• Nenhum resultado encontrado

O Grupo Tortura Nunca Mais/RJ e o “Estado”

No documento Download/Open (páginas 46-49)

1.3 Por dentro do Grupo: Temas, consensos e dissenso 1 Composição e funcionamento

1.3.4 O Grupo Tortura Nunca Mais/RJ e o “Estado”

Quando comecei o trabalho de campo, o Grupo dizia estar em “assembleia permanente sobre a Comissão da Verdade”. Desse modo, a maior parte da reunião girava em torno das diversas Comissões que se instauravam no país. Conforme realizava a pesquisa, outros temas ganharam destaque. As manifestações de 2013 espalhadas por todo o país motivaram diferentes debates, entre eles a desmilitarização da polícia militar, as prisões dos manifestantes, sobretudo o caso de Rafael Braga. Esse episódio, como já mencionei, ganhou força dentro do Grupo, a ponto de ele ter recebido a Medalha Chico Mendes.

No que se refere às Comissões, pude notar a oposição dos integrantes em relação à sua forma de trabalho. Uma vez que membros do GTNM/RJ discordavam publicamente do modo como elas funcionavam, algumas questões surgiram: por que um grupo que procura esclarecer as situações advindas da ditadura imposta pelo governo de 1964 a 1985 estaria contrário à Comissão que diz que pretende esclarecer esses atos? Por que membros do Grupo não fazem parte da Comissão?

Essas questões foram formuladas durante minha participação nas reuniões e receberão mais destaque no capítulo a seguir, que se refere precisamente ao trabalho da Comissão. Contudo, algumas questões já serão apontadas. O que me parece uma das principais razões para membros do Grupo não participarem de nenhuma Comissão da Verdade é o fato de entenderem essa Comissão como um instrumento do “Estado” 44

. Nos quase 30 anos de existência, o Grupo se orgulha de não ter se envolvido com políticas de governo ou partidos políticos, tendo, portanto, “autonomia, independência e crítica frente às instâncias governamentais brasileiras”. Como costuma dizer a presidente Victória, o GTNM/RJ não tem “o rabo preso” com nenhum setor do “Estado” ou partido, podendo atuar de forma independente, defendendo as demandas da entidade.

Esse aspecto fica ainda mais evidente quando representantes do Grupo insistem que fazem parte de uma “entidade” de direitos humanos, um movimento social, e não uma Organização Não Governamental (ONG). Sendo assim, não se envolve em

33 questões político-partidárias, o que limitaria a atuação política. Como aparece destacado na apresentação do Grupo em seu site, “é um movimento suprapartidário, independente e autônomo, não recebendo financiamento de governos nem de partidos políticos”.

Em função dessa postura, o GTNM/RJ recebe críticas de outros movimentos sociais por ser considerado “fechado demais”. No entanto, os “militantes” insistem que essa deve ser a postura, pois somente assim eles têm liberdade para atuar da forma que julgam ser a melhor. Eles acreditam que é preciso marcar os lugares diferenciados entre as práticas do governo e suas reivindicações.

1.3.4.1 Uma situação privilegiada: Quando o Grupo e a Comissão dialogaram Meu interesse pela Comissão foi provocado, sobretudo, pela postura contrária do Grupo em relação a ela. Ainda assim, percebia que havia certo diálogo entre membros da Comissão e alguns integrantes do Tortura Nunca Mais/RJ, muito em função de alguns membros da Comissão e integrantes do GTNM/RJ terem sido “companheiros” na época da ditadura, ou ainda nas lutas pela memória que seguiram após o período.

O fato de não agir (trabalhar) junto com a Comissão – e, portanto, contra o “Estado” – não significa que integrantes se neguem a contribuir, quando solicitados. Tal postura ficou evidente com a participação de Wadih Damous – presidente da Comissão Estadual da Verdade do Rio de Janeiro – na reunião semanal do GTNMRJ, em julho de 2013.

Durante todo o meu trabalho de campo, o encontro do Grupo nunca esteve tão cheio. A reunião começou com a fala de Wadih Damous. A proposta era que ele, enquanto representante da Comissão, apresentasse o trabalho aos “militantes” que, por sua vez, apresentariam suas demandas.

No início de sua fala, Damous procurou ressaltar que as divergências do GTNM/RJ não impediriam o trabalho em conjunto. Ao apresentar o trabalho que vinha sendo realizado, apontou que os depoimentos são fundamentais para divulgar a história do período, principalmente para as novas gerações. Disse ainda que iria interrogar os torturadores apontados no Testemunho da Verdade de Dulce Pandolfi e Lúcia Murat, pois não permitiria que eles desmoralizassem a Comissão.45

Além disso, o presidente apontou as dificuldades de trabalhar atingindo os setores militares que, segundo ele, encontram-se em um “patamar inalcançável”. Apesar

34 disso, insistiu no argumento de que o trabalho da CEV-Rio será judicializado, indo de encontro ao Art. 5o § 2o da Lei de instauração da Comissão, que, como apontarei no próximo capítulo, afirma que a CEV-Rio não tem função “jurisdicional ou persecutória” – em outras palavras, não tem poder de levar à justiça os casos investigados por ela.

No momento em que a palavra foi passada aos “militantes” do Grupo, uma integrante apontou que os depoimentos são importantes, mas que o fundamental é a abertura dos arquivos do período, pois muitas informações se perdem quando se trabalha somente com as memórias das pessoas envolvidas. A esse respeito, outro “militante” acrescentou que “qualquer pesquisa sem a abertura dos arquivos vai necessariamente fracassar”.46

Tal polêmica surgiu porque, para os integrantes, a abertura dos arquivos é uma forma de fazer com que o “Estado” reconheça oficialmente tudo o que ocorreu, além de obter mais informações a respeito do que aconteceu com os “desparecidos”.47

É importante destacar que, embora discorde do modo como a CEV-Rio funciona, o Grupo percebe certos “avanços”, pelo menos no que se refere à divulgação do tema. Durante um dos encontros, a vice-presidente Cecília argumentou que os assuntos referentes ao regime civil-militar estão se tornando públicos – “estão vazando”, como ela costuma dizer – e que o Grupo deve continuar pressionando para que “avanços” nessa questão sejam possíveis. Outra integrante, porém, rebate alegando não ter esperança que as coisas melhorem, pois tudo ainda é muito “midiático”, uma vez que os depoimentos estão apresentando quem são os torturadores, mas o “Estado” ainda não reconheceu oficialmente. Dessa forma, ficam evidentes as diferenças presentes no Grupo, embora seja consenso de que é preciso fazer mais do que a Comissão vem fazendo.

46 Cabe ressaltar que muitos integrantes do Grupo são professores universitários envolvidos em pesquisas

acadêmicas sobre a temática da ditadura. Nesse sentido, quando defendem uma forma de realizar o trabalho, estão baseados em suas próprias metodologias de pesquisas.

47

Para o GTNM/RJ, a noção de “reparação” pressupõe necessariamente a abertura dos arquivos da ditadura. Somente com as informações oriundas desses documentos, ainda de acordo com o Grupo, será possível ter acesso à ‘verdade e justiça’. Como pretendo discutir posteriormente, essa é uma postura oposta à atuação do “Estado”, visto que as “leis de reparação” não garantem o acesso a essas informações, estando voltadas, sobretudo, para a compensação financeira.

35

CAPÍTULO II – COMISSÃO DA VERDADE: UMA NOVA POSSIBILIDADE

No documento Download/Open (páginas 46-49)