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Testemunho: voz, memória e silêncio

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CAPÍTULO II – COMISSÃO DA VERDADE: UMA NOVA POSSIBILIDADE DE CAMPO

2.3 Testemunho: voz, memória e silêncio

As atividades públicas da Comissão são organizadas de maneira distinta. Existem aquelas voltadas para casos específicos, como ocorreu o Testemunho sobre o “caso Mário Alves” e a Audiência sobre tortura e mortes na Policia do Exército na Vila Militar, organizada em função dos casos do Severino Viana Colou e Chael Charles Schreier. Também ocorrem atividades com temas mais gerais, como o Testemunho da Verdade: “Tortura e repressão ontem e hoje”, atividade escolhida para marcar um ano de trabalho da CEV-Rio, a qual contou com apenas um depoimento de “ex-preso político”. Por fim, a CEV-Rio ainda organiza atividades para os recolhimentos de depoimentos pessoais, como o Testemunho da Verdade de Dulce Pandolfi e Lúcia Murat, primeira atividade pública da CEV-Rio.

A seleção do material que utilizo para análise não se deu de forma aleatória. Após um primeiro levantamento do que seria viável para a pesquisa, foram selecionados os depoimentos de quatro atividades organizadas pela Comissão. Dentre os Testemunhos da Verdade, privilegiei a análise das narrativas de Dulce Pandolfi e Lúcia Murat, o evento “Tortura e repressão ontem e hoje”, e também a atividade sobre o “caso Mário Alves”. Em relação à Audiência Pública, por sua vez, analiso os depoimentos da atividade sobre a PE da Vila Militar, visto que trataram de temas relacionados ao sofrimento e a questões de gênero. Neles, foi possível analisar as experiências na prisão e as consequências que esse período teve em suas vidas. Através desse processo, privilegiei a análise desses 14 depoimentos, sendo quatro de mulheres e onze de homens.

No caso de Dulce Pandolfi e de Lúcia Murat, os depoimentos tiveram mais destaque, com um evento organizado pela Comissão, no qual somente as duas falaram, o que permitiu que as mesmas tivessem um tempo maior para contar as suas experiências. Não pude comparecer ao evento, mas tive acesso aos depoimentos delas pela internet.

No caso dos depoimentos concedidos no evento para apurar o “caso Mário Alves”, pude estar presente. O evento realizado na ALERJ contou com o depoimento de nove pessoas, entre eles um torturador e a filha de Mário Alves – os quais receberam maior destaque.

52 Na Audiência Pública que ocorreu para apurar os casos de tortura e mortes na PE na Vila Militar, tive acesso aos depoimentos online. Em relação ao depoimento no Testemunho da Verdade: “Tortura e repressão ontem e hoje”, não há vídeo disponível sobre o evento. Contudo, no próprio site da CEV-Rio, encontrei a versão escrita do relato, a qual utilizei para a análise. Embora tenha tido acesso a esse depoimento de maneira distinta, acho interessante utilizá-lo, uma vez que ele traz aspectos importantes a respeito das questões de gênero.

Como dito, eu me detive à análise de 14 depoimentos, os quais versam sobre as violações que ocorriam no período da ditadura. A partir dessas narrativas, fui levada a refletir sobre a possibilidade e impossibilidade de testemunhar, sobre o silêncio e o vazio, assim como a possibilidade de escutar (JELIN, 2002), visto que fui afetada por tudo isso.

O estudo da linguagem como forma de expressar experiências dolorosas permite alcançar processos e configurações culturais com as particularidades da experiência subjetiva (JIMENO, 2007). São necessárias práticas interpretativas para pensar a maneira como são enunciadas ou silenciadas as experiências dolorosas. Jimeno (2007) considera que os relatos, mais do que chaves de acesso para formações culturais, tornam possível o acesso ao significado particular de uma experiência para o sujeito. Além disso, a narrativa cria um terreno comum, compartilhado entre aquele que narra e quem escuta, no qual se cria um laço emocional – ou o que Jimeno chama de comunidade emocional.

É possível pensar a CEV-Rio como um espaço em que essa comunidade emocional é construída. Quando aquele que fala se emociona, por exemplo, aquele que escuta expressa uma espécie de comunhão de sentimentos, aplaudindo ou demonstrando concordância com o que foi dito. Desta forma, o sofrimento é compartilhado com todos que estão ali. Não restrita a isso, nessas atividades, a Comissão exerce sua já mencionada função “político-pedagógica” de levar essas histórias ao conhecimento de todos, sobretudo das novas gerações, as quais, na leitura do presidente da Comissão, não conhecem esses fatos.

É possível considerar ao menos dois sentidos para a palavra testemunha. Por um lado, o termo se refere a quem viveu e pode, posteriormente, narrar a experiência. Trata- se do testemunho em primeira pessoa. Por outro, o termo também se refere àquele que presenciou o acontecimento no lugar de um terceiro, vendo a situação, mas sem participação direta ou envolvimento pessoal. O seu testemunho serve para assegurar ou

53 verificar a existência de determinada situação. Considero esses dois sentidos, pois os relatos que analiso a seguir apresentam as duas dimensões. No caso do Testemunho da Verdade, organizado para que os “ex-presos” contribuíssem para esclarecer a morte de Mário Alves, ao lembrar a trajetória desse “militante” os depoentes acabam falando também sobre suas experiências. Tais narrativas, portanto, apresentam aspectos tanto em primeira pessoa quanto em terceira pessoa.

Como pude perceber, existem modos distintos de agir em relação à experiência traumática. Muitos sentiram uma enorme necessidade de falar sobre o que viveram, como aqueles que fazem parte do GTNM/RJ. Outros tiveram dificuldade em falar em virtude do sofrimento vivido.

Em seu trabalho de campo sobre a violação de corpos femininos no contexto de Partição da Índia, Veena Das (1999) aponta que tais experiências dolorosas podem não ser expressas necessariamente por meio de palavras, mas isso não significa que não possam ser narradas de outro modo. Assim, o silêncio pode também ser um discurso. Por meio dele, transmite-se alguma mensagem, mesmo que seja evitada a descrição específica dos eventos, bem como a particularidade de suas experiências.

Ideia semelhante pode ser vista, por exemplo, no depoimento de Dulce Pandofi na Comissão da Verdade. A depoente conta que fizeram “um pouco de tudo” com ela. Sem explicitar as violações que sofreu, procura silenciar essa experiência, não revelando por meio de palavras o que vivenciou na tortura. Ainda assim, ao não verbalizar o que significa esse “tudo”, ela transmite a ideia de que foram violações que ultrapassaram o limite do que pode ser dito. Dessa forma, como pretendo demonstrar, seu silêncio revela o seu sofrimento durante o período.

A separação entre o dizível e o indizível é tênue e há situações em que as memórias clandestinas e inaudíveis podem invadir o espaço público passando do “‘não- dito’ à contestação e à reivindicação” (POLLAK, 1989, p. 9). É nesse sentido que o testemunho ganha dimensões políticas e a CEV-Rio se torna um espaço de disputa pela memória.

A relação entre a voz e a memória se apresenta por consequência, uma vez que é por meio da memória que todos que vivenciaram o passado podem falar e expressar os seus traumas em espaços públicos. Ademais, é através desta que aqueles que não

54 viveram as violações podem construir uma comunidade emocional com os que foram violados.58

Conforme participava das atividades propostas pela CEV-Rio, pude perceber que, embora a maior parte dos presentes fosse de pessoas que estiveram envolvidas no combate a ditadura – seja de forma direta nos anos 1960 e 1970, ou ainda como “familiares” de mortos e “desaparecidos” –, muitos jovens também participaram ativamente dos eventos como membros de uma suposta comunidade emocional, levando cartazes, exigindo que as histórias do período sejam esclarecidas. Fazem, portanto, o exercício de que essas memórias não sejam esquecidas.

Não pretendo, com essa análise, afirmar que foi a partir da Comissão que a temática da ditadura se tornou recorrente no espaço social. Movimentos como o Tortura Nunca Mais/RJ são antigos no processo de construção social de uma memória. Entretanto, há que se levar em conta que a instauração dessas comissões abre novos espaços para que essa memória seja construída a partir dos testemunhos.

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