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Dano, “reparação” e “vitimização”

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1.3 Por dentro do Grupo: Temas, consensos e dissenso 1 Composição e funcionamento

1.3.2 Dano, “reparação” e “vitimização”

O Grupo desenvolve trabalhos com aqueles que sofreram a violência do regime, porém discorda da forma como esse atendimento vem sendo feito pelo Estado. O projeto Clínica do Testemunho, por exemplo, se apresenta como forma de se responsabilizar pelo efeito que teve nos cidadãos durante os anos ditatoriais, prestando atendimento psicológico. Segundo Paulo Abraão – presidente da Comissão de Anistia –, dar voz àqueles que foram calados de maneira arbitrária é um ato terapêutico, e cabe ao Estado o dever de “reparação” e a manutenção de um serviço psicológico aos que ele prejudicou.

Baseados no conceito da Organização das Nações Unidas (ONU), os “militantes” consideram que essa não é uma forma de “reparação”, visto que não garante a ‘justiça e verdade’. Segundo uma “militante” do Grupo,

A questão é que a Clínica do Testemunho vem como possibilidade de “reparação”, enquanto na verdade esta só será possível quando existir

26 a ‘justiça e a verdade’. O que deixa a pessoa doente é ficar a vida inteira procurando uma resposta que ainda não existe. Por isso a Clínica do Testemunho não vai poder tratar essa pessoa.34

Nessa perspectiva, a Clínica é mais um “evento”, uma espécie de “reparação que não repara”.

Ao defender que haja um tipo de atendimento psicológico, os “militantes” do GTNM/RJ consideram as marcas que a ditadura deixou naqueles que vivenciaram a violência, não só física, mas também psicológica. Cecília – “militante” e também psicóloga –, por exemplo, considera que essa é uma atividade fundamental, pois as pessoas foram muito afetadas e, por isso, devem ter esse tipo de tratamento. Contudo, percebe-se pela postura de membros do Grupo que esta não pode ser considerada uma forma plena de “reparação”. Para Cecília, pensar o atendimento psicológico como uma forma de “reparação” pode levar a um esvaziamento do sentido da luta política, uma vez que o mais importante é que as histórias de violações sejam, de fato, esclarecidas – sobretudo por meio da abertura dos arquivos.

Além de criticar o atendimento psicológico como uma forma de “reparação”, a dimensão “reparadora” da indenização também é criticada. Como será demonstrado no próximo capítulo, as “Leis de reparação” não garantem o acesso aos arquivos do regime e tampouco os esclarecimentos a respeito dos mortos e “desparecidos”, mas garantem a compensação financeira em alguns casos estipulados por lei. Não há consenso no Grupo acerca da aceitação ou não dessas indenizações. Enquanto alguns aceitam e fazem disso mais uma forma de lutar para esclarecer questões do período, outros se negam a fazer parte dessa prática. Contudo, aqueles que negam argumentam que cabe a cada um decidir se aceita ou não esse dinheiro, pois se trata de algo muito pessoal. Não se julga, portanto, aqueles que entendem essa prática como forma de “sanar” todos os danos sofridos. Porém, defendem que é preciso continuar lutando, apesar do pagamento.

Diante do debate, a questão principal não parece ser o dinheiro em si.Aceitando ou não a quantia, é possível perceber que o mais importante é que a luta pelos esclarecimentos continue. Aceitar a indenização financeira como forma de “reparação” pode fazer com que deixem de cobrar mais esclarecimento, ao mesmo tempo em que pode transmitir a ideia de que o Estado cumpriu o seu dever. Dessa forma, na perspectiva do GTNM/RJ, o grande problema da “reparação” econômica é que ela

27 venha a inviabilizar a luta pelo resgate da memória, o que vai de encontro a uma das principais bandeiras políticas do Grupo.

Para que a memória possa ser, de fato, resgatada, é consenso no Grupo que os arquivos precisam ser abertos. Saber, por exemplo, as circunstâncias das mortes, os locais onde foram enterrados os corpos e quem foram os militares responsáveis é o que retira as violações do território do segredo.

Além da questão da “reparação”, a noção de “vitimização” é outra controvérsia que aparece no Grupo Ao trabalhar com a ideia de sofrimento social, pressupus que trabalharia com a categoria “vítima”, entendendo como tal aqueles que sofreram com a violência do regime. Contudo, ao participar das reuniões, percebi que, embora os integrantes do GTNM/RJ não negassem o sofrimento, eles não se reconheciam como tais.

A noção de “vítima” para a vice-presidente Cecília se constrói a partir da ideia de que o vitimizado é um “coitado”, e que, por isso, todas as suas atitudes são compreensíveis, em virtude de tudo que tenha passado. Isso, segundo ela, deve ser evitado. Além disso, ela ressalta que muitas “vítimas” se tornaram atores “midiáticos” de seus próprios dramas pessoais e passaram a ter um capital simbólico, ocupando um lugar na sociedade justificado pela experiência pela qual passaram, deixando de ser pessoas “comuns”.

Nesse sentido, Cecília afirma que ser “ex-preso político dá currículo” e que muitos foram eleitos a cargos públicos. Com essa ideia, ela e os demais integrantes do Tortura Nunca Mais/RJ consideram ser problemático o fato de as pessoas utilizarem a noção de “vítima” como forma de obter “benefício” pelas experiências passadas. Desse modo, defendem que não são vítimas da ditadura, e sim “atingidos ou sobreviventes”. Isso permite a eles um lugar de atuação política e luta que, em sua concepção, não está de acordo com a noção de “vítima coitadinha” e também não os coloca na condição de alguém que visa aproveitar essa condição para obter certos privilégios.

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