Os açaizais, na área do médio Pracuúba, sempre se localizaram predominantemente
nas várzeas. Até o final da década de 1970, basicamente, esses açaizais desenvolviam-se
espontaneamente, sofrendo a intervenção humana somente quando eram removidos,
juntamente com as demais espécies típicas das áreas alagáveis, para dar lugar aos arrozais.
Por esta razão, encontravam-se dispersos, apresentando toiceiras numerosas, com palmeiras as
mais variadas em termos de idade, espessura e altura.
Embora os estipes sempre fossem aproveitados na construção de casas rústicas, o
palmito, de vez em quando, comercializado (dos anos 70 em diante), o produto do açaizeiro
mais importante para a população ribeirinha era o açaí. Até essa época, entretanto, essa
valor econômica (valor de troca). Assim, como a população ribeirinha não era numerosa, o
açaí até se estragava no açaizal.
O açaí era só pra beber naquele tempo. Dava quantidade de açaí naquele tempo. Tinha lugar que a gente passava debaixo daquelas reboladas [toiceiras] que estava com mais de metro de altura de açaí podre naquele caroçal. O açaí vinha, crescia, pretava, a gente não apanhava, e ele caia tudinho ali. Ficava grande caroçal debaixo daquelas reboladas. Agora depois que a população foi aumentando, pronto, hoje pode ser beira de lago, pode ser em qualquer lugar, o pessoal vai buscar o açaí. Hoje em dia, o açaí não cai mais assim. (Entrevista, dez. de 2004).
Isto, entretanto, não significa que a extração de frutos para fins comerciais não
existisse. Ao contrário, a memória social informa que, desde a década de 1940, um importante
comerciante e proprietário local, de nome Antônio Tavares, começou a enviar pequenas levas
de açaí para o entreposto comercial de Jararaca, no município de Muaná, e para as vilas de
Santo Antônio e Cocal, que eram entrepostos localizados em São Sebastião da Boa Vista. No
entanto, como possuía açaizais e os carregamentos eram pequenos (algo em torno de 40 a 50
latas), o referido comerciante se auto-abastecia, não havendo a necessidade de estender a
compra para outras pessoas.
Este quadro, grosso modo, permaneceu assim até o final da década de 1960, ocasião
em que começa apresentar importantes modificações. Limitado vários anos aos circuitos
locais, este comércio transcende a baia do Marajó, chegando a Belém mais precisamente por
volta de 1968, desta feita sob o comando de Raimundo C. Costa (o “papagaio”) que,
coincidentemente, era genro de seu Antônio Tavares.
Com este novo circuito, a extração do açaí para fins comerciais dá um enorme passo
rumo a sua expansão. Diferentemente dos anos anteriores em que o agente comercial
basicamente se auto-abastecia, surgia agora a necessidade de estender a compra do produto
para outros proprietários. Ainda que seu Raimundo C. Costa tomasse conta das terras do
sogro, que tinham extensos açaizais (não obstante a rizicultura), e sua primeira embarcação
proprietários, para que se completasse o carregamento. Com isto, a idéia de obter rendimentos
com a extração do açaí começava a expandir.
Esta importante mudança, entretanto, não abalou as relações de trabalho então
vigentes nos açaizais. Desde a época de seu Antônio Tavares, estas relações vinham se
reproduzindo de maneira desmonetarizada, envolvendo apenas a recompensa em forma de
mercadorias. Embora não se tenha conhecimento exatamente da percentagem que cada
extrator recebia por lata de açaí coletada, sabe-se que esta era paga com produtos
manufaturados e semi-manufaturados que o referido comerciante revendia em sua taberna.
Na época de Raimundo C. Costa, essas relações permaneceram intocadas. Como
também era comerciante, este agente permaneceu reproduzindo as mesmas relações que seu
sogro estabelecia, da maneira como mostra no depoimento a seguir.
Olha, eu distribuía os paneiros e quando era umas 10 horas eles começavam a chegar do mato. Iam cedo, umas 7 horas eles passavam em casa, fumavam um cigarro, tomavam um pouco de cachaça e iam para o igarapé. Quando eles começavam a chegar eu ia pra canoa e só ia mandando a notinha para a mulher que estava lá no balcão [estrutura de madeira existente nas tabernas sobre a qual se coloca as mercadorias que o freguês está comprando]. (Entrevista, dez. de 2004).
Ou seja, ao invés de receber dinheiro, o extrator recebia uma notinha discriminando a
quantia que poderia comprar em mercadoria. Com isto, este trabalhador era imensamente
explorado pelo “proprietário”, que lhe impunha uma relação sem alternativas, a não ser
comprar sua mercadoria. Por outro lado, o “proprietário” e comerciante obtinha um duplo
lucro, pois ganhava, não só com a mercadoria vendida aos extratores, mas com a venda do
açaí em Belém, como será descrito posteriormente.
Aliás, o duplo lucro verificava-se também com relação ao açaí adquirido junto aos
demais “proprietários”. Isto porque, até mesmo neste caso, a remuneração era feita também
Era o seguinte: eu levava mercadoria para quase todo aquele pessoal dela, com isso, eles ficavam era me devendo ainda. Ai, quando eu baixava vinha pegando o açaí e quando subia, eu ia só acertando as contas com eles, era assim que era o negócio. (Entrevista, dez. 2004).
Neste sentido, verifica-se que as transações envolvendo, tanto coletor e
“proprietários”, quanto estes e o marreteiro de açaí, não eram monetarizadas. Ao contrário,
desenvolviam-se com base no escambo, relação em que o agente comprador, que também era
um dos principais “donos” de açaizais, lucrava duas vezes, pois ganhava tanto na negociação
da mercadoria, quanto na venda do açaí, sobretudo quando este começou a ser comercializado
no mercado de Belém e passou a apresentar um relativo dinamismo no âmbito local.
4.5 A COMERCIALIZAÇÃO DOS PRODUTOS AGROEXTRATIVISTAS