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Os madrigais de Carlo Gesualdo = um estudo interpretativo à luz de seu ideal poético

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RAFAEL LUÍS GARBUIO

OS MADRIGAIS DE CARLO GESUALDO:

Um estudo interpretativo à luz de seu ideal poético

CAMPINAS

2015

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS

INSTITUTO DE ARTES

RAFAEL LUÍS GARBUIO

OS MADRIGAIS DE CARLO GESUALDO:

Um estudo interpretativo à luz de seu ideal poético.

Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Música do Instituto de Artes da Universidade Estadual de Campinas, como par-te dos requisitos exigidos para obpar-tenção do título de Doutor em Música, na Área de Concentração: Práticas Interpretativas.

Orientador: Dr. Carlos Fernando Fiorini

Este exemplar corresponde à versão final da Tese defendida pelo aluno Rafael Luís Garbuio, orientado pelo professor Dr. Car-los Fernando Fiorini.

CAMPINAS 2015

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RESUMO

Os seis livros de madrigais italianos compostos por Carlo Gesualdo apresentam uma estreita relação entre a música e o texto. A manipulação efetuada pelo com-positor nos poemas que seriam base para suas peças evidencia sua busca por um determinado formato de texto. Através da observação destas alterações, foi possí-vel caracterizar seu ideal poético e relacioná-lo diretamente com a sua concepção musical, objetivando um entendimento mais abrangente da expressividade deste conjunto de obras. Para chegar a este resultado, foram realizados estudos da con-textualização histórica, concentrados na cidade de Ferrara e na sua importância dentro da obra deste compositor; do Maneirismo artístico e sua relação com o ma-drigal italiano tardio, e dos vários aspectos da sua escrita musical. Como forma de confrontar estas informações, realizou-se uma análise da relação texto/música sobre dois termos poéticos – amor e morte – através da qual foi possível concluir como se deu o amadurecimento da escrita do compositor e a relevância de seu ideal poético como ferramenta interpretativa.

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ABSTRACT

The six Italian madrigals books of Carlo Gesualdo present a close connection be-tween music and text. The manipulation made by the composer in the poems that would serve as basis for his music evidences his search for a certain text format. Through the analysis of these changes it was possible to characterize his poetic ideal and relate it directly to his musical conception, aiming a more comprehensive understanding of the expression of this group of works. To reach this result, the historical context was studied, especially the one of the city of Ferrara and its im-portance in the work of this composer. Also, the various aspects of his musical writ-ing, the Mannerism and its relation to the late Italian madrigal were approached. In order to confront this information, it was done an analysis of the relation text / mu-sic on two poetic terms - love and death - through which we concluded how was the maturing process of the composer’s writing, and the relevance of his poetic

ideal as an interpretive tool.

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xi SUMÁRIO

RESUMO ... vii

ABSTRACT... ix

AGRADECIMENTOS ... xvii

LISTA DE FIGURAS ... xix

INTRODUÇÃO ... 1

1. ASPECTOS HISTÓRICOS ... 9

1.1. Ferrara ... 9

1.1.1. Desenvolvimento político da cidade de Ferrara ... 11

1.1.2. As Influências musicais e culturais da primeira metade do século XV ... 15

1.1.3. O governo de Ercole I e a contratação de Josquin Des Prez ... 17

1.1.4. O mecenato de Ippolito d`Este e as influências de Adrian Willaert ... 21

1.1.5. A permanência de Cipriano da Rore ... 23

1.1.6. Carlo Gesualdo ... 25

1.1.7. A saída da corte d`Este da cidade de Ferrara ... 28

1.2. A Arte do Maneirismo ... 29

1.2.1. Termo e conceito de Maneirismo ... 31

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xii

1.2.3. Música do Maneirismo ... 38

1.3. O Madrigal Italiano Tardio ... 41

1.4. Considerações ... 53

2. O IDEAL POÉTICO ... 57

2.1. Os poetas de Gesualdo ... 59

2.2. O madrigal como estilo poético ... 69

2.3. O ideal poético de Gesualdo ... 71

2.4. Considerações ... 95

3. A MÚSICA ... 99

3.1. Estrutura Harmônica ... 100

3.2. Reflexões sobre a linguagem modal de Gesualdo e seu tempo ... 108

3.3. Cadências ... 113

3.4. A Escrita Cromática ... 123

3.5. Considerações ... 135

4. TEXTO E MÚSICA ... 139

4.1. Amor e Morte nos madrigais de Gesualdo ... 147

5. UM ESTUDO INTERPRETATIVO ... 175

5.1. – Considerações sobre a interpretação ... 176

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xiii

CONCLUSÃO ... 211

BIBLIOGRAFIA ... 217

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xv

À minha Beatriz, inspiração para tudo que faço. Com amor.

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AGRADECIMENTOS

À FAPESP, Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo, pelo finan-ciamento desta pesquisa;

Ao Prof. Dr. Carlos Fernando Fiorini, por toda a dedicação, competência e amiza-de com que orientou o meu trabalho amiza-de pesquisa amiza-desamiza-de o mestrado.

Ao grupo de pesquisa Camerata Anima Antiqua, cuja importância para este estudo está muito além dos ensaios que me concedeu fazer com alguns madrigais de Gesualdo.

À Professora Dra. Mila De Santis da Università degli Studi di Firenze, por propor-cionar um estágio que me desvendou muitas características da poesia do Renas-cimento.

À Professora Concetta Anastasi e ao Conservatorio Luigi Cherubini di Firenze, por me permitir dois meses de imersão total na obra de Carlo Gesualdo que resulta-ram em dois Concertos públicos à frente do Coro do Conservatório que foresulta-ram mui-to valiosos para mim.

Ao Professor Marco Mangani da Università degli Studi di Ferrara, pelo interesse que demonstrou por esta pesquisa e pelos comentários precisos que fez sobre o assunto.

Aos funcionários da Biblioteca Berenson em Firenze, pela gentileza e atenção com que me receberam.

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xviii

A todos os funcionários da Biblioteca do Instituto de Artes da UNICAMP, especi-almente a Silvia, que sempre me auxiliou.

Aos amigos mais experientes que sempre se colocaram a disposição para me aju-dar na trajetória da pós-graduação, especialmente, Alexandra van Leeuwen, Dani-ela Lino e Fábio Scarduelli.

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LISTA DE FIGURAS

Figura 1 - Veduta del Castello Estense ... 11

Figura 2 - Il Perdono di Carlo Gesualdo ... 25

Figura 3 - O Rapto da Sabina ... 35

Figura 4 - Dalle odorate spoglie - Livro II - c. 1 a 3 ... 103

Figura 5 - Ancidetemi pur, grievi moartiri - Livro III - c. 7 a 11 ... 104

Figura 6 - Io Parto – Livro VI - c. 1 a 5... 105

Figura 7 - Moro, Lasso Al Mio Duolo - Livro VI - c. 1 a 3 ... 107

Figura 8 - Ma se avverrà ch’io moia - Livro II - c. 18 a 21... 115

Figura 9 - Arde il mio cor - Livro IV - c. 19 a 21 ... 116

Figura 10 - Che fai meco, mio cor – Livro V - c. 30 a 31 ... 117

Figura 11 - Dolce spirto d’Amore - Livro III - c. 7 a 8 ... 118

Figura 12 - Tirsi Morir Volea - Livro I - c. 21 a 22 ... 119

Figura 13 - Se così dolce è il duolo - Livro II - c. 12 a 13 ... 120

Figura 14 - Mercè grido piangendo - Livro V - c. 30 a 33 ... 121

Figura 15 - Occhi del mio cor vita - Livro V - c. 43 a 45 ... 122

Figura 16 - A voi, mentre il mio core - Livro IV - c. 8 a 9 ... 126

Figura 17 - A voi, mentre il mio core - Livro IV - c. 11 a 12... 127

Figura 18 - O mal nati messaggi - Livro III - c. 29 a 32 ... 128

Figura 19 - O mal nati messaggi - Livro III - c. 17 ... 129

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Figura 21 - Ancide sol la morte - Livro VI - c.37 e 38 ... 131

Figura 22 - Resta di darmi noia - Livro VI - c.7 e 8 ... 132

Figura 23 - Itene, o miei sospiri - Livro V - c.19 e 20 ... 133

Figura 24 - Gioite voi col canto - Livro V - c.22 e 23 ... 134

Figura 25 - Amor, pace non chero – Livro I – c. 1 - 2 ... 148

Figura 26 - Nè tien face o saetta – Livro II – c. 9 - 10 ... 149

Figura 27 - Ahi, troppo saggia nell’errar – Livro I – c. 11 - 14 ... 150

Figura 28 - Candida man – Livro II – c. 27 - 30 ... 151

Figura 29 - Del bel de’bei vostri occhi – Livro III - c. 25 – 31 ... 152

Figura 30 - Che fai meco, mio cor – Livro IV – c. 5 – 7... 154

Figura 31 - Se chiudete nel core – Livro IV – c. 1 – 4 ... 155

Figura 32 - Alme d’Amor rubelle – Livro VI – c.1 - 2 ... 157

Figura 33 - Quel no crudel che la mia speme – Livro VI – c. 43 – 48 ... 159

Figura 34 - Baci soavi – Livro I – c. 19 – 21 ... 160

Figura 35 - Ma se avverrà ch’io moia – Livro II – c. 11 – 13 ... 161

Figura 36 - Come esser può ch’io viva – Livro I – c. 33 - 34... 162

Figura 37 - Languisco e moro – Livro III – c.13 – 18 ... 163

Figura 38 - Languisco e moro – Livro III – c. 25 – 28 ... 164

Figura 39 - Ivan dunque o crudele – Livro IV – c. 24 - 29 ... 165

Figura 40 - Mille volte il dì moro – Livro VI – c. 42 - 48 ... 167

Figura 41 - Moro, lasso, al mio duolo – Livro VI – c. 31 – 36... 168

Figura 42 - Moro, lasso, al mio duolo – Livro VI – c. 1 – 3... 170

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Figura 44 - S’io non miro non moro – Livro V – c. 27 – 30 ... 172

Figura 45 - Dolcisima mia vita – Livro V – c. 34 - 45 ... 173

Figura 46 - Baci, soavi e cari – Livro I – c. 1 – 5 ... 177

Figura 47 - Amor, pace non chero – Livro I – voz I – c. 1 – 2 ... 179

Figura 48 - Amor, pace non chero – Livro I – voz 1 – c. 1 – 2 ... 180

Figura 49 - Del bel de’bei vostri occhi – Livro III – voz I – c. 26 - 31 ... 180

Figura 50 - Del bel de’bei vostri occhi – Livro III – c. 25 – 31 ... 181

Figura 51 - Quel no crudel che la mia speme – Livro VI – c. 43 – 48 ... 182

Figura 52 - Ahi, troppo saggia nell’errar – Livro I – c. 11 - 14 ... 183

Figura 53 - Se chiudete nel core – Livro IV – c. 1 – 3 ... 184

Figura 54 - Alme d’Amor rubelle – Livro VI – c. 1 - 2 ... 185

Figura 55 - Io Parto – Livro VI – vozes: II,III,IV e V c.1 - 3... 186

Figura 56 - Si gioioso mi fanno i dolor miei – Livro I – Voz I e II - c. 17 - 21 ... 187

Figura 57 - Moro, lasso, al mio duolo – Livro VI – c. 31 – 36... 189

Figura 58 - Moro, lasso, al mio duolo – Livro VI – c. 1 – 3... 190

Figura 59 - Luci serene e chiare – Livro IV – c. 47 – 52 ... 192

Figura 60 - Dolcisima mia vita – Livro V – c. 34 – 45 ... 194

Figura 61 - Luci Serene e Chiare – Livro IV - c. 3 - 6 ... 200

Figura 62 - Luci serene e Chiare – Livro IV - c. 13 - 18 ... 200

Figura 63 - Luci Serene e Chiare – Livro IV - c.1 – 2 ... 206

Figura 64 - Luci Serene e Chiare – Livro IV - c. 6 ... 207

Figura 65 - Luci Serene e Chiare – Livro IV - c. 18 – 19 ... 207

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xxii

Figura 67 - Luci Serene e Chiare – Livro IV - c. 11 - 12 ... 209 Figura 68 - Luci Serene e Chiare – Livro IV - c. 1 a 3 ... 210

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xxiii

La poesia è musica allo stadio embrionale

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INTRODUÇÃO

O Renascimento artístico produziu um dos repertórios musicais mais ri-cos de toda a história. Os compositores daquele período tiveram o papel de trans-formar a música dos ambientes religiosos da idade média, essencialmente monó-dica e modal, em uma polifonia complexa e sofisticada que fizesse jus ao novo ambiente do Renascimento. No caminho que esta música percorreu entre os mo-tetos de Dufay (ca.1400-1474) até os madrigais de Monteverdi (1567-1643), é possível identificar um desenvolvimento compreensível, cujos avanços técnicos eram coerentes a cada passo. Mas como todo desenvolvimento histórico, há pon-tos em que o caminho esperado surpreende, apresentando fenômenos inespera-dos. A obra do compositor italiano Carlo Gesualdo pode ser apresentada como um destes momentos, em que seu perfil estético é inovador até mesmo para os pa-drões do nosso tempo.

O compositor, que nasceu em 1566 e faleceu em 1613, traz em sua bi-ografia elementos pouco comuns. Membro de uma das famílias mais ilustres do século XVI, Gesualdo combinava o poder que tinha de fato, alcançado através de sua riqueza e dos nobres títulos que possuía, com a fama de ser um “príncipe compositor”, fama esta que o tornou um dos homens mais conhecidos de seu tempo. Soma-se a isto o enredo biográfico que se envolveu após ter cometido um famoso “crime de honra”, quando assassinou sua primeira esposa, Maria D’Avalos, conhecida como a mais bela dama do reino de Nápoles, e seu amante, o também nobre, duque Fabrizio Carafa (IUDICA, 1993, p.79). Todos estes ele-mentos fizeram de sua biografia um ícone do século XVI a qual é preservada por inúmeros registros documentais. Apesar de todo o peso desta história pessoal, foi em sua obra como compositor que Gesualdo se afirmou como um marco do Re-nascimento e mais de 400 anos depois de sua morte ainda é uma fonte de estu-dos a ser explorada.

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O catálogo de suas obras contempla dois livros de motetos, Sacrae Cantiones, de 1603, um livro de motetos para a semana santa, intitulado Respon-soria de 1611, e os seis livros de madrigais italianos publicados originalmente en-tre 1594 e 1611. São nestes últimos que encontramos a parte mais extensa e sig-nificativa de sua produção. Algumas composições avulsas de sua juventude, e outras instrumentais, são encontradas em edições independentes, mas sua fama foi mesmo conquistada através de sua obra madrigalesca.

Somando os seis livros, têm-se ao todo 125 madrigais italianos com-postos para cinco vozes, com apenas duas exceções que foram escritas para seis partes. Encontramos neles todas as principais características da escrita polifônica do Renascimento e a relação estreita entre música e a poesia humanista. Mas, apesar desta caracterização estar de acordo com o repertório daquele período, o contato direto com estas obras se mostra complexo, tanto para o intérprete quanto para o ouvinte. A escrita musical utilizada e desenvolvida pelo compositor se torna um desafio aos músicos de nosso tempo, graças ao virtuosismo técnico e a uma linguagem única e sofisticada. Foram estas inovações da linguagem que transfor-mam a obra em um ponto fora do caminho natural da música do Renascimento, ao mesmo tempo em que a coloca como uma referência daquela fase artística.

O discurso harmônico que a música promove é a característica mais marcante em uma primeira abordagem. Sua escrita cromática, que é constante nas obras, vai se intensificando ao longo dos livros e o caracterizando como um repertório repleto de efeitos sonoros. Estas construções musicais inesperadas es-tão intrinsecamente ligadas à expressão textual das peças. Gesualdo elabora sua música a partir do poema utilizado, mas também se diferencia dos demais compo-sitores do período por manipular previamente estes textos, alterando-os até en-contrar a forma que julgava ideal para sua música. Esta busca por um poema que lhe agradasse constitui o seu ideal poético.

A partir destes elementos da obra e sua inserção no período em que foi composta, propomos um estudo que estabelecesse uma relação entre o ideal poé-tico e a escrita musical dos madrigais. O objetivo deste estudo é identificar,

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atra-3

vés deste ideal, as intenções expressivas do compositor e como ele as colocou na sua música, ampliando a compreensão desta linguagem e as possibilidades inter-pretativas.

Desde o início desta pesquisa ficou clara a importância de se contex-tualizar historicamente o período referente à obra de Gesualdo, levando em conta mais o entorno ao compositor do que seus eventos pessoais. Grande parte da bi-bliografia existente sobre o assunto se dedica mais aos fatos biográficos do que as questões relevantes ao seu ambiente artístico. No entanto, o universo no qual Ge-sualdo estava inserido apresenta as maiores contribuições para o estudo de sua obra, especialmente através da convergência existente entre a escrita musical empregada e o ambiente artístico da cidade de Ferrara em fins do século XVI, que se revelou a chance de interagir esta obra com um universo exterior maior.

Gesualdo se ligou à cidade de Ferrara durante um período importante de sua vida como compositor, e muito de suas características estilísticas que eram vistas como incomuns e, em alguns casos, relegadas a excessos e excentricida-des, fazem mais sentido quando inseridas na rotina musical e poética daquela ci-dade. Orientado por esta evidência, relacionamos o desenvolvimento artístico da corte da cidade com o desenvolvimento da escrita madrigalesca de Gesualdo.

O período em que a obra foi composta, fins do século XVI, traz uma particularidade, a diferenciação de um segmento artístico dentro do Renascimen-to, intitulado como Maneirismo. Suas origens estéticas estão nas artes plásticas, especialmente na escultura e na arquitetura, mas a relação que faz com a lingua-gem musical e poética resulta em conceitos que auxiliam na compreensão geral deste repertório. O madrigal italiano é considerado a principal expressão do Ma-neirismo na música, principalmente pela liberdade artística que este gênero confe-ria aos compositores. Sua linguagem experimental e harmonicamente ousada está de acordo com os principais conceitos que caracterizam esta corrente estilística. No caso específico dos madrigais de Gesualdo encontramos uma relação ainda mais intensa, pois as definições da música do Maneirismo e de seus madrigais se confundem. Incluir esta obra em um universo estético maior que o próprio

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compo-4

sitor e poder compará-lo com elementos de outros compositores e outras lingua-gens, mostrou-se valioso para este estudo.

Apesar do interesse que este caráter experimental da obra e seus ele-mentos estilísticos inovadores despertam, foi mesmo na relação construída entre a música e a poesia que encontramos a parte mais importante desta pesquisa. Toda a música do Renascimento foi construída através desta relação, em que as ima-gens descritas pelo texto poético eram retratadas na música. No entanto, Gesual-do foi além que os demais compositores de seu tempo por assumir para si o Gesual- do-mínio do texto. Foi possível, através de comparações documentais, comprovar e observar as alterações que o compositor operou em alguns textos que escolheu para ser base de seus madrigais. Estas comparações demonstraram que sua atu-ação nos textos foi aumentando, desde pequenas alterações de termos e inver-sões de frases até reescrever, ele mesmo, os poemas inteiros. Ficou cada vez mais evidente que esta busca por uma forma específica de poema que o fazia al-terá-los, em alguns casos de forma drástica, era motivada por uma predileção tex-tual que tinha. Conhecer esta sua preferência poética e conseguir caracterizá-la esteticamente nos revelou muito sobre suas intenções musicais.

A falta de relações externas ao compositor contribuiu para a relevância de se investigar este ideal poético. Sua posição de nobre lhe conferia uma situa-ção distinta entre os demais compositores, pois ele não necessitava ter laços em-pregatícios ou de servilismo com nenhuma instituição. Até mesmo sua relação com a doutrina católica e sua produção de música sacra era distinta, pois o com-positor estava próximo dos mais altos cargos dentro da hierarquia da igreja e tinha garantido sua independência de escolhas. Esta situação permitia a ele elaborar um repertório que não precisava seguir um tipo de tendência estética específica, tornando-se cada vez mais pessoal e dedicado a seus próprios anseios artísticos. A partir da caracterização de seu ideal poético foi possível chegarmos até esses seus anseios.

A obra composta por Gesualdo não se revela unicamente pelos ele-mentos estilísticos e poéticos. A própria linguagem musical empregada pelo

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positor nos apresenta características desafiadoras. Todo o repertório do Renasci-mento se localiza em meio à transição dos sistemas de composição modal/tonal. Muitos dos avanços técnicos que os compositores daquele período propiciaram à arte musical se deram na direção desta transição, que só iria se concretizar efeti-vamente a partir do século XVII. Seus madrigais se distanciam deste processo transitório por não apontar, em sua estrutura harmônica, o caminho natural do to-nalismo que viria na sequência.

Gesualdo os constrói utilizando elementos dos dois sistemas, mas ino-va ao utilizar em conjunto a eles construções musicais que não se alinham a ne-nhum deles, e reserva a estes trechos as passagens de maior expressividade e tensão narrativa. O uso recorrente da escrita cromática e o aumento de sua impor-tância ao longo dos livros estão diretamente relacionados com esta inovação. A caracterização deste terceiro sistema utilizado vem sendo desenvolvida pela mu-sicologia especializada desde a década de 60 do século XX e foi denominado, pelo estudioso Edward Lowinsky, como “harmonia do século XVI”, ou “atonalismo triádico” (1961). Mas o desenvolvimento de seu estudo ainda merece atenção, por ser um segmento musical bastante restrito a alguns compositores daquelas déca-das finais do século.

O uso que o compositor fez da tradição modal em seus madrigais expli-ca muito de sua técniexpli-ca. São inúmeros os trechos em que se observa construções genuinamente modais, em que o uso de cadências características e processos imitativos equilibrados e simétricos não deixam dúvidas de seu domínio sobre esta linguagem. O mesmo se observa em outros trechos claramente tonais, ou pelo menos, próximos do que poderia ser considerado assim naquela época. O que interliga estes trechos e nos revela as intenções do compositor é a relação com a narrativa poética. A música concebida pelo compositor se utiliza da aproximação e do afastamento das resultantes musicais esperadas, sejam elas modais ou tonais, como forma de chamar a atenção de seu ouvinte, ou seja, como uma ferramenta retórica.

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Diante destes elementos, necessitava-se de uma abordagem interpreta-tiva em que os resultados provenientes destas reflexões pudessem atuar em con-junto. Para isto, os livros de madrigais foram primeiramente reorganizados em três fases cronológicas que evidenciam como se deu o amadurecimento deste estilo. A partir desta reorganização, concentrou-se o estudo na interação entre a música e o texto.

Direcionando o estudo especificamente para a questão textual, encon-tramos as bases para caracterizar o ideal poético do compositor que se mostrou uma importante ferramenta para o entendimento de suas intenções artísticas. Sua caracterização foi possível mediante a análise das alterações efetuadas por ele ao longo de seus livros de madrigais. Gesualdo tinha por prática adaptar o poema que iria utilizar como base para suas obras, adequando-o às suas preferências textuais. Este processo, denominado aqui de manipulação textual, foi se aprofun-dando ao longo do amadurecimento do compositor a ponto de se observar, na fa-se central, que o poema utilizado estava tão alterado do fa-seu original que fa-se torna-ra outro texto. Identificou-se nesta análise das altetorna-rações que existia uma coerên-cia estética que evidencoerên-ciava uma predileção poética do compositor. A caracteriza-ção destas preferências estéticas nos permitiu traçar o ideal poético do composi-tor.

Dentro deste ideal poético encontramos alguns temas recorrentes. No geral, são temas estreitamente ligados ao universo amoroso, cuja conceituação apresenta uma simplicidade inicial, porém, seu uso por parte de Gesualdo os tor-nam complexos ao longo da obra. Estes temas principais se traduzem a partir de dois termos poéticos: amor e morte.

Ambos os termos apresentam paradoxos conceituais que foram larga-mente utilizados pelo compositor em sua elaboração musical. O termo amor traz em si a dualidade de ser a fonte de alegrias e prazeres, o amor correspondido, ao mesmo tempo em que se torna a origem de todos os tormentos sentimentais, quando se configura como o amor trágico. Aliado a isto, temos a origem primeira do termo morte como sendo a interrupção da vida, e também sua vertente mais

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utilizada pelo compositor, que é a morte como expiação do sofrimento, ou a “morte desejada”. Amparado pela infinidade de imagens e cenas narrativas dúbias e complexas que estes dois termos renderam à narração poética, Gesualdo constrói as bases de seu universo amoroso.

Através da análise do uso destes termos foi possível identificar determi-nadas ferramentas musicais utilizadas pelo compositor para se alcançar efeitos expressivos e também diferenciar com mais propriedade o amadurecimento de sua escrita e caracterizar individualmente cada uma das três fases de sua compo-sição. Criou-se, assim, um conjunto básico de informações que podem servir co-mo parâmetros para futuras incursões por estas obras. A observação de alguns trechos característicos que são recorrentemente identificados na obra também nos permitiu que algumas considerações sobre questões interpretativas pudessem ser feitas.

Os madrigais que compõe os seis livros de Gesualdo são obras com-plexas que representam um período artístico marcado pelo virtuosismo técnico e expressivo. Os resultados oriundos das discussões e observações que contem-plam esta pesquisa permitiram o aprofundamento de uma visão interpretativa que ressalte o valor artístico deste conjunto de obras.

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1. ASPECTOS HISTÓRICOS

Os madrigais italianos de Carlo Gesualdo (1566-1613), compostos na fase final do período do Renascimento, apresentam características específicas a este momento histórico que exigem um olhar diferenciado. Sua contextualização histórica e estilística será abordada neste capítulo.

Inicialmente, será apresentado um levantamento histórico sobre a cida-de cida-de Ferrara, local oncida-de Gesualdo passou o período mais importante cida-de sua vida como compositor e recebeu importante influência artística. Também conterá uma reflexão acerca do estilo artístico no qual sua obra se insere. Por se tratar do final do Renascimento, um período de transformações sociais e estéticas, a arte produ-zida neste momento recebe uma classificação diferente, denominada Maneirismo. A inclusão do repertório de Gesualdo neste segmento artístico e a identificação desta estética na música do compositor também são tratadas neste texto.

O Madrigal Italiano é o gênero musical ao qual o compositor mais se dedicou. Sua importância para a música do período e suas diferenças da forma mais tardia, que Gesualdo utilizou, serão discutidas e analisadas.

1.1 Ferrara

O desenvolvimento da arte do Renascimento foi financiado em grande parte pela estrutura de mecenato que se construiu na época. A sociedade passava por uma profunda transformação saindo das pequenas estruturas do feudalismo e organizando-se em polos maiores, o que resultaria nos estados modernos do sé-culo XVIII. A figura do mecenas, dotado de dinheiro vindo das trocas comerciais cada vez mais crescentes e lucrativas, transforma-se na principal opção de

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cínio cultural. A igreja católica que sempre foi a responsável por patrocinar e em-pregar os artistas continua, neste tempo, seu papel de preponderância, mas as diversas crises políticas e religiosas envolvendo seus dirigentes somadas a refor-ma protestante e a consequente contra-reforrefor-ma torefor-maram parte considerável de sua atenção no período e favoreceram o fortalecimento de outras vias de desen-volvimento artístico. Encontramos, então, nos séculos que formam o período do Renascimento as famílias de mecenas que promoveram o desenvolvimento artís-tico do período.

Essas famílias patrocinavam a classe artística e preenchiam o espaço de poder que ficara vago entre a decadência do senhor feudal e o que viria a ser o rei dos estados modernos. Seu domínio avançava no campo político e econômico transformando as cidades importantes em pequenos estados auto-suficientes com governo local e estruturas completas de corte e exército. Assim, desenvolveram-se situações como a da família Medici que governou a importante cidade de Flo-rença entre o século XV até o XVIII, ou da família Sforza que governou Milão entre 1395 até sua tomada pelos Espanhóis em 1540. O poder conquistado por essas cortes extrapolava os limites da cidade envolvendo questões maiores como o co-mércio de toda a região Italiana e mesmo o poder papal, pois, muitas famílias ad-quiriam o poder e prestígio de nomear papas de sua linhagem. Estes fatores resul-tavam em grandes rivalidades entre elas e verdadeiras guerras entre as cidades vizinhas.

Mas para o estudo do desenvolvimento artístico do período, em especi-al, o desenvolvimento da música do Renascimento, a corte da família d`Este em Ferrara chama atenção pelo prestígio e sofisticação que alcançou. Nesta cidade localizada ao norte da península italiana encontraremos, nos anos de dominação d`Este, uma lista de compositores, escritores, poetas e pintores que, juntos, con-tam a historia da arte do Renascimento. Para o estudo específico da música, iden-tificamos uma linha estilística desenvolvida dentro da cidade que vai do início do Renascimento com o compositor Guillaume Dufay (ca. 1400-1474) até o apogeu da escrita madrigalista tardia com o italiano Carlo Gesualdo.

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1.1.1. Desenvolvimento político da cidade de Ferrara

Figura 1 - Veduta del Castello Estense1

A presença da família d`Este em Ferrara data por volta de 1240, quan-do a cidade ainda era um pequeno povoaquan-do situaquan-do no Vale quan-do Pó. Sua localiza-ção conferiu ao povoado, desde os primeiros tempos, uma importância política considerável, mas as estruturas sociais que organizavam o período não permitiam o desenvolvimento da localidade. A situação começa a mudar no século XIV quando as trocas comerciais que se expandiam em todas as cidades italianas propiciaram um excedente financeiro que seria o diferencial para transformar esta, e outras cidades, em pólos de importância política comparável a um estado.

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A corte da família d`Este governou efetivamente a região por mais de dois séculos, e foi a responsável por transformar a cidade em um ducado impor-tante e respeitado, a ponto de no final do século XVI ter sido anexada aos estados papais depois de disputas políticas e econômicas. O fator que mais chama aten-ção no caso específico de Ferrara foi o desenvolvimento artístico e intelectual que ocorreu. O ambiente esteticamente avançado que se alcançou foi resultado de expressivos investimentos que a corte promoveu desde o início de seu reinado.

A construção desta estrutura intelectual privilegiada começou antes da ascensão ao poder dos d`Este, pois data do início do século XIV, com a criação de uma universidade e uma biblioteca (LOCKWOOD, 2009, p.10). Nota-se a impor-tância destes fatos se levado em consideração o período a que ele remonta, uma vez que a obtenção de livros na época era privilégio de poucas organizações, e a difusão do conhecimento estaria quase que exclusivamente a cargo da igreja cató-lica e seus membros, sendo a presença de uma universidade e uma biblioteca em Ferrara um fato relevante para sua história.

O primeiro importante estadista d`Este a governar a cidade foi Niccolò III (1393-1441), assumindo sua função em 1420, quando a cidade ainda não se constituía em ducado. Sob sua tutela os primeiros músicos chegaram à região, entre eles alguns importantes instrumentistas de sopros, principalmente trompetis-tas, mas foi com a contratação do compositor Guillaume Dufay que a corte de Fer-rara começou a fazer parte da história da música. Também data de seu governo a chegada de Guarino de Verona (1374-1460) que seria o primeiro dos grandes no-mes humanistas que se mudariam para a Ferrara e ajudariam a construir a fama da cidade, entre eles destacam-se Torquato Tasso (1544-1595) e Ludovico Ariosto (1474-1533).

O sucessor de Niccolò III foi seu filho Leonello (1407-1450), que dirigiu a cidade por apenas nove anos, entre 1441 e 1450. Mas esse tempo foi o suficien-te para que ele fundasse o grupo Cappella di Corti, grupo de cantores que influen-ciariam o desenvolvimento da música vocal de Ferrara assim como o gosto da corte por essa formação musical. Sua criação foi importante para o

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mento dos dois principais gêneros musicais do Renascimento em Ferrara, o mote-to e o madrigal italiano. A manutenção e desenvolvimenmote-to da Cappella pela família d`Este também influenciou nas contratações dos melhores cantores que haviam disponíveis no momento, e, portanto, ajudou na consolidação de um ambiente musical de alto nível técnico.

Com a morte de Leonello, assume o poder Borso d`Este (1413-1471) que governaria a cidade entre 1450 e 1471. Foi em seu período que o título de ducado foi concedido à cidade, tornando Borso o primeiro duque de Ferrara. Esse período evidencia um predomínio de instrumentistas na corte, em detrimento dos cantores que lá haviam. Destaca-se a contratação de Pietrobono Del Chitarino (1417-1497), lutenista, considerado na época o melhor instrumentista de seu tem-po (EINSTEIN, 1971, p.8).

No entanto, foi com a ascensão de Ercole I (1431-1505) em 1471 que Ferrara conheceria o seu apogeu político, econômico e, consequentemente, artís-tico. O duque, que era um intelectual muito interessado nas artes e dedicou parte de seu tempo em viajar e conhecer outras culturas, foi o responsável por transfor-mar a corte da cidade em um disputado centro artístico. Uma das passagens mais significativas de sua biografia é a viagem que fez até Paris onde conheceu a mú-sica realizada na igreja de Notre Dame. Este contato fez com que, posteriormente, Ercole criasse o primeiro coro duplo de Ferrara, com homens e meninos, além de atrair e contratar para sua corte os músicos Jacob Obrecht (1457-1505) e Josquin Des Prez (ca. 1445-1521), concentrando assim o que temos de mais significativo em todo o período.

Na sucessão de Ercole I nos deparamos com duas figuras importantes, Alfonso I (1476-1534) que governará a cidade entre 1505 e 1534, e Ippolito I (1479-1520) que ficou conhecido como Cardeal Ippolito, por entrar para o colégio dos cardeais em Roma. Neste período Ferrara adquiriu mais prestígio e importân-cia política, além de atrair compositores como Antoine Brumel (1460-1513) e Adri-an Willaert (ca.1490-1562). Destaca-se também o casamento de Alfonso I com

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Lucrezia Borgia, conhecida personagem do período com importantes ligações ar-tísticas.

Os dois últimos representantes da família d`Este a ter o controle da ci-dade foram Ercole II (1508-1559) entre 1534 e 1559 e Alfonso II (1533-1597) entre 1559 a 1597. E foi nestas últimas décadas do século XVI que a cidade se afirmou como exemplo de centro musical avançado, desenvolvendo experimentações harmônicas que resultariam em correntes estéticas específicas dentro da música do Renascimento. Estas correntes artísticas de tão avançadas e específicas a es-ta época que são, acabam gerando dificuldades na sua classificação nos dias de hoje. Os compositores mais importantes dessa fase final são Cipriano da Rore (1515-1565), Luca Marenzio (1553-1599), Luzzasco Luzzaschi (1545-1607) e Car-lo Gesualdo, que juntos, edificaram o que hoje conhecemos como Música do Ma-neirismo.

Em 1598 o papa Clemente XVIII alega a ilegitimidade da sucessão ao trono dos d`Este e não reconhece mais o governo da família no ducado. Seus exércitos papais passam a sitiar a cidade e exigir a renúncia da família que aban-dona a cidade e passa a residir em Modena, cidade que fazia parte do ducado.

Com a saída dos d`Este Ferrara deixa de ser um centro de intelectuais e no desenvolver da arte barroca não exercerá mais o papel de protagonismo ar-tístico que tinha. Mas a trajetória dos compositores que ali estiveram e o desen-volvimento da música que produziram são suficientes para traçar uma linha lógica que demonstra o desenvolvimento técnico do Renascimento. Além disso, a suces-são dos compositores que residiram em Ferrara entre os séculos XV e XVI e suas respectivas obras são importantes indícios do caminho musical que propiciaria o surgimento da música tardia do Renascimento, em especial, a obra de Carlo Ge-sualdo.

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1.1.2. As Influências musicais e culturais da primeira metade do século XV

A primeira parte do século XV foi importante para a cidade de Ferrara por preparar as bases de sua vida cultural. A corte da família d`Este ainda se es-tabelecia como governo na cidade e já apresentava indícios do desenvolvimento que imprimiria. O primeiro governante, Niccolò III, demonstra seu interesse para com as propostas humanistas quando confia a educação de seu filho, Leonello, a Guarino de Verona. Esse famoso humanista da época inaugurou em Ferrara o estudo das línguas clássicas, em especial o grego, além de fornecer ao sucessor do trono uma ampla formação em gramática, retórica e moral filosófica (LOCKWOOD, 2009, p.30).

Para o cronista da segunda metade do século XV Johannes Ferrarien-sis, Leonello tinha uma formação cultural rara, e isso contribuía para o desenvol-vimento do círculo intelectual da cidade (LOCKWOOD, apud FERRARIENSIS, 2009, p.30).

Em 1436 outro fato mudaria o ritmo intelectual da cidade, pois nesse ano iniciou-se os contatos entre Niccolò III e o Papa Eugenio IV (1383-1447) para organizar a transferência do Concilio da Basiléia, iniciado em 1431, para Ferrara. A mudança da sede do Concílio se deu no ano seguinte, 1437, mediante o inves-timento financeiro que Niccolò III aceitou fazer, mas já em 1439 houve nova mu-dança para Florença.

O encontro ecumênico, que visava à reconciliação da igreja romana com a igreja ortodoxa grega, não apresentou resultados significativos nos seus propósitos, mas foi importante para a vida cultural da cidade. A presença em Fer-rara de Guarino foi decisiva para a escolha da cidade como sede do evento, uma vez que ele foi o principal intérprete entre os lideres gregos e os integrantes da igreja católica. Durante as negociações e organizações do concílio, Ferrara rece-beu pela primeira vez a visita do compositor Guillaume Dufay, em maio de 1437 (idem, p.33).

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Um importante traço da cultura italiana no século XV foi a presença constante de artistas vindos de outras regiões, e durante várias décadas deste século suas cidades não produziram nenhum músico de expressão genuinamente italiano. Porém, absorveu e estimulou nomes vindos de outras partes do continen-te, especialmente os músicos vindos do reino da Borgonha, ou franco-flamengos, como eram conhecidos. Esses compositores representam a principal corrente de composição do Renascimento. Por esse motivo temos como o primeiro nome im-portante a ter relações com a corte d`Este, o compositor borgonhês Guillaume Dufay.

O local de nascimento de Dufay não é conhecido, mas a base de sua educação foi dada na cidade de Cambrai, que fazia parte dos países baixos até ser anexada ao reino da França em 1678. Dufay iniciou sua vida musical como menino cantor e logo passou a viver nas cidades italianas, incluindo Roma e Flo-rença, como se tornou comum aos compositores franco-flamengos (BROWN, 1976, p.27). Sua obra é considerada a principal expressão da transição do Medie-val para o Renascimento por conter elementos da nova relação entre música e texto que marcaria esta transição estilística. Apesar de sua estreita ligação com Ferrara, o compositor nunca residiu oficialmente na cidade, mas seu contato com os membros da família d`Este era muito próximo, sendo inúmeras as obras que o compositor dedicou a seus integrantes. O mais conhecido exemplo é a balada C`est bien raison, que Dufay dedicou a Niccolò III.

As características da escrita musical de Dufay representam bem a mú-sica do início do Renascimento e também o desenvolvimento da polifonia neste momento. Temos a base do moteto isorrítmico com um maior controle das textu-ras homogêneas e a presença de tríades, ou seja, com o intervalo de terça pre-sente. Esse procedimento que é novo, tendo em vista a escrita medieval, abriu possibilidades para um direcionamento harmônico que seria desenvolvido pela escrita dos franco-flamengos. Também encontramos em Dufay uma maior liberda-de com os contextos rítmicos, elaborando contornos suaves e mais inliberda-depenliberda-den- independen-tes. Seu controle das dissonâncias tornou-se uma importante característica desta

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fase do Renascimento. O compositor escreveu chansons, motetos e missas, al-gumas das quais bastante executadas até hoje. Seu estilo de composição ficou conhecido como um exemplo da primeira geração dos franco-flamengos.

Diante do conhecimento que temos das estreitas relações de Dufay com a corte de Ferrara, e a existência de inúmeras obras dedicadas por ele aos integrantes desta corte, podemos assumir suas características musicais como in-fluências musicais presentes nos primeiros anos da família d`Este na cidade de Ferrara e, assim, traçar o panorama musical da primeira metade do século XV.

1.1.3. O governo de Ercole I e a contratação de Josquin Des Prez

Os anos em que Ferrara esteve sob o governo de Ercole I, entre 1471 e 1505, representariam a fase mais movimentada, política e artisticamente. O du-que, que era filho de Niccolò III, recebeu sua educação em Nápoles e teve grande instrução nas artes militares e políticas, mas desde cedo demonstrou seu interes-se pelas ideias humanistas, o que ajudaria a torná-lo um dos nobres mais impor-tantes para o Renascimento Italiano (TUOHY, 2002, p.534).

Ercole assume o trono de Ferrara após a morte de seu meio irmão Bor-so, que havia feito um curto governo em Ferrara priorizando a música instrumen-tal. Os seus primeiros anos de governo foram marcados pelas crises políticas e guerras enfrentadas por Ferrara, em especial a guerra com a República de Vene-za, entre 1482 e 1484. Mas foi nos últimos anos de sua vida que Ercole propiciou os fatos mais relevantes para a vida intelectual de Ferrara.

A maturidade do duque representa a fase de maior tensão espiritual de sua vida. Alguns fatos demonstram claramente seu descontentamento com a igre-ja católica, instituição na qual ocupa um papel de destaque, por ser um nobre. Sua aproximação pública com o padre dominicano e reformador Girolamo Savonarola (1452-1498) foi relevante para a tomada de posição de Ercole contrária ao papa

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Alexandre VI. Savonarola nasceu de uma importante família de Ferrara, mas, após iniciada sua vida como religioso, tornou-se uma figura conhecida por propor refor-mas no sistema católico de então.

Entre os anos de 1490 e 1493 Ercole realiza importantes casamentos com seus filhos, resultando em alianças políticas com as cortes dos Gonzaga e dos Sforza. É nesse período que acontece o casamento de seu filho Alfonso com Lucrecia Borgia, filha do papa Alexandre VI. Essa contradição de casar Alfonso com a filha do papa não aconteceu de forma tranquila, visto seu descontentamen-to com o pontífice, mas foi resultado de um longo processo político que seria im-portante para a cidade de Ferrara. Esse fato demonstra o conflito entre o homem e o estadista.

Lucrecia Bórgia acabou exercendo um grande papel na disputa política de Ferrara, e por conta de sua personalidade e das lendas que se formou em tor-no dela transformou-se em uma das figuras mais conhecidas de todo o Renasci-mento. Nascida em 1480, filha ilegítima do espanhol Rodrigo Bórgia, Lucrecia passou a ser conhecida quando seu pai tornou-se papa, em 1492. Por conta dos inúmeros episódios caricatos de sua trajetória, a maior parte dizendo respeito a sua vida íntima, a fama de Lucrecia crescia como sendo uma mulher frívola e de pouca moral, mas quando, em 1501, se torna esposa de Alfonso d`Este e muda-se para a cidade de Ferrara, o que vai chamar a atenção de todos na corte é muda-seu refinamento e sua cultura. Durante o período em que foi duquesa contribuiu para o avanço intelectual da cidade, e atraiu personagens importantes ligados à cultura. Destacam-se a vinda para a cidade dos escritores Ludovico Ariosto e Erasmo de Roterdã (1466-1536), autor da famosa obra “Elogio da Loucura”, de 1509.

No cenário musical temos na Ferrara da última década do século XV o apogeu da produção musical da corte. A Capella di corti que o duque mantinha no palácio era, nesse período, uma das maiores de toda a Europa, rivalizando em importância e tamanho com a capela papal. Um dado importante para se entender a posição privilegiada desse grupo de cantores formado na corte de Ferrara é o fato conhecido de o duque assistir e participar diariamente da missa, como era

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esperado de um nobre católico. Mas se tem conhecimento de que Ercole também participava diariamente do ofício das Vésperas, que se realizava no final do dia, e muitas vezes tomava parte no coro, o que nos demonstra o interesse que tinha pelo grupo formado dentro de seu palácio (LOCKWOOD, 2009, p.150).

A existência de um grupo de cantores com esse prestígio possibilitou o desenvolvimento da música vocal. Ciente disso, Ercole se empenhou para trazer o já famoso compositor e mestre de capela Josquin Des Prez para Ferrara como uma demonstração do poder artístico e econômico, pensando também na relevân-cia que teria no cenário musical a partir de então.

Sua contratação definitiva aconteceu entre 1503 e 1504 e, apesar de ter sido por um período relativamente curto, representa o auge musical e a sedimen-tação das pretensões artísticas alimentadas pela família d`Este. Josquin está no ponto central de toda a música do Renascimento, junto com seus contemporâneos mais famosos, Jacob Obrecht (1457-1505), Heinrich Issac (ca. 1450-1517) e Pier-re de La Rue (1452-1518). Esses compositoPier-res formam o que é conhecida como a terceira geração dos franco-flamengos, e temos com eles a fase principal da poli-fonia (TUOHY,2002). O avanço e desenvolvimento que a música dessa geração atingiu são descritos como a junção, bem-sucedida, da escrita polifônica trazida pelos compositores do Norte com a melodia italiana.

A produção do grupo é bastante numerosa e temos o advento do mote-to como forma preponderante, assumindo o papel que antes teria sido da missa. A característica que mais demonstra o desenvolvimento desta em relação às gera-ções anteriores é a expressividade que a música alcançou. O enlace entre música e texto, que marca a música de todo o Renascimento, assume agora a importân-cia que manteria até o fim desse período.

Alguns autores, como Howard Brown em seu livro Music in the Renais-sance (1976, p.384), atribuem essa expressividade que a música de Josquin ad-quiriu ao procedimento de se compor apoiado em um cantus firmus de motivos melódicos mais curtos do que se fazia antes, o que garantia ao compositor mais liberdade para arquitetar a estrutura da música. Temos assim um repertório em

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que as vozes assumem características mais independentes e, portanto, mais ex-pressivas. Desenvolve-se nesta época o que conhecemos como ponto de imita-ção, ferramenta pela qual o discurso musical alcança efeitos de contrastes tanto melódicos quanto de texturas.

Muitas obras de Josquin poderiam servir de exemplo do tipo de compo-sição musical representativa para este período em Ferrara, mas a missa composta por ele em homenagem ao duque Ercole, Missa Hercules Dux Ferrarie, se destaca dentre as demais. Ercole encomendou a Josquin uma obra que fizesse referência direta a ele. Para tal objetivo, Josquin compôs, provavelmente entre 1503 e 1504, a missa que tem como base de composição um soggeto cavato que solmiza as letras latinas do nome do duque Ercoles.

A técnica do soggetto cavato foi inaugurada por Josquin Des Prez nesta missa, o que por si só já a coloca em uma posição de destaque na história da mú-sica. Basicamente, a técnica consiste na relação das sílabas de uma palavra a partir do processo de solmização proposto por Guido de Arezzo (ca. 995-1050), que usou como base o hino latino de São João Batista (MENGOZZI, 2010, p. 1-9). Após a missa em homenagem ao duque muitas outras obras do próprio Josquin e de outros compositores passaram a utilizar esta técnica. Entre eles des-taca-se Adrian Willaert em seus motetos em homenagem ao duque de Milão, Francesco II Sforza. O próprio duque Ercole recebeu outras obras em sua home-nagem, repetindo a técnica desenvolvida por Josquin, destacando-se a de Cipria-no da Rore.

O exemplo da missa composta por Josquin e toda a sua importância como compositor no período do Renascimento nos ajuda a traçar um panorama dos acontecimentos musicais em Ferrara no período de governo do duque Ercole I. Podemos resumir essas características como a polifonia franco-flamenca, o pensamento humanista (através da preocupação com o texto) e a melodia italiana. Tendo o compositor Josquin Des Prez como o exemplo mais significativo e famo-so, sua ligação com a corte de Ferrara demonstra a maturidade artística que a corte d’Este havia desenvolvido naquele momento.

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1.1.4. O mecenato de Ippolito d`Este e as influências de Adrian Willaert

Duas figuras que representam bem a vida social e cultural de Ferrara na primeira metade do século XVI são as do compositor Adrian Willaert e de seu primeiro mecena, o cardeal Ippolito d`Este.

Ippolito nasceu em 1479, filho do duque Ercole I, e sua participação na vida política e cultural de Ferrara foi intensa, apesar de não ter sido duque. Sua posição frente à igreja católica e também a de patrono das obras de artes o torna-ram uma figura central do período. Sua entrada para o colégio dos cardeais o con-feriu a posição de destaque que o cargo tinha. O gosto pelo luxo e requinte repre-senta a marca maior de sua biografia, um bom exemplo disso foi a reforma que ele empreendeu no Palazzo San Francesco em Ferrara, tornando-o uma das obras de arquitetura mais importantes da cidade. Ippolito também ficou conhecido por ter sido um grande viajante e, desta forma, ter tido contato com as principais tendên-cias artísticas da Europa de seu tempo (LOCKWOOD,1985, p.85-112).

A maior contribuição musical de Ippolito para Ferrara foi o compositor franco-flamengo Adrian Willaert (1490-1562), com o qual manteve intenso contato e assumiu o patrocínio do início de sua carreira.

O local de nascimento de Willaert ainda é causa de discussão entre os historiadores, mas o fato conhecido é de ser um compositor franco-flamengo edu-cado em Paris, como não era raro acontecer. Ainda jovem transferiu-se para Ro-ma, na primeira década do século XVI, e o contato com o coro da capela papal e as composições específicas para este grupo foram decisivas na sua formação musical. Mas sua ida para o serviço do cardeal Ippolito d`Este foi o divisor de sua trajetória.

Ippolito passou a levar Willaert em suas viagens, o que colocou o com-positor em contato com diversas correntes musicais diferentes da italiana, incluin-do seu contato com a Hungria onde, provavelmente, residiu entre 1517 e 1519. Após a morte de Ippolito, em 1520, Adrian Willaert se integra ao serviço do duque

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Alfonso I em Ferrara, onde permanece até 1525. No ano de 1527 assume o posto em que ficaria até o final de sua vida e desempenharia a função mais importante de sua carreira, a de mestre de capela da catedral de São Marcos, em Veneza.

A importância de Willaert para a história da música pode ser atestada, por exemplo, pela importância de seu discípulo Giosefo Zarlino (1517-1590). Além de compositor, Zarlino transformou-se em um dos mais importantes teóricos do Renascimento. Em seus escritos temos a possibilidade de um maior entendimento da escrita de seu tempo, em especial na obra Instituzioni Armoniche de 1558, quando documenta muito dos processos técnicos da música do período como, por exemplo, as possibilidades de sistemas de afinação utilizados na época2. Willaert também foi o principal responsável por desenvolver a ligação entre música e texto, que seria imprescindível no desenrolar do período. Foi o primeiro compositor que temos notícia de ter a preocupação em colocar as sílabas do texto exatamente abaixo das notas a que deveriam ser cantadas na partitura, o que nos demonstra sua preocupação com a articulação exata do texto da música.

Uma das obras mais importantes do compositor foi sua publicação de-nominada Musica Nova, de 1559, na qual combina dois gêneros importantes do Renascimento, o madrigal e o moteto. A utilização desses dois gêneros na mesma publicação não era comum no século XVI, mas os 27 motetos escritos a partir de textos bíblicos, em especial do velho testamento, e os 25 madrigais feitos sobre sonetos de Petrarca chamam atenção por demonstrar a habilidade do compositor na relação entre música e texto. A maior parte das obras está escrita para cinco ou seis vozes a cappella, mas também constam uns poucos exemplos para 4 vo-zes que, juntos, representam o que de mais característico e relevante Willaert pro-duziu.

A ligação de Adrian Willaert com o cardeal Ippolito d`Este representa a manutenção, pela corte de Ferrara, de sua privilegiada situação com a vanguarda da produção musical no início do século XVI.

2 "Gioseffo Zarlino", in The New Grove Dictionary of Music and Musicians, ed. Stanley Sadie. 20

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23 1.1.5. A permanência de Cipriano da Rore

A contratação de Cipriano da Rore por Ercole II, em 1546, demonstra a evolução do tratamento dado aos compositores pela corte de Ferrara. Sua perma-nência na cidade por mais de treze anos e todos os benefícios documentados que recebeu do duque, tais como prêmios e licenças para viagens, demonstram a im-portância que seu papel de compositor representava para a família. O período em que esteve a serviço dos d`Este mostra a sedimentação da estrutura artística que a corte havia montado na cidade, e a relevância de sua contratação para o desen-volvimento musical foi ainda mais importante.

Cipriano da Rore foi pupilo de Adrian Willaert, o que o coloca em conta-to com o que teve de mais importante na geração pós-Josquin. A formação musi-cal que recebeu garantiu a ele um estilo de composição com o domínio da polifo-nia no seu estilo mais alto, como era conhecido o estilo desenvolvido por Palestri-na (1525 – 1594) em Roma. Mas o que o torPalestri-na indispensável Palestri-na transição do alto Renascimento para os madrigalistas do fim do século é sua escrita musical repleta de elementos textuais e retóricos.

Apesar de ter composto um bom número de motetos e canções sacras, são seus madrigais a cinco vozes que demonstram maior domínio da escrita. Ne-les o compositor desenvolveu procedimentos pouco comuns até o momento, e que depois dele se tornariam quase que uma norma de composição, como por exem-plo, a escrita para cinco vozes e as alterações cromáticas. Mas, como escreveu Alfred Einstein em seu livro The Italian Madrigal, todos os procedimentos musicais importantes encontrados na escrita dos madrigalistas tardios do Renascimento foram antecipados por Rore, por isso a importância de sua presença na corte de Ferrara (EINSTEIN,1971).

Suas características musicais englobam várias técnicas juntas: vão da escrita imitativa até a homofonia, dos resultados triádicos simples até as passa-gens mais cromáticas, e também comportam estilos quase de declamação silábica

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ao uso requintado de melismas. Essa amplitude de procedimentos caracteriza bem seu papel de transição entre as duas últimas gerações de compositores do Renascimento.

Mas é no trato com o texto que Rore mais se destacou. Sua habilidade em capturar e refletir na música as imagens citadas no texto tornam seus madri-gais importantes documentos dos reflexos do humanismo na música, além de res-saltar a importância da poesia e da retórica textual.

Um dos exemplos mais conhecidos dessa escrita é seu madrigal O Sonno. Nesta obra, identificam-se claramente todas as influências que o composi-tor recebeu de Willaert e seus contemporâneos no trato das palavras do texto. Ao mesmo tempo, identifica-se a presença constante de cromatismos e efeitos har-mônicos mais drásticos, que se tornaria a base das composições a partir de então. Portanto, ele mantém as características do que era feito antes e desenvolve as tendências do que viria a partir dele.

Com Alfonso II no governo da cidade a situação de Rore muda a ponto de o compositor deixar a cidade para não voltar mais. Em 1563 assume por um curto período de tempo o posto que havia sido de seu mestre Willaert na catedral de São Marcos em Veneza, mas na época Cipriano da Rore já havia escrito seu nome na história do desenvolvimento da música do Renascimento, em especial pelos anos que passou em Ferrara.

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25 1.1.6. Carlo Gesualdo

Figura 2 - Il Perdono di Carlo Gesualdo3

De todos os elementos musicais e personagens que foram descritos até agora nenhum é tão simbólico e característico para Ferrara como Carlo Gesualdo. Sua estada na cidade, assim como sua obra e a posição que ocupou, o distingue de todos os outros compositores, transformando-o no mais importante produto da vida musical de Ferrara.

Em 1594 Gesualdo se casa com a sobrinha do duque Alfonso, dona Leonora d´Este, e muda-se para Ferrara para fazer parte da família (WATKINS, 1973, p.37-39). Só por isso já temos uma situação atípica, pois sua ida para

3 BALDUCCI, G. (1560-1631) Igreja de Santa Maria delle Grazie, Gesualdo, província de Avellino,

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de não se deu através da intenção da corte em tê-lo a seu serviço, mas sim com o compositor se tornando membro dela. A sua origem nobre também deve ser nota-da, pois Gesualdo ainda era pouco conhecido como compositor nesta fase de sua vida, mas já bastante conhecido como o príncipe de Venosa, principado onde nas-ceu. Todos esses fatos são importantes para mostrar a relação diferente que o compositor tinha com a música, que não representava para ele uma obrigação ou um meio de ascensão social, mas uma atividade de escolha pessoal que exercia. Também devemos levar em conta sua ligação com a igreja católica, que foi se es-treitando com o passar dos anos e se revelando um elemento que iria refletir dire-tamente na sua produção musical.

O compositor teve, desde a infância, uma relação muito próxima com as altas hierarquias da igreja. Sua mãe era sobrinha de papa e seu tio, Carlo Borro-meu, tornou-se cardeal de grande relevância na época e, depois de morto, foi transformado em santo pela igreja com o auxílio do compositor (idem, p.4-6). So-ma-se a isto, as tragédias pessoais de Gesualdo que o colocaram grandes desvi-os psicológicdesvi-os, como ndesvi-os descrevem seus biógrafdesvi-os, especialmente o norte ame-ricano Glenn Watkins autor do livro Gesualdo – The Man and His Music, publicado pela primeira vez em 1973. Todos esses elementos pessoais refletiram no desen-volvimento de seu estilo de composição, deixando-o cada vez mais afastado dos procedimentos comuns e esperados pelos ouvintes da época e propiciando a ela-boração de uma música cada vez mais pessoal e distinta.

Muita importância se dá à biografia de Gesualdo atribuindo aos tristes acontecimentos de seu primeiro matrimônio - que resultariam no assassinato da esposa e de seu amante - fatos que deixariam marcas em sua escrita musical. No entanto, a ida de Gesualdo para a cidade de Ferrara em 1594 se revela um evento com especial importância para sua obra, pois as influências que ali teria e o con-texto musical da cidade influenciariam sua formação e seu estilo. A mudança para cidade acontece por ocasião do seu segundo casamento, mas também foi motiva-do pelos assassinatos cometimotiva-dos por ele. Sua posição de príncipe exigia, pelos costumes da época, alguma ação que limpasse sua honra diante do adultério

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blicamente conhecido de sua primeira esposa. No entanto, os assassinatos come-tidos por ele chocaram e assustaram seus súditos, exemplo disto é a quantidade de poemas e lendas que se seguiram ao episódio, de forma que, mesmo não tido retaliações legais por seus atos, era importante sua saída de Nápoles, onde resi-dia na época.

O repertório publicado por Carlo Gesualdo após sua ida a Ferrara está compreendido em dois livros de motetos sacros, um livro contendo os responsó-rios fúnebres para a semana santa e mais seis livros de madrigais. Nestes últimos encontramos o que de mais ousado e experimental foi composto no período, por conter grande parte dos elementos musicais desenvolvidos até então pelos com-positores que passaram por Ferrara. O compositor segue a tendência antecipada por Cipriano da Rore de colocar a música a serviço do texto, demonstrando e re-criando as imagens sugeridas por ele.

Gesualdo está no auge da transição dos sistemas modal para o tonal e, portanto, no longo processo de experimentações com as combinações de sons que resultaria no tonalismo do século XVIII. Mas estas experimentações sonoras caíram no gosto da cidade e de seus músicos formando uma atmosfera musical de muita expressividade e resultados sonoros incomuns. Desta forma, Gesualdo transformou-se no mais experimental de todos os compositores do Renascimento, deixando em seus madrigais e motetos as inovações que o tornariam conhecido.

A escrita do compositor é repleta de passagens cromáticas e dissonân-cias sem preparação. Sua forte relação com o texto faz com que Gesualdo promo-va efeitos sonoros que acabam rompendo com a continuidade ou progressão harmônica em nome de ressaltar uma ou outra palavra. Este procedimento resul-tou em um repertório de difícil execução, por promover relações harmônicas pouco comuns.

A classificação da obra de Gesualdo também se tornou um tema com-plicado para os autores contemporâneos. Assim como era comum em todo o Re-nascimento, encontramos na escrita trechos predominantemente modais e polifô-nicos em contraste com outros mais tríadicos, que poderiam ser descritos como

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próximos ao sistema tonal. No entanto, no caso de Gesualdo, esses trechos mais triádicos não apresentam relações fortes entre as tríades a ponto de traçar uma progressão harmônica que seja reconhecível, dificultando assim sua classificação como tonal.

A maior importância de Gesualdo para Ferrara está no fato de não ter sido uma experiência isolada. Encontramos a figura conhecida do madrigalista Luzzasco Luzzaschi (1545-1607), que antes da chegada de Gesualdo já elaborava na cidade a obra que influenciou e preparou a chegada do príncipe de Venosa. Luzzaschi, que nasceu e morreu em Ferrara, era conhecido desde a juventude por seu domínio do órgão. Temos documentado o contato que teve com o archicem-balo microcromatico desenvolvido por Nicola Vicentini (1515–1575), o que deve ter contribuído para sua formação musical. Seus sete livros de madrigais a cinco vo-zes influenciaram diretamente a música de Carlo Gesuado (ATLAS, 1998, p.562-564).

A obra de Gesualdo chama atenção por vários motivos, mas principal-mente por seu alto valor artístico e seu caráter único. Este repertório é indispensá-vel para o entendimento da evolução musical em Ferrara durante o governo da família d’Este e a consequente relação com o desenvolvimento da música no Re-nascimento, por apontar o auge da sofisticação e desenvolvimento técnico que esta música alcançou.

1.1.7. A saída da corte d`Este da cidade de Ferrara

Com a saída de Ferrara da família d´Este, em 1598, coloca-se fim a um período de prosperidade artística pouco visto em outros lugares. A partir do início do século seguinte a cidade não teria mais a importância e o requinte intelectual daquela época, mas a produção musical desenvolvida nos anos em que a corte permaneceu lá são suficientes para marcar a história da música. A anexação da cidade aos estados papais seria o ponto final de um processo iniciado desde o governo de Ercole I. A relação entre a corte d`Este e o poder papal vinha se

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riorando cada vez mais, e as razões para isso são, em geral, políticas, devido ao crescente interesse que o ducado exercia.

Em 1598 o duque Alfonso II morre e não deixa herdeiros legítimos. O sucessor direto seria seu sobrinho Cesare d`Este, que era neto de Alfonso I. O fato é que ele era fruto de seu segundo relacionamento iniciado após a morte da esposa legitima Lucrecia Borgia, com Laura Diante (WATKINS,1973, p.77-80). Mas esse segundo casamento jamais foi legitimado pela igreja. Essa situação era o pretexto que o papa Clemente VIII (1536-1605) precisava para declarar ilegítima a sucessão na corte de Ferrara e confiscar as terras em benefício dos estados papais. Cesare chegou a se declarar Duque de Ferrara a revelia do papa, mas recuou diante da excomunhão e da ofensiva que o exército papal promoveu, siti-ando a cidade e ordensiti-ando sua rendição. No mesmo ano de 1598 a família d`Este se transfere para Modena que torna-se a nova capital do ducado.

Ferrara não deixa de ter o título de ducado, mas nunca mais obteve o prestígio e a importância política econômica e, principalmente, artística dos anos sob o domínio da corte d`Este. A corte, agora sediada em Modena, continua a ter relações importantes com toda a política europeia e realizar os importantes contra-tos de casamento que necessita para continuar influente. Sua permanência em Modena se deu até o século XVIII. Por fim temos a anexação da herança dos d`Estes a um novo ramo, os Austria-Estes, a partir do casamento de Maria Beatriz d`Este com o Arquiduque Fernando Carlos, em 1771.

1.2. A Arte do Maneirismo

A fase final do Renascimento desenvolveu um estilo artístico que se di-ferenciou do que havia sido produzido até então. A sofisticação técnica e intelec-tual alcançada pelos artistas do final deste período promoveu uma revisão da es-tética vigente, que tinha suas bases na observação e imitação do que se conhecia da cultura clássica. A partir desta modificação estética é que se identifica um novo

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