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1.4 “ESTE VÍCIO IMPUNE, A LEITURA”

1.5.1. O FATO DO PRÍNCIPE

Quando do envio de O Navio de Teseu para a Nouvelle Revue Française, seu editor, Jean Paulhan, escreve uma carta a seu autor, datada de 9 de maio de 1932 (LARBAUD- PAULHAN, 2010, p. 245), cumprimentando-o efusivamente pela obra e, na ocasião, pergunta-lhe se tem permissão para publicar um poema que Larbaud lhe endereçou junto com o texto, ao que este lhe responde negativamente:

Não, a poesia, do mesmo Bonsignor, não é publicável; ou então seria necessário o comentário que fiz para ela, que demonstra não haver um só verso original, sendo tudo formas comuns do século VXI francês, e Propércio, e Scève, e os Salmos, e Dante, et...Lochac! E o público nada compreenderia nele. Em São Jerônimo, talvez... (LARBAUD-PAULHAN, 2010, p. 250)28.

Em outubro daquele mesmo ano, Larbaud envia à NRF o artigo “O Fato do Príncipe”, em forma de carta, publicado antes mesmo de O Navio de Teseu, que é a resposta a Jean Paulhan, que virá a ser incluído em São Jerônimo. Está contida aí uma explanação sobre questões das fontes e da originalidade na literatura, observada toda a gênese de “Para a Banda de Jazz do Hotel Excelsior” (Pour le jazz-band de l’Hôtel Excelsior), o poema de Bonsignor, quando se fica sabendo que seu personagem é também poeta em seus raros momentos de folga. Na mesma ocasião, o autor acrescenta, em tom farsista, que ambos, ele e o amigo, certamente já leram melhores e piores versos que os de Bonsignor. E que, no poema, não são tantos os sentidos dos versos ou a sua estética que tem seu lugar por excelência, mas a observância de uma espécie de “correia de transmissão” que atravessa toda a literatura, mecanismo que remete a palavra a um lugar sem lugar, um infinito de que se pode, sob uma forma ou outra, apenas aspirar a um elo, como na substituição dos componentes do mítico navio. Desse clássico mito pode ser traçada uma correspondência com o “tesouro poético” ou com a “forma comum”, um navio primitivo que se põe e repõe, até quando não há mais nada nele de original, diferente e ao mesmo tempo não deixando de ser o mesmo, assentado.

Após confessar que nenhum daqueles versos é da autoria de seu personagem ou mesmo sua, Larbaud prossegue no argumento da “forma comum”, mediante as perguntas que,

28Non,la poésie du même Bonsignor n’est pas publiable; ou alors il y faudrait le commentaire que j’ai fait pour

elle et qui démontre qu’il n’y a pas un seul vers original, tout étant formes communes du XVI siècle français, et Properce, et Scève, et les Psaumes, et Dante, et... Lochac! Et le public n’y comprendrait rien. Dans le St Jérôme, peut-être...

segundo ele, lhe ocorrem sempre que lê uma boa obra literária, que é “De onde você tirou isso?”, “De onde foi que ele tirou isso?” E, aqui, ele define o que é a “formme commune”, uma expressão que, “embora não seja propriamente um clichê, foi empregada frequentemente por tantos poetas que podemos afirmar que ela não pertence a ninguém” (LARBAUD- PAULHAN, 2010, p. 172).29

Essa “forma comum” nos remete à concepção de Blanchot sobre a palavra sagrada como “[...] o que está escrito vem não se sabe de onde é sem autor, sem origem e, por isso, remete a algo mais original. Por trás da palavra do escrito, ninguém está presente, mas ela dá voz à ausência [...]” (BLANCHOT, 2011, p. 55). Essas palavras mantêm uma estreita equivalência com a interrogação de Larbaud, “De onde você tirou isso?”, empurrando a origem da palavra sempre a um mais além, e, ao mesmo tempo, sugestivamente atesta certo caráter autofágico da literatura e práticas suas bastantes comuns, os ditos fenômenos de intertextualidade.

A seguir, apresentamos o poema, acompanhando cada verso e sua respectiva origem, conforme referências inteiramente fornecidas por Larbaud, para que se tenha uma medida da variedade de suas fontes:

PARA A BANDA DE JAZZ DO HOTEL EXCELSIOR

Tuttili miei pensier parlan d’Amore

Todos os meus pensares falam de Amor Amor nem por um instante me abandona Amor guarda-me e vela-me adormecido

Amor com as Musas permanece junto a meu leito Ao primeiro raio de cada nova aurora,

Fresco incêndio e argumento do dia; Amor ilumina minha vida e a adorna. Amor ao entardecer permanece a meu lado e em meu espírito sem cessar, exorta-me: ”Mas cada dia, diz, amar tu deves, e cada dia mais e melhor que ninguém” Acreditei nisso, e agora o vejo:

Amor, solto do laço carnal, acresce-se

Minha fronte enruga-se e minha têmpora agrisalha, Mas o sabes, Amor, que me seguiste

À margem nevada deste derradeiro país

Todos os meus pensares falam de Amor ainda.30

29 [...] l’expression qui, sans être un véritable clichê, a été si souvent mise en oeuvre par tant de poètes qu’on peut dire qu’elle n’appartient à personne.

30 POUR LE JAZZ-BAND DE L’HÔTEL EXCELSIOR: Amour pas un instant ne m’abandonne, / Amour me

garde et veille endormi / Amour avec les Muses se tient près de mon lit / Au premier rai de chaque neuve aurore / Frais incendie et l’argument du jour; / Amour ma vie illumine et decore. / Amour au soir demeure près de moi / Et en l’esprit sans cesse il me raisonne: / “Plus chaque jour, dit-il, aimer tu dois, / Et chaque jour plus et mieux

Charles-Marie Bonsignor

Elcelsior Hôtel, Casablanca, Maroc. (Sous l’invocation de saont Jérôme,

1997, pp. 171-172).

Todos os meus pensares falam de Amor

1- Amor nem por um instante me abandona

2- Amor guarda-me e vela-me adormecido

3- Amor com as Musas permanece junto a meu leito

4- Ao primeiro raio de cada nova aurora,

5- Fresco incêndio e argumento do dia;

6- Amor ilumina minha vida e a adorna.

7- Amor ao entardecer permanece a meu lado

8- E em meu espírito sem cessar,

“1 et 2: Amour pas un instant...

Amour me garde... ...formas comuns

dos séculos XVI e XVII). (formes

communes XVIeet XVIIesiècles);

3 : Amour avec les Muses... verso de treze pés, impossível antes da época simbolista; reminiscência ou citação de Propércio: “Mirabar quidnam

misissent...” (vers de treize pieds, impossible avant l’époque symboliste; réminiscence ou citation de Properce:

«Mirabar quidnam misissent...»); 4: Au premier rais..., sequência da lembrança de Propércio “sole

rubente” (suite de réminiscence de Properce: «sole rubente»);

5: Frais incendie..., oposição

concetista, pode ter sido importada da Itália no tempo de Marino; o latinismo argumenta pode ser anterior a Boileau, e condenado por ele

(opposition concettiste, a pu être importée d‘Italie au temps de Marino; le latinisme argument a pu être antérieur à Boileau, et condamné par lui);