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CAPÍTULO 1 – DO LIVRO AO GÊNERO: LDP

1.2 QUESTÕES DE ABORDAGEM

1.2.2 O LDP como gênero do discurso

Como viemos pontuando até aqui, estamos sendo guiadas neste trabalho pela Teoria Bakhtiniana de Enunciação, elaborada por Bakhtin e seu Círculo, entendendo ser ela que nos permite uma abordagem da realidade plena do discurso em toda sua complexidade. Sendo coerentes com essa teoria, entendemos, a partir das reflexões de Bunzen (2005; 2009) e Bunzen e Rojo (2005), ser o LDP um gênero secundário do discurso, perspectiva que passamos agora a justificar mais detidamente.

Diferentemente de outras correntes da Linguística que têm como unidade básica da língua a oração ou a palavra, a Teoria Bakhtiniana afirma que “a utilização da língua efetua-se em forma de enunciados (orais e escritos), concretos e únicos, que emanam dos integrantes duma ou doutra esfera da atividade humana” (BAKHTIN, 1997[1979], p. 280). Como Rojo explica, as esferas

estão elas mesmas situadas historicamente, variando de acordo com o tempo histórico e as culturas locais (ou globais) [...] O funcionamento das

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esferas de circulação dos discursos define os participantes possíveis da enunciação (locutor e seus interlocutores) assim como suas possibilidades de relações sociais (interpessoais e institucionais). (ROJO, 2011, p. 12)

Cada enunciado, portanto, é condicionado34 pelas especificidades e finalidades próprias das esferas em que circula, seja, por exemplo, a esfera jurídica, científica, escolar, entre tantas outras em que as pessoas se organizam na vida em sociedade.

O enunciado reflete as condições específicas e as finalidades de cada uma dessas esferas,não só por seu conteúdo (temático) e por seu estilo verbal, ou seja, pela seleção operada nos recursos da língua — recursos lexicais, fraseológicos e gramaticais —, mas também, e sobretudo, por sua construção composicional. Estes três elementos (conteúdo temático, estilo e construção composicional) fundem-se indissoluvelmente no todo do enunciado, e todos eles são marcados pela especificidade de uma esfera de comunicação.(BAKHTIN, 1997[1979], p. 280).

Ainda que os enunciados possam ser considerados isoladamente, “cada esfera de utilização da língua elabora seus tipos relativamente estáveis de enunciados, sendo isso que denominamos gêneros do discurso”. (BAKHTIN, 1997[1979], p. 280). Como afirma o autor, os gêneros do discurso são tão importantes quanto as formas gramaticais, uma vez que “se não os dominássemos, se tivéssemos de criá-los pela primeira vez no processo da fala, se tivéssemos de construir cada um de nossos enunciados, a comunicação verbal seria quase impossível” (BAKHTIN, 1997[1979], p. 303).

Rojo (2011, p. 12) propõe o seguinte diagrama para sintetizar a Teoria dos Gêneros formulada por Bakhtin:

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Não de forma mecânica, entretanto, como Rojo enfatiza: “a enunciação não é determinada mecanicamente pelo funcionamento social das esferas, pois o que vai substancialmente definir a significação e o tema de um enunciado/texto é sobretudo a apreciação de valor ou a avaliação axiológica (ética, política, estética, afetiva; BAKHTIN/ VOLOCHÍNOV, 1981[1929]) que os interlocutores fazem uns dos outros e de si mesmos ou de seus lugares sociais e do conteúdo temático em pauta, que apreciado valorativamente, transforma-se em tema (irrepetível) do enunciado” (ROJO, 2011, p. 12).

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Figura 1 - Diagrama de síntese da Teoria de Gêneros (ROJO, 2011, p. 12)

Pelo quadro, vemos que as práticas de linguagem determinam e são determinadas pela situação de comunicação, que compreende o tempo e o lugar históricos e as relações sociais existentes entre os participantes. Essas práticas vão se realizar por meio de gêneros do discurso, cujo tema, forma composicional e estilo, marcado pelas unidades linguísticas, serão definidos pela esfera de circulação e a apreciação valorativa dos participantes em relação ao conteúdo temático, pois,como afirma Bakhtin, “a relação valorativa com o objeto do discurso (seja qual for esse objeto) também determina a escolha dos recursos lexicais, gramaticais e composicionais do enunciado” (BAKHTIN, 2003[1952-53/1979], p. 309).

Se fôssemos acrescentar o conceito de forma arquitetônica (BAKHTIN, 2003[1952-53/1979]), ao quadro, ele estaria entre a seta que liga a situação de comunicação ao gênero do discurso. É a forma arquitetônica que governa o modo como as inter-relações dialógicas e valorativas da situação de comunicação serão construídas no todo do gênero, por meio de sua forma composicional, “indissoluvelmente” ligada ao tema e estilo (BAKHTIN, 2003[1952-53/1979], p. 280).

Bakhtin organiza os gêneros do discurso em primários e secundários, ou ainda, em simples e complexos. Os gêneros primários constituem-se, geralmente, em “circunstâncias de uma comunicação verbal espontânea” (BAKHTIN, 1997[1979], p. 282)

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e têm uso mais imediato, podendo ser exemplificados por uma carta pessoal, um diálogo com familiares ou um recado deixado na geladeira. Os gêneros secundários estão normalmente vinculados à escrita e são elaborados “em circunstâncias de uma comunicação cultural, mais complexa e relativamente mais evoluída” (BAKHTIN, 1997[1979], p. 282).

O processo de formação dos gêneros secundários envolve a apropriação dos gêneros primários, que são absorvidos e transmutados para dar forma, por exemplo, ao romance, ao teatro, ao discurso científico, entre muitos outros. Nessa apropriação, os gêneros primários “perdem sua relação imediata com a realidade” (BAKHTIN, 1997[1979], p. 282), passando a ter sua forma e significação subordinadas ao gênero secundário que os integra. Mais do que um agrupamento de gêneros em um mesmo suporte, os gêneros secundários do discurso pressupõem uma inter-relação complexa dos gêneros primários, da qual emergem ideologias e visões de mundo.

Por isso, baseando-se nos estudos Bakhtinianos da intercalação de gêneros, Bunzen (2005) vai defender a interpretação do LDP como enunciado em um gênero secundário do discurso.

Se olharmos detalhadamente para o LDP, veremos que ele pode ser estudado como um gênero do discurso constituído por outros gêneros intercalados, assim como o romance (BAKHTIN, 1929-1963; 1934- 1935) ou o jornal, por exemplo. (BUNZEN; ROJO, 2005, p. 16)

Marcuschi, por outro lado, entende que o que ocorre no LDP “não equivale a uma transmutação do gênero na acepção de Bakhtin, mas a uma reunião de texto num determinado local (suporte)” (MARCUSCHI, 2003, p. 14). Para o autor,

o livro didático é um suporte e os gêneros que ali figuram mantém suas funções, embora não de forma direta, já que assumem o propósito de operarem naquele contexto como exemplos para produção e compreensão textual. (MARCUSCHI, 2003, p. 15)

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Esse entendimento, como vimos, dialoga fortemente com a interpretação dos historiadores da leitura, como Chartier, para quem texto35 e suporte podem ser analisados de modo independente, como categorias distintas, ainda que fortemente inter- relacionadas.Nessa perspectiva, porém, como procuramos apontar no item 1.2.1, a ênfase nos aspectos formais parece ser excessiva.

Nesse sentido, Bunzen explica:

Ao procurarmos entender esse processo múltiplo de encaixes em que textos em gêneros diversos estão envolvidos, a noção de suporte não nos pareceu a mais adequada, pois a ênfase, a nosso ver, é muito mais no objeto portador de texto e não na construção da rede intertextual, no dialogismo, nos alinhamentos que vão compor de forma múltipla esse gênero do discurso; mesmo nas análises que privilegiam o processo de edição e de recepção. (BUNZEN, 2005, p. 35)

O autor cita ainda o trabalho de Bonini (2003), a respeito da intercalação de gêneros no jornal, em que o autor parece sugerir que o suporte seria ele mesmo um componente do gênero, perspectiva que nos interessa tendo em vista nosso objeto, o projeto gráfico-editorial do LDP. Nas palavras do autor:

Todo o meio – incluindo veículo, suporte, emissor e receptor – entra no escopo da definição de determinado gênero. Nossa ação de linguagem ocorre dentro da linguagem, mas não dentro de um veículo, porque a estrutura física da interação também é tomada como linguagem (como cognição). (BONINI, 2003, p. 87)

Na perspectiva que compartilhamos com Bunzen e Bunzen e Rojo, portanto, o LDP pode ser produtivamente estudado

como enunciado num gênero discursivo, que apresenta, por determinação histórica, forma composicional complexa e cheia de

intercalações (BAKHTIN, 1934-35/1975) e estilo didático de gênero,

mas que permite, a cada locutor/autor (BAKHTIN, 1920-24/1979) comunicar seus temas em estilo próprio (BAKHTIN, 1952-53/1979), a partir das apreciações de valor (BAKHTIN/VOLOCHÍNOV, 1929) que exerce sobre esses temas e seus interlocutores (os professores, os alunos,

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Ressalte-se que, na perspectiva de Chartier, somos forçados a tomar texto e gênero como equivalentes, pois não parece ser interesse do autor se deter sobre essas noções, o que por si só leva a uma interpretação problemática.

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os avaliadores do Ministério, os editores). (BUNZEN; ROJO, 2005, p. 74- 75)

No LDP, portanto, gêneros diversos compõem a coletânea de textos e existem ainda exercícios, explicações, imagens e ilustrações, dentre outros elementos, intercalando- se a fim de constituir o objeto final, um livro didático para o ensino da língua materna que é também um enunciado em um gênero secundário do discurso “historicamente datado, que vem atender a interesses de uma esfera de produção e de circulação e que, desta situação histórica de produção, retira seus temas, formas de composição e estilo” (BUNZEN; ROJO, 2005, p. 74-75). Esse entendimento, além de teoricamente coerente, é também produtivo à medida que nos permite utilizar outros conceitos do Círculo de Bakhtin para que compreendamos melhor as tensões envolvidas na produção e utilização do LDP. Como Bunzen reforça:

Estudar o LDP como um gênero do discurso implica justamente procurar entendê-lo como um produto sócio-histórico e cultural em que atuam vários agentes (autores, editores, revisores, leitores críticos, professores, etc.), com certas relações sociais entre si, na produção e seleção de enunciados concretos com determinadas finalidades. (BUNZEN, 2005, p. 37)

Tomar o LDP como gênero discursivo, portanto, permite que analisemos seu projeto gráfico-editorial como constitutivo de sua forma composicional, principalmente, mas também, no todo do gênero, de seus temas e estilo. Assim como Bunzen, entendemos que essa abordagem do LDP nos permite

compreender a própria estrutura composicional desse gênero do discurso como multimodal/ imbricada/ múltipla, uma vez que ela é composta por uma rede em que os textos/enunciados concretos produzidos pelos autores dos livros didáticos dialogam com outros textos em gêneros diversos e com textos não-verbais (imagens, ilustrações, etc.), com a finalidade principal de ensinar determinados objetos. (BUNZEN, 2005, p. 44)

Passemos, então, no capítulo que segue, a uma descrição mais detalhada de nosso objeto, o projeto gráfico-editorial do LDP, e de seus elementos constitutivos, a fim de

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que possamos ter mais claro de que modo a materialidade do LDP pode ser analisada, no todo do gênero, em uma perspectiva enunciativo-discursiva.

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