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Reflexões sobre a linguagem modal de Gesualdo e seu tempo

3. A MÚSICA

3.2. Reflexões sobre a linguagem modal de Gesualdo e seu tempo

Ao assumirmos que a estrutura harmônica da escrita de Gesualdo contem- plava os três tipos de sistemas de composição citados, certamente atribuiremos ao sistema modal o ambiente mais comum para este repertório. No entanto, é jus- tamente na questão modal que os madrigais deste compositor apresentam os maiores desafios para seu entendimento.

Não há dúvida de que a música do Renascimento se construiu a partir do sistema modal, no entanto, quando se avança na escrita polifônica do fim do perí- odo, as certezas que envolvem esta classificação se tornam menos claras. O prin- cipal ponto desta dificuldade é descobrir até onde se deve considerar as práticas modais dentro das resultantes verticais da polifonia. Este problema se estende durante todo o período, mas sua importância se impõe de forma especial a partir dos madrigalistas tardios.

No caso especíifico de Gesualdo, temos o incremento do uso recorrente e exacerbado da escrita cromática em todos os momentos de sua composição, o que torna o entendimento modal ainda mais complexo. Para avançar nesta ques- tão e tentar extrair conceitos que sejam aplicáveis à obra deste compositor, faz-se necessário analisar uma questão teórica que vem sendo discutida pela musicolo- gia moderna há, pelo menos, 60 anos: o que ocorreu entre a estrutura modal do gregoriano e o estabelecimento da escrita tonal? Esta transição se deu de forma contínua e evolutiva ou foi uma ruptura causada em um determinado momento? Apesar dos avanços musicológicos não terem respondido de forma consensual estas e outras perguntas que a reflexão nos impõe, a bibliografia especializada

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que temos até o momento propõe parâmetros que podem nos auxiliar no entendi- mento da obra de Gesualdo.

A primeira intervenção relevante sobre o tema foi feita pelo musicólogo alemão Heinrich Besseler em 1950. Em seu trabalho intitulado Bourdon und Fauxbourdon (Leipzig, 1950), Besseler propunha uma visão totalmente evolutiva da transição modal/tonal. Segundo ele, os compositores do século XV já haviam “intuído” o futuro desenvolvimento da estrutura harmônica para o tonalismo, mas faltava naquele momento determinadas ferramentas que possibilitassem este de- senvolvimento. Estas ferramentas podem ser entendidas hoje como a noção fun- cional que temos entre as tríades que compõe uma obra tonal (MANGANI, 2004, p. 20). Baseado nesta visão, podemos entender que todo o repertório produzido entre os séculos XV e XVII caminhou em direção ao estabelecimento do novo sis- tema.

Apesar da visão evolutiva ter dominado o cenário musicológico durante a segunda metade do século XX, quase contemporaneamente a Besseler o também alemão Bernhard Meier construía em seu trabalho Die Harmonik im cantus-firmus- haltigen Satz (1952) (A Harmonia contida no Cantus firmus) a primeira revisão ao conceito, não sem fazer várias criticas e apontar problemas. Como salienta o autor Marco Mangani em seu artigo Le “strutture tonali” della polifonia (2004, p. 21) (A “estrutura tonal” da polifonia), Meier propõe uma visão mais positivista da questão, incluindo no pensamento evolucionista mais conceitualizações históricas. Sua principal crítica à análise de Besseler encontra-se no uso de conceitos musicológi- cos distantes da realidade do século XVI, ou seja, sua análise deste repertório foi embasada em procedimentos modernos, não promovendo uma contextualização histórica mais aprofundada, o que resultou em definições baseadas em tendências anacrônicas do repertório. Um exemplo citado por Meier é o fato de o primeiro au- tor ter conferido a linha do contratenor uma função similar a um baixo contínuo, mesmo que, no caso do repertório em questão, esta linha não tivesse nenhuma função de sustentar as tríades resultantes (MANGANI, 2004, p.21). Para Meier, esta visão limitava o entendimento de Besseler e resultou em uma análise inefici-

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ente. À parte a estas críticas, Meier presta uma importante contribuição ao tema elaborando parâmetros para a análise do repertório modal, especialmente quando descreve e explica a função de conceitos como o exordium (perfil melódico do modo) e repercussa (nota mais importante do modo).

Poucos anos depois, já na década de 60, temos os trabalhos do autor Carl Dahlhaus que também contribuiu para o avanço desta questão. Entrando na dis- cussão proposta por Meier e ampliando a revisão dos conceitos propostos por Besseler, Dahlhaus propõe uma visão evolutiva que inclui diversos outros parâme- tros em sua explicação e entende este processo evolutivo de forma muito mais extensa do que os demais musicólogos. O primeiro fator que o diferenciou das demais visões foi ter considerado como ponto inicial do processo de transição a mudança de função e disposição das cadências, que passam a ter, segundo ele, uma função central na música do pós-modalismo. Mas, de todos os avanços efe- tuados na discussão e da sólida conceituação teórica proposta por Dahlhaus em seu trabalho Untersuchungen über die Entstehung der harmonischen Tonalität (1990) (Estudos sobre a origem da tonalidade harmônica), o principal para esta pesquisa foi estabelecer que os primeiros indícios concretos da dualidade mai- or/menor estão nos motetos de Josquin Des Prez e que o ponto preciso da mu- dança de sistema está nos madrigais de Monteverdi.

Estas marcações temporais que Dahlhaus fez na discussão posta, contribui por nos ajudar a situar a obra de Gesualdo dentro deste processo e atesta, de cer- ta maneira, que, apesar da transição entre os sistemas modal/tonal ser a explica- ção para a maior parte das características que tornam a obra de Gesualdo tão dis- tinta em seu tempo, este compositor pode ser considerado como à margem de todo o processo aqui discutido, pois, ao mesmo tempo em que Monteverdi assina- la, segundo a visão de Dahlhaus, o final do processo transitório, Gesualdo está no auge da afirmação de seu estilo pessoal (a partir do livro III) em que o caminho natural trilhado por todo este processo de transição musical foi completamente abandonado por ele.

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Seguindo com esta rápida incursão na bibliografia sobre o assunto, não de forma cronológica, pois os estudos configuram linhas de pensamentos que se opuseram de forma desigual no tempo, mas propondo uma linha de entendimento do tema, temos os trabalhos do americano Harold Powers. Segundo Marco Man- gani, este último autor escreveu os estudos mais conhecidos, citados e, talvez, menos entendidos sobre este assunto (MANGANI, 2004, p. 24).

A dedicação de Powers à estrutura modal vai além da questão sobre seu desenvolvimento. É dele a definição que existe no dicionário New Grove do verbe- te Mode (POWERS, 1980), em que o autor faz uma análise minuciosa do assunto, envolvendo questões que vão desde os aspectos históricos até as explicações semânticas sobre o termo. Sua visão sobre a discussão que estamos tratando atravessou fases mais e menos radicais sobre a questão evolutiva e, no geral, apresentou-se sempre como contrária à visão estabelecida por Meier. Mas nas inúmeras revisões do seu próprio pensamento, Powers elaborou parâmetros im- portantes. O primeiro a ser destacado nesta pesquisa foi reconhecer que Meier contribuiu para o tema quando encontrou no repertório do século XVI uma consci- ência por parte dos seus compositores das características de modos autênticos e plagais. Para ele, esta consciência demonstra de forma objetiva que a polifonia vocal detinha um conhecimento das categorias do sistema dos oito modos equiva- lente ao que temos hoje. (POWERS, 1992/1, 20 n. 24).

Mas o conceito deste autor que mais auxiliará na pesquisa sobre os madri- gais de Gesualdo é defender que as características ligadas ao modo escolhido são mais amplas do que as visões anteriores demonstravam. A aplicação prática disso é dizer que a identificação do modo de um madrigal, ou qualquer outra peça polifônica do século XVI, não se faz de uma forma simplista como a análise musi- cal está acostumada, por vários motivos, sendo um deles o fato de não ser possí- vel reconhecê-lo em todos os exemplos.

Powers sintetiza seu pensamento dizendo que nenhum teórico pensaria em negar que a sexta sinfonia de Beethoven está em Fá Maior, pois, o sistema tonal, como conceito teórico, é um fator indiscutível na composição musical. Mas a

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classificação de uma obra polifônica a uma determinada categoria modal é uma operação longe de ser óbvia, e não é raro encontrar fortes discrepâncias neste propósito entre os teóricos do século XVI. (POWERS, 1981, p.432-433)

Ao assumir, depois de anos de pesquisas e avanços neste tema, que a questão modal de tão complexa pode resultar em opiniões divergentes e sem con- senso, Powers contribui por atestar que a escolha do modo e sua identificação pela musicologia moderna é mais complexa do que normalmente vem sendo tra- tada. Este pensamento vem ao encontro do estudo específico da obra de Carlo Gesualdo, pois, em inúmeros momentos, a tomada de decisão sobre qual é o mo- do base de um madrigal implicaria em pequenas adaptações e desconsiderações que podem não ser a melhor forma de analisá-lo.

Como forma de encerrar esta discussão dentro desta pesquisa, e ainda se baseando na bibliografia especializada sobre o assunto, temos o artigo Counter- point and Modality in Gesualdo’s Late Madrigals escrito por Marco Mangani e Da- niele Sabaiano na edição especial Gesualdo 1613 – 2013 da revista italiana Philomusica on line. O objetivo do artigo era comprovar se existia ou não uma or- ganização modal que fosse compreensível por nós nos últimos dois livros de ma- drigais de Gesualdo. A constatação foi que sim, é possível encontrar uma organi- zação modal consistente nas últimas fases do compositor. Mas, além disso, os autores opinaram dentro desta pesquisa sobre a discussão tratada neste texto e contribuíram para seu entendimento.

Segundo eles, após dez anos de pesquisa sobre o tema, conclui-se que nenhuma das visões aqui retratadas devem ser totalmente aceitas, pois todas ten- taram enxergar na música do século XVI, auge do experimentalismo do renasci- mento, um sistema de composição consistente o bastante para se tornar padrão entre os compositores, o que torna estas visões falhas. Ou seja, para eles será impossível responder às duas questões iniciais deste capítulo: o que aconteceu entre a estrutura modal do gregoriano e o estabelecimento da música tonal; e se o processo de transição modal/tonal se deu de forma evolutiva ou de forma abrupta,

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pois estas duas questões se dirigem a uma expressão artística com poucos pon- tos de coerência entre os diferentes compositores.

Para o pesquisador desta tese, a constatação mais importante feita por esta dupla de autores, e que será aceita nesta pesquisa, é que a identificação do modo básico sob o qual Gesualdo escreveu determinado madrigal não é uma informa- ção determinante no seu entendimento, pois, se a preocupação expressiva exerci- da pelo compositor em sua obra podia alterar quaisquer outros parâmetros e sis- temas musicais utilizados na concepção da obra, inclusive as ferramentas ligadas à tradição modal, o mais importante na análise deste repertório é identificar quais eram os seus objetivos expressivos e, assim, desvendar a gramática de sua músi- ca.