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O fogo e o tambor – entre a vida e a morte

CAPÍTULO III VAU DA SARAPALHA : UMA INTERPRETAÇÃO A

Cena 5: O fogo e o tambor – entre a vida e a morte

No início da cena 5, essa contradição entre vida e morte permanece, como podemos observar na fala de Ribeiro: “Esta carcaça bem que está aguentando. Mas agora, já estou quase vendo meu descanso, que está chega não chega, na horinha de chegar” (VASCONCELOS, 1992, p. 12). Percebe-se que há uma ambivalência em seu discurso, que na primeira sentença diz que seu corpo está resistindo, e na segunda afirma que sua morte está próxima.

Nesse momento, sons percussivos em ritmo rápido invadem a cena e criam um clima sombrio, tenso e que provoca medo, deixando um suspense no ar e reforçando ideia de proximidade da morte. São sons de tambores que fazem Ribeiro tremer e cobrir os seus braços, enquanto que a iluminação muda, tornando a cena mais escura e deixando a cozinha, que está iluminada de vermelho, mais em evidência. O Capeta aparece por traz da cozinha e estabelece uma comunicação em grammelot com Ceição. Talvez, por isso, Ceição tenha os presságios, pois é ela que é possuidora do conhecimento da linguagem do sobrenatural. O Capeta fala sempre percutindo os potes de barro e parece reclamar por comida, até que Ceição lhe entrega uma frigideira cheia de fogo e o Capeta vai embora.

Todas essas ações que Ceição realiza estão ligadas aos seus poderes místicos. O preparo da cana, bebida frequentemente utilizada nos rituais de religião de matriz africana, servirá para a cura espiritual dos primos, pois

A cana é, por outro lado, dotada de poderes purificadores e protetores. Foi com a ajuda de canas que Izanagi se purificou, ao retornar do país dos mortos; foi com a fumaça de canas que Yi-ying foi purificado, antes de se tornar ministro. É com

cordas de canas que os gênios das portas dominam os espíritos maléficos (CHEVALIER e GHEERBRANT, 2009, p. 173).

O fogo, elemento que Ceição usa no seu preparo juntamente com a cachaça, por sua vez, também tem o poder de purificação. Segundo Chevalier e Gheerbrant (2009), do Ocidente ao Japão, o fogo é visto como um símbolo purificador e regenerador. E é, justamente, esse preparo com cachaça e fogo que Ceição irá dar para os primos Ribeiro e Argemiro beberem mais adiante, para que regenerem o seu corpo e a sua alma.

O fogo, de acordo com Chevalier e Gheerbrant (2009), é considerado por algumas crenças arcaicas como gerado pelo ventre de feiticeiras. O fogo em Vau da Sarapalha, sempre surge, justamente, através de Ceição, que é uma personagem que reúne características que fazem dela uma mulher meio bruxa, meio preta velha, meio feiticeira, o que confirma essa característica mística da presença do fogo nesse espetáculo.

Entretanto, a simbologia do fogo é ambivalente:

Assim como o Sol, pelos seus raios, o fogo simboliza por suas chamas a ação fecundante, purificadora e iluminadora. Mas ele apresenta também um aspecto

negativo: obscurece e sufoca, por causa da fumaça; queima, devora e destrói: o

fogo das paixões, do castigo e da guerra (CHEVALIER E GHEERBRANT, 2009, p. 443).

No espetáculo Vau da Sarapalha, o uso do fogo também apresenta esse caráter ambivalente, pois da mesma maneira que o fogo surge através das mãos místicas de Ceição na tentativa de purificar e revigorar os primos, ele também serve de alimento para o Capeta, que vive a atormentar os primos através dos seus agouros.

Outro elemento que aparece nesse momento que reforça o caráter místico das ações de Ceição é o surgimento dos sons percussivos dos tambores. O som dos tambores, de acordo com Chevalier e Gheerbrant (2009), está ligado ao som primordial e ao ritmo do universo. Eles são usados pelos xamãs das regiões altaicas em cerimônias religiosas e possuem, também, uma simbologia de proteção. O tambor é usado, também, como uma espécie de arma psicológica para desfazer o poder do inimigo. Ele é um instrumento considerado como sede de uma força sagrada, de onde surgem as riquezas da terra. Para Coelho Netto (in Guinsburg, 1978, p. 114): “A escolha do instrumento tem também um valor semiológico, podendo sugerir o lugar, o meio social, o ambiente.” No caso de Vau da Sarapalha, o tambor surge em um ambiente repleto de signos representativos das religiões

de matriz africana e, nessa cena, como uma tentativa de ligação com o divino, a fim de buscar uma proteção para os primos contra os poderes nocivos do Capeta.

Entretanto, o tambor, assim como o fogo, também possui ambivalências em suas significações e o seu som pode resultar em implicações diversas, visto que

dependendo da madeira utilizada, da época de fabricação, da conformidade ritual, o efeito pode ser benéfico ou maléfico, pois as influências que ele evoca não são uniformemente favoráveis. O tambor africano, evidentemente, invoca a

descida dos favores celestes de modo análogo” (CHEVALIER E GHEERBRANT, 2009, p. 861).

Em Vau da Sarapalha, essa ambivalência relacionada ao tambor também está presente, pois ao mesmo tempo em que o som deste instrumento aparece nos momentos em que Ceição faz ações na tentativa de fazer uma limpeza espiritual no ambiente, nos elementos desse ambiente e nas pessoas que nele habitam, também surge produzido pelo personagem do Capeta.

Enquanto Ceição pratica as suas ações de purificação do ambiente, os primos conversam: Argemiro se recordando do médico que cuidava da doença no lugar onde vivem e Ribeiro insistindo na ideia de morte. Mas, ao surgir o som do aboio silenciam. O aboio remete à fuga de Luísa, pois esta fugiu com um boiadeiro, o que faz com que Ribeiro fale em sua ex-mulher pela primeira vez na trama: “Foi seis meses em antes de ela ir s’embora. Luísa!” (VASCONCELOS, 1992, p. 13). Fala o nome de Luísa prolongando muito o último fonema, quase que aboiando o nome da mulher amada, como se quisesse que ela o escutasse, mesmo com toda a distância que os separa. O tom de sua voz é desesperador, como de alguém que precisa muito para sobreviver da pessoa por quem chama.