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CAPÍTULO III VAU DA SARAPALHA : UMA INTERPRETAÇÃO A

Cena 4: O pilão – entre a terra e o céu

A Cena 4 tem início com Ribeiro pedindo a Argemiro para, quando morrer, ser enterrado no cemitério do povoado. Argemiro, nesse momento, caminha de costas até Ribeiro. Esse caminhar de costas, sem encarar o outro, remete a uma significação de que Argemiro tem algo a esconder de Ribeiro. A própria posição das mãos de Argemiro, sempre encolhidas na região do tórax, região relacionada aos sentimentos, inclusive onde se situa o chacra cardíaco, responsável pelas emoções, pode significar uma tentativa de esconder os seus sentimentos de Ribeiro.

Ceição observa o diálogo dos primos, pega um ramo de ervas, benze os objetos da cozinha e, em seguida, joga-o dentro do pilão e começa a batê-lo. O pilão é um objeto bastante usado por Ceição e reforça a dimensão mística dessa personagem, visto que o movimento deste objeto é realizado de acordo com a direção do Eixo do mundo, unindo o universo terrestre ao universo celeste. E, ao que parece, é este justamente um dos papéis exercidos por Ceição dentro do espetáculo. É ela quem, através do seu grammelot, exerce o poder de comunicação com as entidades além-mundo e tenta traduzir as premonições para os outros personagens da trama. É Ceição, também, que exerce o papel de cura através do conhecimento e do uso sobrenatural da água, do fogo e das ervas. No que diz respeito à cura, o objeto do pilão também exerce o seu papel junto a Ceição, pois, segundo Chevalier e Gheerbrant (2009, p. 717), ele “tem o atributo de afastar as doenças; ele é o destruidor da morte”.

O pilão, dessa forma, é um instrumento que auxilia Ceição no seu objetivo de curar os primos. Ainda sobre o pilão, afirmam Chevalier e Gheerbrant (2009, p. 717): “Conta-se, na Birmânia, que o pilão, que esmagou especiarias durante toda uma vida de mulher, está tão impregnado de odor que desperta os mortos, rejuvenesce os velhos, torna os jovens imortais”. E é nesse momento do espetáculo em que o cheiro das ervas invade o olfato do público. O cheiro das ervas é também um signo. Embora não possa ser visto ou ouvido, é

percebido pelo olfato e traz um significado de cura, como se com aquelas ervas que Ceição bate dentro do pilão, ela tentasse trazer de volta a saúde e a juventude de Ribeiro e Argemiro. Aqui, mais uma vez, as ações de Ceição podem ser associadas ao Orixá Ossanha, devido a seu conhecimento do uso das ervas.

Após essas ações no pilão, Ceição começa a tentar pegar uma galinha, sempre falando o seu grammelot. Ao agarrar a galinha, arranca-lhe uma pena. A galinha, mais uma vez, é representada apenas por sons de cacarejos. Depois, Ceição começa a benzer Ribeiro com a pena. Em seguida, sopra a pena, como se espantasse as más energias que nela haviam ficado, falando calmamente e baixinho o seu grammelot, como se tivesse com uma satisfação de dever cumprido por ter espantado os maus agouros que estavam sobre Ribeiro e realizando, através da pena da galinha, o seu Axé. Durante toda essa movimentação de Ceição, Ribeiro come torrões de terra e os oferece a Argemiro. De acordo com Chevalier e Gheerbrant (2009, p. 879): “Algumas tribos africanas têm o hábito de comer a terra: símbolo da identificação. O sacrificador prova a terra; dela, a mulher grávida come. O fogo nasce da terra comida (...). Também na religião védica, a terra simboliza a mãe, fonte do ser e protetora contra qualquer força de destruição”.

Dessa forma, a terra que Ribeiro come, justamente em um momento em que Ceição faz um ritual de purificação com a pena em torno dos primos, pode indicar a busca do fogo que nasce da terra e rege a vida, assim como pode representar a procura pelo amparo materno ou pelo colo feminino, como um escudo em proteção às forças destruidoras do Capeta. Entretanto, até mesmo esse caráter maternal da terra é ambivalente, pois, ela dá e tira a vida. Na Bíblia, no livro de Jó, Cap. I, 20-21, temos: “Então Jó se levantou, rasgou o seu manto, rapou a sua cabeça e, lançando-se em terra, adorou; e disse: Nu saí do ventre de minha mãe, e nu retornarei para lá”. Assim sendo, a terra oferece duas funções contrapostas: ao mesmo tempo em que oferece o alimento para o homem, gerando vida, precisa dos mortos para se alimentar, o que a torna também destruidora.

Dessa maneira, ao comer torrões de terra, Ribeiro, ao passo que busca a vida, antecipa, também, a sua própria morte. A terra é algo bastante presente no espetáculo Vau da Sarapalha e pode ser encontrado em diversos objetos que compõem o cenário, como potes, bacias e panelas feitas com barro, assim como em diversos sacos que estão ao redor da cozinha de Ceição. Chevalier e Gheerbrant (2009, p. 878-879) afirmam que em várias culturas a terra representa os aspectos femininos do mundo. De acordo com estes autores:

“todos os seres recebem dela o seu nascimento, pois é mulher e mãe (...). O animal fêmea tem a natureza da terra (...). A terra é a virgem penetrada pela lâmina ou pelo arado, fecundada pela chuva ou pelo sangue, o sêmen do céu” . A terra é colocada, ainda, segundo os autores acima mencionados, como o lugar dos conflitos da consciência humana. Assim, sendo, quando Ribeiro come torrões de terra, pode está colocando para dentro de si a própria Luísa, visto que a terra é uma representação do feminino. Pode também está trazendo vida e morte, visto que a terra é o princípio e o fim da vida. A terra que Ribeiro come pode, também, está representando o seu consciente e as suas situações de conflituosas, onde entram em choque o amor pela mulher amada e a sua honra.