanto de Daniel quanto da visão de mundo dos líderes religiosos posteriores, “provenientes de

89 lugares distintos e culturas diversas” (p.246). Para ele, os diferentes centros se tornam “aglutinadores de culturas”, pontuando que apenas o termo aglutinador não basta, e que estes centros também seriam, principalmente o Centro Espírita Casa de Oração Jesus

Fonte de Luz, um “ordenador de elementos culturais, constituindo algo autêntico novo e

dinâmico” (Ibid., p.246). A partir dessas ressignificações e novas constituições é que Araújo (1999) desenvolve o conceito base de seu livro, o de cosmologia em construção:

E neste sentido a Barquinha é uma nau de re-significação. Aspectos de sua cosmologia estão sempre sendo atualizados, ou retirados. O centro é de uma incrível flexibilidade simbólica. É o caso de considera-lo como cosmologia em construção [...] Desta maneira, novos elementos do catolicismo popular, do xamanismo indígena, do espiritismo e de outras práticas religiosas e/ou filosóficas podem ser alocados ou retirados [...] Os rituais da Barquinha marcam profundamente o reencontro de tradições europeias indígenas e africanas. O ritual funciona como manifestação dessas culturas, que estão presentes em três características básicas: A prece, a miração, e a possessão (entendida por incorporação). Na primeira, os elementos católicos oriundos da Europa, a miração relacionada ao xamanismo indígena e a possessão aos cultos afro-brasileiros (ARAÚJO, 1999, p.246-7)

O autor exemplifica esta relação tríplice com as matrizes do Catolicismo Popular, do Xamanismo e Afro-brasileira, pontuando os trabalhos de doutrinação de almas e também os trabalhos de cura como revitalizadores destas tradições, reforçando sua ideia de cosmologia em construção70.

O autor reforça que os rituais “dinamizam os processos de re-significação” (p. 249), uma vez que nos mesmos, é possível ver, principalmente através de mirações, algo novo da missão de Daniel, algo exemplificado pelo autor através das romarias71, realizadas pelos adeptos e “sintetizada como viagens dentro de uma grande viagem” (p. 249). O autor conclui:

A mobilidade da barca provocada pelos sujeitos que a compõe produz esta dinâmica, pois voltam mudados, transformados. Esse é o sentido da construção, não só de produzir efeito sobre a arquitetura do local, mas tocas os sujeitos envolvidos, os marinheiros do mar sagrado. Seria impossível a existência de um, sem o outro (ARAÚJO, 1999, p. 249)

Araújo (1999) se utiliza da noção de sincretismo para explicar o que nomeia de performances rituais, realizadas na Barquinha, que para ele, se resumiriam num “composto simbólico de práticas religiosas diferentes que se intercruzam” (p.71) perante

70 Especificidades destas performances rituais serão apresentadas no capítulo seguinte.

90 a atuação dos membros nos trabalhos religiosos. O autor se utiliza do conceito de sincretismo de Pierre Sanchis para compreender esses intercruzamentos performáticos.

Inspirado por Sanchis (1995), Araújo (1999) compreende que a Barquinha seria resultado de um ecletismo religioso (p.73), uma operação na qual elementos de diferentes origens seriam “ecleticamente reaproximados, sobrepostos e/ou refundidos” (ARAÚJO APUD SANCHIS, 1995, p.134), concluindo que:

Nesse sentido, pensamos que a idéia de ecletismo religioso é a que melhor se encaixa para a formação de um pensamento religioso para as religiões não indígenas que fazem uso da ayahuasca. Mas acreditamos que, ao invés dessa circulação do indivíduo, mais fluída por diversas religiões, sem ter a preocupação de se sedimentar em uma, respeitando dessa maneira a diferença das religiões, o indivíduo da Barquinha é mais fixo; porém, as práticas religiosas que circulam nesse tipo de religião amazônica é que são mais fluidas [...] De cosmologia em construção denominamos um conjunto de práticas religiosas que tendem a formar uma doutrina específica, em que existe uma grande velocidade na incorporação e retirada de elementos simbólicos das práticas religiosas ou filosóficas que, combinadas, compõe sua cosmologia (ARAÚJO, 1999, p.74)

O termo ecletismo religioso é utilizado em Ferreti (2005), obra que inspirou o antropólogo Alberto Groisman em sua dissertação de mestrado (1991), na qual se empenhou em abordar aspectos ligados à cosmovisão e rituais presentes no Céu do Mapiá, sede do CEFLURIS – um dos irradiadores da doutrina do Santo Daime72.

Em seu segundo capítulo, “Ecletismo e Espiritualidade: a Cosmovisão”, Groisman (1991) apresenta que é essencial compreender que na gênese do Santo Daime estão presentes “diversos elementos ligados a correntes esotéricas”, que ao buscar compreender e explorar “dimensões desconhecidas da vida humana” acabam por dar ao grupo uma interpretação do “Mundo Espiritual” plural (p. 89). Ao meu ver, Mercante (2012) é quem melhor define e descreve este “mundo espiritual” daimista, em seu já recomendado quarto capítulo “O Espaço Espiritual”

O espaço espiritual é um lugar original. Imaterial e multidimensional. Onde forças poderosas estão em jogo, gerando disposições, intenções e significados, assim como impressões sensoriais, emocionais e mentais; não é idêntico aos aspetos psicológicos ou físicos da existência, ainda que tanto o físico quanto o psicológico estejam imersos dentro do espaço espiritual. Durante o desenvolvimento espiritual de uma pessoa, esta se tornaria consciente de muitas e diferentes dimensões que compõe o espaço espiritual. Quanto mais desenvolvida espiritualmente essa pessoa for, mais ampla será sua consciência do espaço espiritual (MERCANTE, 2012, p. 106)

91 Voltando à Groisman (1991), a concepção espiritual do grupo é eclética, motivada principalmente por uma experiência dinâmica e universalizante que estaria baseada no

ecletismo evolutivo: “doutrina espiritualista e esotérica que reúne, na visão do grupo,

diferentes sistemas cosmológicos numa mesma linha73” (p. 89).

É esse ecletismo que possibilita a convivência entre diversos sistemas cosmológicos: a Umbanda, o Candomblé, o Espiritismo Kardecista, e outros, resgatados pelos adeptos que vão se integrando, e ligados a outras tradições espiritualistas. Todos indivíduos devem “trabalhar”, seja no Plano Material, contribuindo para a sustentação da comunidade com seu trabalho físico e/ou contribuição financeira, seja no Plano Espiritual, ajudando aquele que sofre [...] O Ecletismo Evolutivo constitui-se então na sistematização do conhecimento acumulado a partir da Doutrina Cristã originária mais as exegeses oriundas da exploração simbólica da “Doutrina” e psico-corpórea dos efeitos do Daime (GROISMAN, 1991, p. 90).

Quando se transporta essas qualidades ecléticas para o universo da Barquinha, vemos os melhores exemplos destas “exegeses psico-corpóreas” na sistemática criação de novos centros e extensões. Como presentado no capítulo anterior, interpretações subjetivas de mirações por membros que tinham determinada legitimação eclesiástica e respeito social foram os elementos chaves para (re)criar novas linhagens.

Veremos a seguir quais seriam as principais influências religiosas integradas às cosmologias das barquinhas, e não devemos esquecer que o Santo Daime é uma das principais influências da Barquinha, como será apontado no capítulo seguinte. Na próxima sessão iremos explorar as outras principais influências religiosas (matrizes) das barquinhas.