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O governo de Ercole I e a contratação de Josquin Des Prez

1. ASPECTOS HISTÓRICOS

1.1. Ferrara

1.1.3. O governo de Ercole I e a contratação de Josquin Des Prez

Os anos em que Ferrara esteve sob o governo de Ercole I, entre 1471 e 1505, representariam a fase mais movimentada, política e artisticamente. O du- que, que era filho de Niccolò III, recebeu sua educação em Nápoles e teve grande instrução nas artes militares e políticas, mas desde cedo demonstrou seu interes- se pelas ideias humanistas, o que ajudaria a torná-lo um dos nobres mais impor- tantes para o Renascimento Italiano (TUOHY, 2002, p.534).

Ercole assume o trono de Ferrara após a morte de seu meio irmão Bor- so, que havia feito um curto governo em Ferrara priorizando a música instrumen- tal. Os seus primeiros anos de governo foram marcados pelas crises políticas e guerras enfrentadas por Ferrara, em especial a guerra com a República de Vene- za, entre 1482 e 1484. Mas foi nos últimos anos de sua vida que Ercole propiciou os fatos mais relevantes para a vida intelectual de Ferrara.

A maturidade do duque representa a fase de maior tensão espiritual de sua vida. Alguns fatos demonstram claramente seu descontentamento com a igre- ja católica, instituição na qual ocupa um papel de destaque, por ser um nobre. Sua aproximação pública com o padre dominicano e reformador Girolamo Savonarola (1452-1498) foi relevante para a tomada de posição de Ercole contrária ao papa

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Alexandre VI. Savonarola nasceu de uma importante família de Ferrara, mas, após iniciada sua vida como religioso, tornou-se uma figura conhecida por propor refor- mas no sistema católico de então.

Entre os anos de 1490 e 1493 Ercole realiza importantes casamentos com seus filhos, resultando em alianças políticas com as cortes dos Gonzaga e dos Sforza. É nesse período que acontece o casamento de seu filho Alfonso com Lucrecia Borgia, filha do papa Alexandre VI. Essa contradição de casar Alfonso com a filha do papa não aconteceu de forma tranquila, visto seu descontentamen- to com o pontífice, mas foi resultado de um longo processo político que seria im- portante para a cidade de Ferrara. Esse fato demonstra o conflito entre o homem e o estadista.

Lucrecia Bórgia acabou exercendo um grande papel na disputa política de Ferrara, e por conta de sua personalidade e das lendas que se formou em tor- no dela transformou-se em uma das figuras mais conhecidas de todo o Renasci- mento. Nascida em 1480, filha ilegítima do espanhol Rodrigo Bórgia, Lucrecia passou a ser conhecida quando seu pai tornou-se papa, em 1492. Por conta dos inúmeros episódios caricatos de sua trajetória, a maior parte dizendo respeito a sua vida íntima, a fama de Lucrecia crescia como sendo uma mulher frívola e de pouca moral, mas quando, em 1501, se torna esposa de Alfonso d`Este e muda- se para a cidade de Ferrara, o que vai chamar a atenção de todos na corte é seu refinamento e sua cultura. Durante o período em que foi duquesa contribuiu para o avanço intelectual da cidade, e atraiu personagens importantes ligados à cultura. Destacam-se a vinda para a cidade dos escritores Ludovico Ariosto e Erasmo de Roterdã (1466-1536), autor da famosa obra “Elogio da Loucura”, de 1509.

No cenário musical temos na Ferrara da última década do século XV o apogeu da produção musical da corte. A Capella di corti que o duque mantinha no palácio era, nesse período, uma das maiores de toda a Europa, rivalizando em importância e tamanho com a capela papal. Um dado importante para se entender a posição privilegiada desse grupo de cantores formado na corte de Ferrara é o fato conhecido de o duque assistir e participar diariamente da missa, como era

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esperado de um nobre católico. Mas se tem conhecimento de que Ercole também participava diariamente do ofício das Vésperas, que se realizava no final do dia, e muitas vezes tomava parte no coro, o que nos demonstra o interesse que tinha pelo grupo formado dentro de seu palácio (LOCKWOOD, 2009, p.150).

A existência de um grupo de cantores com esse prestígio possibilitou o desenvolvimento da música vocal. Ciente disso, Ercole se empenhou para trazer o já famoso compositor e mestre de capela Josquin Des Prez para Ferrara como uma demonstração do poder artístico e econômico, pensando também na relevân- cia que teria no cenário musical a partir de então.

Sua contratação definitiva aconteceu entre 1503 e 1504 e, apesar de ter sido por um período relativamente curto, representa o auge musical e a sedimen- tação das pretensões artísticas alimentadas pela família d`Este. Josquin está no ponto central de toda a música do Renascimento, junto com seus contemporâneos mais famosos, Jacob Obrecht (1457-1505), Heinrich Issac (ca. 1450-1517) e Pier- re de La Rue (1452-1518). Esses compositores formam o que é conhecida como a terceira geração dos franco-flamengos, e temos com eles a fase principal da poli- fonia (TUOHY,2002). O avanço e desenvolvimento que a música dessa geração atingiu são descritos como a junção, bem-sucedida, da escrita polifônica trazida pelos compositores do Norte com a melodia italiana.

A produção do grupo é bastante numerosa e temos o advento do mote- to como forma preponderante, assumindo o papel que antes teria sido da missa. A característica que mais demonstra o desenvolvimento desta em relação às gera- ções anteriores é a expressividade que a música alcançou. O enlace entre música e texto, que marca a música de todo o Renascimento, assume agora a importân- cia que manteria até o fim desse período.

Alguns autores, como Howard Brown em seu livro Music in the Renais- sance (1976, p.384), atribuem essa expressividade que a música de Josquin ad- quiriu ao procedimento de se compor apoiado em um cantus firmus de motivos melódicos mais curtos do que se fazia antes, o que garantia ao compositor mais liberdade para arquitetar a estrutura da música. Temos assim um repertório em

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que as vozes assumem características mais independentes e, portanto, mais ex- pressivas. Desenvolve-se nesta época o que conhecemos como ponto de imita- ção, ferramenta pela qual o discurso musical alcança efeitos de contrastes tanto melódicos quanto de texturas.

Muitas obras de Josquin poderiam servir de exemplo do tipo de compo- sição musical representativa para este período em Ferrara, mas a missa composta por ele em homenagem ao duque Ercole, Missa Hercules Dux Ferrarie, se destaca dentre as demais. Ercole encomendou a Josquin uma obra que fizesse referência direta a ele. Para tal objetivo, Josquin compôs, provavelmente entre 1503 e 1504, a missa que tem como base de composição um soggeto cavato que solmiza as letras latinas do nome do duque Ercoles.

A técnica do soggetto cavato foi inaugurada por Josquin Des Prez nesta missa, o que por si só já a coloca em uma posição de destaque na história da mú- sica. Basicamente, a técnica consiste na relação das sílabas de uma palavra a partir do processo de solmização proposto por Guido de Arezzo (ca. 995-1050), que usou como base o hino latino de São João Batista (MENGOZZI, 2010, p. 1-9). Após a missa em homenagem ao duque muitas outras obras do próprio Josquin e de outros compositores passaram a utilizar esta técnica. Entre eles des- taca-se Adrian Willaert em seus motetos em homenagem ao duque de Milão, Francesco II Sforza. O próprio duque Ercole recebeu outras obras em sua home- nagem, repetindo a técnica desenvolvida por Josquin, destacando-se a de Cipria- no da Rore.

O exemplo da missa composta por Josquin e toda a sua importância como compositor no período do Renascimento nos ajuda a traçar um panorama dos acontecimentos musicais em Ferrara no período de governo do duque Ercole I. Podemos resumir essas características como a polifonia franco-flamenca, o pensamento humanista (através da preocupação com o texto) e a melodia italiana. Tendo o compositor Josquin Des Prez como o exemplo mais significativo e famo- so, sua ligação com a corte de Ferrara demonstra a maturidade artística que a corte d’Este havia desenvolvido naquele momento.

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