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O Evento Sacramental: Silêncio, Palavra, Encontro

2 ADVENTO: A RE-VELAÇÃO DO DEUS QUE VEM

2.7 O Evento Sacramental: Silêncio, Palavra, Encontro

O lugar por excelência em que a autocomunicação divina se torna próxima e sensível para a experiência humana é o evento sacramental. Nele, a forma do advento se apresenta do modo mais conveniente para a vida e para o ouvido, para o tato e o gosto dos sentidos humanos. O “sacramento” – termo equivalente ao termo bíblico-paulino “mistério” – é a ação salvífica do Deus transcendente. Esta ação salvífica torna-se presente através da mediação de palavras e gestos sensíveis, os quais o Espírito transformou em instrumentos da autocomunicação divina. É a Glória que vem ocultar-se e, ao mesmo tempo, irradiar-se sob os sinais da história. Sob essa luz, o grande sacramento de Deus é Cristo, a Palavra que se fez carne, o Verbo que saiu do Silêncio para armar sua tenda no meio de nós. Palavra visível – “Sim, esta é a vontade de meu Pai: quem vê o Filho e nele crê tem a vida eterna” (Jo 6, 40) –, audível – “Quem escuta a minha palavra e crê naquele que me enviou tem a vida eterna” (Jo 5,24) –, palpável – “Põe teu dedo aqui e vê minhas mãos! Estende tua mão e põe-na no meu lado e não sejas incrédulo, mas crê!” (Jo 20,27) –,

degustável – “Quem come a minha carne e bebe o meu sangue tem a vida eterna”

(Jo 6,54), Jesus Cristo é a suprema autocomunicação de Deus, o Filho eterno que veio habitar no meio de nós, o “Deus conosco”.

“É participando da sacramentalidade de Cristo, com ele originada, que a própria Igreja se situa no tempo como sacramento de salvação, forma concreta, historicamente determinada de participação da vida divina no tempo dos homens, ‘Corpo de Cristo’, ‘Templo do Espírito Santo’, ‘Ícone da Trindade’”.161

Para Bruno Forte, a Igreja é a mediação histórica e viva da revelação. É o tornar-se presente da Palavra e do Silêncio para a existência humana, pela força do Espírito. Ela é o mistério do encontro em sua forma comunitária e social, é o povo criado pela Palavra para adorar o Silêncio e reconduzir à Origem os filhos dispersos de Deus pelo poder do Consolador. Neste sentido, a Igreja é o “lugar hermenêutico” da revelação: é nela que nos é transmitido o dom divino na economia das palavras e

sinais, como quis o Senhor. É nela que se desenvolve, sob a guia do Espírito, a compreensão da verdade revelada, e é tornada possível, de modo mais verdadeiro, a interpretação da mensagem e sua comunicação vital ao coração humano.

Para o teólogo italiano, o sacramento que é a Igreja, encontra nos eventos sacramentais específicos, o ápice e a fonte de sua própria existência. Os sacramentos são os eventos da autocomunicação divina, oferecidos segundo o transcorrer da vida humana, desde o nascimento, o crescimento, a cura e o testemunho da vida redimida; em seu aspecto tanto pessoal, quanto eclesial. Neles, a revelação do Mistério é atual pela ação do Espírito Santo, agente transcendente e necessário de todo ato sacramental. A Palavra torna-se presente e contagiante graças à sua economia de encarnação. O Silêncio – revelando-se como Origem última e oculta – apresenta-se acessível, como meta e como Pátria. Nesse sentido, o sacramento está intimamente ligado à economia da Palavra: longe de estarem separados, a Palavra e o evento sacramental constituem parte da única dispensação do dom da autocomunicação divina, realizado pela revelação.

“A Palavra ressoa como ‘sacramento audível’ e o sacramento se apresenta como ‘Verbo visível’, como concretização máxima do evento da revelação que é a Palavra de Deus. Verdadeiramente o sacramento é o evento da Palavra no seu pleno cumprimento”.162

Dessa forma, é na riqueza do ato sacramental que se torna presente e acessível à economia da revelação: Palavra, Silêncio e Encontro se recolhem na sóbria concretização do sinal, a fim de, por meio dele, comunicarem-se, sem se esgotarem nele. A Trindade vem ao encontro da história e a história se abre às insondáveis profundezas divinas. Na graça do encontro sacramental, operada pelo Espírito, ressoa a Palavra procedente do Silêncio que atinge o coração humano para comunicar-lhe a vida divina. Com a mesma graça, mediante a Palavra, a criatura escuta o Silêncio e aprende a celebrar sua glória com toda a sua existência. O dom da revelação vem do Pai, pelo Filho, no Espírito Santo, para que no Espírito, pelo Filho tudo retorne ao Pai. Partindo do Silêncio, pela Palavra, na comunhão do Encontro, a vida divina se autocomunica nos eventos sacramentais, a fim de que, na

experiência pessoal e eclesial, mediante a escuta e seguimento do Verbo, seja celebrada em todos os corações a glória da Trindade e o universo inteiro se oriente e se encaminhe ao Silêncio da Pátria.

Da estrutura do advento divino apreende-se, então, a estrutura do êxodo humano. Para Bruno Forte, a teologia trinitária da revelação apresenta-se como o fundamento e o cerne da teologia da história. Silêncio, Palavra e Encontro – categorias de interpretação do ato da revelação – oferecem a chave interpretativa para perscrutar o mais íntimo de tudo o que existe e o verdadeiro dinamismo em relação ao único evento que introduz novidade e sentido na história: a revelação. “Para a fé cristã, a salvação atua-se naquela experiência humana da autocomunicação divina que é o encontro com o Senhor vivo, que o Espírito Santo tornou possível desde os inícios do cristianismo e torna possível – mesmo em forma diversa – em cada hora do tempo: a experiência de Deus em Jesus Cristo”.163

Como se verificam essas características da experiência humana no encontro com a autocomunicação divina, que é a revelação? Tal experiência realiza-se na imediaticidade da “plenitude do tempo”, no encontro pessoal com o Jesus histórico e com o Jesus ressuscitado. Realiza-se também, sucessivamente, através da mediação das testemunhas e da Palavra de vida por ele anunciada: “Mas como poderiam invocar aquele em quem não creram? E como poderiam crer naquele que não ouviram? E como poderiam ouvir sem pregador? E como podem pregar se não forem enviados? (Rm 10,14s). Pelas testemunhas e pela força do Espírito, se estabelece o contato direto com o Cristo vivo, para que a fé nele não se fundamente no “ouvi dizer”, mas na experiência que os seres humanos podem fazer Dele, mediante a Palavra e o Espírito. Emerge aqui o papel fundamental da Tradição da fé apostólica na Igreja, a qual se torna, também neste sentido, o “Corpo de Cristo”, o lugar concreto e histórico em que se pode ter a experiência direta Dele.

“Cristo não pode ser distinguido como mera representação entre as demais representações do mundo. Ele se manifesta a nós na imagem global da Igreja, mediante a comunidade de fé sempre viva e historicamente vivida. A Igreja é o espaço mais restrito da irradiação da sua forma: sobre ela não somente pousam os seus

raios como sobre as imagens do mundo, mas ela é penetrada por eles e pode, por conseguinte, irradiá-los ativamente”.164

Experiência direta e imediata, o encontro com a revelação da Palavra não deixa de ser, entretanto, experiência provocativa e inquietadora. Através do visível e do audível, o ser humano é chamado, no encontro da fé, a abrir-se ao invisível e ao Silêncio.

A revelação e a experiência não somente não se opõem, mas a experiência é momento intrínseco da revelação. A revelação, livre iniciativa do amor divino, transcende qualquer experiência humana, mas ela não pode ser percebida a não ser nas experiências históricas feitas pelo ser humano. O que significa dizer que – graças ao evento da revelação – o homem faz “experiência” da autocomunicação divina. A etimologia contribui para esclarecer o conceito de “experiência”: composta por ex e perior, a palavra latina evoca, por um lado, um movimento de êxodo, um “sair de”, e “ir para”, uma origem e uma abertura (ex); por outro lado – graças ao uso do verbo perior, somente presente em termos compostos –, ela indica os dois campos de significação ligados a essa palavra. Esse verbo está nos radicais tanto de peritus como de periculum: peritus é aquele que possui conhecimento imediato e direto das coisas, sem ter necessidade de intérpretes e intermediários; periculum significa risco, a prova, o componente imponderável, intimamente ligado a qualquer contato direto, sem previsões possíveis e sem defesas (não é de maneira diversa que a palavra grega peira equivale a “passar de lado a lado”, “transpassar, atravessar, navegar”; à mesma etimologia também estão ligadas às palavras “porta” e “porto”).

A re-velação que manifesta e, ao mesmo tempo, oculta; a Palavra que, dizendo cala e calando diz, apresenta-se como desafio à experiência, à liberdade e à audácia do consentimento. A re-velação é “escândalo”, sem o qual não se chega à comunicação do Mistério: aquele homem humilde – Jesus – é, não obstante, salvador e redentor da humanidade. É verdadeiramente o sinal de escândalo e objeto da fé. Por isso, a interpelação que a Palavra dirige ao ser humano, na revelação, está na encruzilhada que separa a morte da vida: em direção a ela cruzam dois caminhos, dos quais, um leva ao escândalo e o outro à fé. Mas nunca

se chega à fé sem passar pela possibilidade do escândalo. É a decisão livre e arriscada da entrega de si ao Deus que se revela, e à qual é provocada a existência humana em êxodo.

Essa experiência direta e arriscada que o ser humano faz da autocomunicação divina é despertada, mantida e alimentada por obra do Espírito Santo. Ele é a experiência do Mistério, porque é quem atualiza a revelação, tornando possível e realizando o encontro do ser humano com a Palavra e com o Silêncio, contagiando-o com a coragem da decisão e provocando-o para a audácia da liberdade. Verdadeiramente, na experiência do encontro, compreendemos porque “onde se acha o Espírito do Senhor, aí está a liberdade” (2Cor 3,17). Graças ao Consolador, a experiência humana da autocomunicação divina é encontro autenticamente humano e humanizador. Experiência total, direta e imediata, arriscada e audaz, existencial e personalíssima, o encontro com a revelação é “conhecimento”, um “re-nascer”, nascendo de novo e de modo novo, “do alto”. “Em verdade, em verdade te digo: quem não nascer do alto não pode entrar no Reino de Deus” (Jo 3,5).

“O agir que resulta da transformação do ser pessoal, operada pela graça através da Palavra de Deus e dos eventos sacramentais, manifesta a novidade de vida que o advento produz no êxodo da condição humana: delineia-se assim, um ‘ethos sacramental’ que é o comportamento dos homens novos, feitos tais pela participação da vida trinitária e, por isso, capazes de cantar com a vida o ‘cântico novo’”.165