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O VÃO TRABALHO DE VER DIVERSOS PAÍSES

CAPÍTULO 2. VALERY LARBAUD, TURISTA DAS FORMAS

2.2. OBRAS COMO INTENSIDADES

2.2.2. O VÃO TRABALHO DE VER DIVERSOS PAÍSES

Em 1927, quando sai o volume Jaune Bleu Blanc, pela NRF, em sua variada composição está o texto “Le vain travaille de voir divers pays”, título inspirado em um soneto de Maurice Scève, conforme nota contida em Oeuvres (1957, p. 1280). Essa crônica, de vinte e seis páginas, composta de catorze seções, foi escrita em várias cidades, observando o percurso que outrora fizera Samuel Butler na Itália, sua “segunda pátria”. Como não poderia deixar de ser, “O vão trabalho...” é pleno de reflexões sobre o autor inglês, como sabemos, de quem Larbaud foi tradutor das principais obras na França.

O enredo da narrativa, repleta de bom humor e comentários pitorescos, começa com alguns versos de Gérard de Nerval (1808-1855), do poema “El Desdichado” e retroage a Georges de Brébeuf (1617-1661), também mencionado como Guillaume de Béubref, poeta parodista francês. Sobre esse solo, o autor passa a discorrer sobre os fatras e o burlesco. Ele, que tinha a intenção de visitar obras do pintor renascentista italiano Gaudenzio Ferrari (1471- 1546), vê sua atenção desviada para as paisagens de Griffier (Jan Griffier, 1652-1718), pintor holandês, habitante de Londres por muitos anos. E é exatamente em uma tela sobre a capital inglesa, tão cara também ao visitante da galeria, e sobre a qual a imaginação do pintor acumula grande porção de elementos disparatados, que as observações dele vão se deter por alguns momentos. Tempo suficiente para que ele atravesse vertiginosamente alguns séculos de poesia, num intenso devaneio desencadeado pelas impressões que lhe despertam o quadro.

E, enquanto nosso cronista deixa suas companhias à sua espera para um combinado passeio, já imagina antecipadamente uma inocente desculpa para sua pequena transgressão e seu atraso, quando encontrá-las.

Na galeria, é tomado pelo verso “D’une vie en tout temps superbe et malheureuse”, de Brébeuf. Entre a profusão da tela de Griffier e o paradoxal verso do poeta, ele se evade para o inteiro reino da literatura e se embrenha nos caminhos que o gênero parodístico do fatras segue, do século XV a seus dias, suas modificações, repassando seus praticantes e críticos, de Jean Régnier, Boileau, Victor Hugo, Théophile Gautier, até os modernos Shelley e Rimbaud. Conclui daí que, entre muitas teorias da evolução do gênero, Burlesco e Fatras mudaram de nome, mais que de essência. E que, em geral, “a mania de teorias é uma maneira tão vã e morosa de matar o tempo quanto o jogo de solitário” (1957, p. 853).

Em resumo, Larbaud realiza uma extensa viagem, entre paisagens e literatura, dentro de uma galeria. Só depois, enfim, segue ao encontro dos amigos que o aguardam.

No final do texto, decide encurtar o itinerário traçado de início, que era rumar da Itália para a ilha de Elba. E sua renúncia, assim como suas anteriores motivações de viagem, orienta-se nuclearmente pela literatura, com a descoberta de uma fonte de Maurice Scève em um escritor toscano do século XV, que pega em uma biblioteca de Gênova e finalmente lê antes de dormir. Dessa leitura, lhe vem à lembrança um verso daquele poeta, que lhe parece então muito oportuno, conforme medita solitário: “Um verso que exprimia tão bem meu estado de espírito e que me fez conhecer-me a mim mesmo. O verso era: Le vain travail de

voir divers pays...” (1957, p. 869).

Decidido, então, com um extenso elogio de engrandecimento a Gênova (“Genova, Gens Nova, Zena en dialecte. Gênova, que os franceses [...] ‘coroam com um acento circunflexo’”.), chega à conclusão que deseja retornar à sua França e é tomado pelo sentimento de que cada país possui seu anjo geográfico, benfazejo, ao lado do qual, em oposição, convive um “demônio político”, com suas mazelas. Para ele, dos anjos guardiães, o da Itália é o mais amável:

Cada país tem seu anjo guardião. É ele que preside ao clima, à paisagem, à sua beleza, ao temperamento dos habitantes, à sua saúde, à sua beleza, aos seus bons costumes, à sua boa administração. É o anjo geográfico. E, de todos os anjos guardiães de todos os países do mundo, o mais amável seguramente é o anjo guardião da Itália (1957, p. 874)66.

Ato contínuo, lembra-se da costumeira atitude que adota, de agradecer a esse bom anjo quando deixa um país, e que, por precaução, não deixa igualmente de recitar fórmulas contendo palavras injuriosas contra si mesmo, o estrangeiro, como forma de reverência ao “demônio político” do lugar, para apaziguamento do espírito xenofóbico de cada país. Suas fórmulas nada ficam a dever a seus predecessores dos séculos XVI e XVII, os mestres do barroco, com suas paródias. Por exemplo, ao sair da Inglaterra, dirige-se a si mesmo com aviltamentos do tipo “Vai-te, continental perverso e hipócrita! Teu hálito suja a pureza de Albion.”; pensa, aliás, para ao partir da França, nova receita, adequada aos sentimentos de sua terra: “Vai-te, meteco, embusteiro, boche, espião, traficante!”; se deixa a Espanha lhe ocorre “Volta a tua vila, Gabacho: tu comes o pão dos espanhois.”; e, na Itália, na estação, no momento que espera o trem, imagina humoradamente: “Vai-te da Itália, vai-te, está na hora” e, se o trem não está atrasado, pensa ouvir: “Vai-te da Itália, Vai-te, Estrangeiro! ” (1957, p. 875).

66 Chaque pays a son ange gardien. C’est lui qui preside au climat, au paysage, au tempérament des habitants, à

leur santé, à leur beauté, à leurs bonnes moeurs, à leur bonne administration. C’est l’ange géographique. Et, de tous les anges gardien de tous les pays du monde, le plus aimable assurément est l’ange gardien de l’Italie.

Podemos imaginar o ar de bufonaria que ele adquire ao dizer que, depois de cumprido o rito próprio, de satisfeito o demônio, o anjo geográfico sorri com indulgência. O encerramento do texto segue o mesmo enredo, com invocações “ao anjo, a Nossa Senhora de Loreto, e todos os santos e santas que protegem este país” e recorrendo aos versos da Ode VII do Livro II das Odes de Horácio (LARBAUD, 1957, p. 1283), para que intercedam favoravelmente a ele, “para que no próximo verão me encontre ‘Dis patris Italoque coelo!’”

Ao flanar com a repetição do verso de Bébreuf na mente, e com sua longa excursão pelos modos de sobrevivência dos fatras no decorrer dos séculos, com suas burlas e seus disparates, aproxima suas origens e práticas mais antigas com a modernidade.

Pelo tom farsesco de sua escrita, é possível supor que Larbaud se sentisse em conexão com essa tradição. Ou mesmo que se pusesse muito à vontade em praticá-la quando lhe aprouvesse. Além do reconhecido non-sense presente em Barnabooth, de “perfil pueril e bestial” que tanto ama (poema “A Máscara”), seus “Borborigmos” insólitos e outros manifestos, sabemos que em 1923 ele publicou um artigo no qual esboça uma teoria poética do burlesco, a propósito de alguns poemas de T.S. Eliot. O tema, portanto, não está distante do autor.

Le vain travail de voir divers pays, a exemplo de tantos outros trabalhos de Larbaud,

chama a atenção pela extensa teia que estende pela literatura, recuando aos clássicos latinos, ingleses, franceses até aos modernos, de quem confessadamente se sente grande leitor e próximo, como Nerval e Rimbaud. Podemos acrescentar ainda que esse texto é ele mesmo um autêntico fatras, tal a proliferação de assuntos, de nomes e de imagens que assomam em suas páginas, em velocidade e intensidade, que o carregam também de um forte barroquismo.

A atitude do observador-escritor que erra abertamente exposto a encontros que favoreçam a irrupção de devires é recorrente, tanto quanto sua posição de praticante de um estado de passividade e atenção combinadas, mediante as quais as imagens se organizam e passam à escrita, em rápidos movimentos voltados ora para o exterior ora para o interior. Qualquer viagem ou imobilidade é capaz de disparar uma intensa movimentação. Um assento no banco de uma capela é soberana chave para vastas paisagens e para a dispensa da passagem por diversos países. Essas configurações estão bem presentes, por exemplo, em “O Patrono dos Tradutores”, que comentamos a seguir.