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CAPÍTULO 1 – DO LIVRO AO GÊNERO: LDP

1.1 UM BREVE HISTÓRICO

1.1.2 Os livros escolares e livros didáticos

Delinear uma história dos livros escolares e didáticos é tarefa tão ou mais complexa que retomar a história do livro tradicional, porque esta primeira não se dissocia desta última, além de necessariamente relacionar-se à história da cultura escrita, da leitura e da escola. Em seu artigo “História dos livros e das edições didáticas: sobre o estado da

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Técnica de gravura talhada em metal. 14

Técnica de gravura em que a matriz é feita de ferro, zinco, cobre, alumínio ou latão. 15

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arte”, já citado em nossa introdução, Choppin logo de início vai destacar as dificuldades encontradas para traçar o panorama que se propõe a fazer, salientando que as pesquisas são recentes e ainda apresentam muitas lacunas. A justificativa que o autor dá para esse quadro é a seguinte:

se a história das edições didáticas só tem sido abordada recentemente, a despeito do peso econômico considerável do setor, é certamente porque os livros didáticos, desprezados por muito tempo pelos bibliógrafos e bibliotecários, ascenderam apenas tardiamente ao status de livro. (CHOPPIN, 2004, p. 563)

Como observa Geraldi, citado por Bunzen, “todo livro presta-se a ser utilizado para fins didáticos”, ou seja, para a “arte de ensinar16“, mas “isto não significa [...] que qualquer livro utilizado para fins didáticos possa ser considerado um livro didático” (GERALDI, 1987, p. 5 apud BUNZEN, 2001, p. 35). A diferenciação entre os livros que eventualmente podem ser utilizados em situações de ensino-aprendizagem e os livros feitos especificamente para participar desses processos muitas vezes não é tão óbvia.

Choppin parece compartilhar dessa opinião, pois afirma que outro problema encontrado para se esboçar uma história do livro didático está justamente na própria definição do objeto, a começar pelo vocabulário e usos lexicais:

Na maioria das línguas, o “livro didático” é designado de inúmeras maneiras, e nem sempre é possível explicitar as características específicas que podem estar relacionadas a cada uma das denominações, tanto mais que as palavras quase sempre sobrevivem àquilo que elas designaram por um determinado tempo. Inversamente, a utilização de uma mesma palavra não se refere sempre a um mesmo objeto, e a perspectiva diacrônica (que se desenvolve concomitantemente à evolução do léxico) aumenta ainda mais essas ambiguidades. (CHOPPIN, 2004, p. 549)

A variedade e extensão do corpus são igualmente desafiadoras. O autor propõe a distinção dos livros escolares em quatro tipos, como explicam Batista e Rojo (2005, p. 15): (i) os manuais ou livros didáticos, “obras produzidas com o objetivo de auxiliar no ensino de uma determinada disciplina [...] por meio da apresentação de um conjunto extenso de conteúdos do currículo [...] sob a forma de unidades ou lições”; (ii) os livros

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paradidáticos ou paraescolares, no Brasil, “obras que aprofundam ou enriquecem um conteúdo específico de uma disciplina [...] ou que se voltam para a formação do leitor”; (iii) livros de referência, “como dicionários, atlas e gramáticas” e (iv) edições escolares de clássicos, publicações comentadas de obras do cânone.

Por esses e outros motivos, os estados da arte ainda são raros e “não abrangem toda a produção didática nem todos os períodos” (CHOPPIN, 2004, p. 549). Além disso, como já observamos em nossa introdução, citando o mesmo autor, não são todos os aspectos dos livros escolares que são abarcados pelas pesquisas. A respeito do livro didático, especificamente, o projeto gráfico-editorial ainda parece ser um dos elementos menos explorados pelos pesquisadores, ainda que seja muito particular desse tipo de material, como procuraremos destacar.

Anne-Marie Chartier, em artigo sobre a história do ensino da leitura, principalmente no nível de alfabetização, conta que no Império Romano os materiais didáticos utilizados pelas crianças nas escolas municipais eram rolos manuscritos, para leitura, e uma pequena tábua de cera junto a um tipo de estilete, para a prática da escrita cursiva (CHARTIER, 2011, p. 61). Com o fim do Império Romano e o desaparecimento dessas escolas, modificam-se essas práticas.

A escrita cursiva romana desapareceu no século VIII, no momento em que as conquistas muçulmanas interrompem as trocas no Mar Mediterrâneo e reduzem o comércio às trocas locais. Ela reaparece somente no século XIII, quando a retomada do comércio urbano torna novamente indispensável uma escrita rápida. Veem-se nascer, então, “as escolas de ábaco”, onde os alunos vêm tomar lições para aprender a escrever/contar no idioma local. (CHARTIER, 2011, p. 62)

Já na Europa da Idade Média, a classe dos religiosos era uma das poucas a receber instrução contínua. Dentro dos mosteiros, embora textos seculares também fossem compilados e reproduzidos pelos monges, além da literatura religiosa, apenas esta última era utilizada no ensino dos monges iniciantes, que aprendiam a ler valendo-se de salmos, sermões e evangelhos (CHARTIER, 2011, p. 61).

No século XVI, com as reformas protestantes, o ensino volta a estender-se à população em geral, mas mantêm-se os métodos originados dentro dos mosteiros, como a

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recitação e memorização de textos religiosos e orações, agora impressos em livretos, posto que a essa altura, como vimos, a tipografia já havia sido inventada. Não se ensinava a escrever, só a ler, pois o papel era caro e “as plumas de ganso muito difíceis de manipular” (CHARTIER, 2011, p. 63).

No século seguinte, em 1679, segundo Moraes (2010), o humanista Comenius estipula em sua “Didactica Magna – Tratado universal de ensinar tudo a todos”, que “o meio mais adequado para ensinar a ler é a utilização de um livro que combine leituras adaptadas a cada idade com imagens” (MORAES, 2010, p. 39). O livro para fins didáticos deveria ser, portanto, pelo menos para os alunos menores, diferente do livro tradicional, de “texto corrido”. Ao próprio Comenius é atribuída a autoria do primeiro livro didático para crianças, o “Orbis Sensualium Pictus17”, publicado em 1658, que “apresentava imagens seguidas de texto em vernáculo (alemão) e latim, servindo para instruir sobre os assuntos tratados e ensinar a língua universal” (MORAES, 2010, p. 39).

Segundo Anne-Marie Chartier, entre os anos 1750 e 1850, “a leitura silenciosa, rápida, difunde-se ao mesmo tempo em que a leitura das novelas, dos jornais, das gazetas” (CHARTIER, 2011, p. 63). A partir de 1850, acompanhando o fenômeno dos livros de massa e a popularização da leitura, a escrita volta a ser ensinada nas escolas com o uso de ardósia e giz ou cadernos de papel de celulose e plumas metálicas – materiais já mais acessíveis no período – para os alunos maiores. Utilizavam-se ainda os manuais de leitura, mas com a novidade de que a “escrita cursiva aparece [...] ao lado das letras de imprensa” (CHARTIER, 2011, p. 64).

Michael Twyman (1990, s/p)18 explica que justamente nessa época, a partir do século XVIII e durante todo o século XIX, passou-se a dar muita importância ao que ele chama de “aprendizado através do olho19”. Novos materiais didáticos, além dos livros, popularizaram-se. Twyman cita como exemplo a publicação “Visão resumida da história e

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O mundo visível em imagens. 18

Mesmo contando mais de duas décadas, o trabalho de Twyman (1990) é indicado por Choppin (2004), em seu estado da arte, como uma das únicas referências a respeito da questão da tipografia e paginação como parte do discurso didático. O outro trabalho mencionado é “The schoolbook as a multimodal text”, de Theo Van Leeuwen (1992).

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literatura universais, em uma série de tabelas20”, de James Bell, lançada em Londres, em 1820, que consistia em “25 tabelas, em sua maioria em páginas duplas, no formato fólio real”, que também podiam ser “montadas em tecido, envernizadas e ligadas a rolos para exibição em paredes21” (TWYMAN, 1990, s/p).

Segundo o autor, o período foi rico também em inovações nos livros didáticos, que não se valiam mais do texto apenas e começavam a diferenciar-se dos livros tradicionais pelo uso da variação tipográfica (diferentes fontes, aplicação de negrito e itálico), pelo emprego de cores de modo sugestivo e pela inserção de tabelas, listas e gráficos. Twyman acrescenta que os autores geralmente redigiam manuais para acompanhar esses novos materiais, preocupados em explicá-los. Nesses manuais, as analogias mais comuns eram entre a “disposição gráfica da informação” que os autores propunham e os mapas e a cartografia, por exemplo, particularmente no que se referia ao “uso de cor com a finalidade de codificação de informação22” (TWYMAN, 1990, s/p).

O princípio que guiava esses autores pioneiros é bastante atual23. Twyman registra:

o uso no design do livro didático de tabelas, listas e outras configurações não-verbais (características extrínsecas da linguagem gráfica) e de ousadas variações tipográficas (características intrínsecas da linguagem gráfica) têm em comum – ao menos como objetivo – ajudar a reforçar a aprendizagem através da apresentação visual24 (TWYMAN, 1990, s/p)

No momento em que escrevia, Twyman fez questão de ressaltar que ainda não se havia investigado a fundo de que modo esse novo uso dos recursos gráficos associados ao texto, nos séculos XVIII e XIX, relacionava-se ou não ao modo como efetivamente se ensinava no período. Ele questiona, por exemplo, que não se sabe se essas novidades alteraram metodologias, modificando de fato os projetos dos livros didáticos, ou se foram uma resposta ao que já estava acontecendo no ensino. O autor também se pergunta se esse

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Compendious view of universal history and literature, in a serie of tables.(TWYMAN, 1990, s/p) 21

mostly double-page tables in Royal folio format; Mounted on calico, varnished, and attached to rollers for display on walls. (TWYMAN, 1990, s/p)

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use of colour for the purpose of coding information. (TWYMAN, 1990, s/p) 23

Falaremos de algumas tendências no design de livros didáticos especificamente no capítulo 2. 24

The use in textbook design of tables, lists, and other non-prose configurations (extrinsic features of graphic language) and of bold variants of type (intrinsic features of graphic language) have in common -- at least as an aim -- that they help to reinforce learning through their visual presentation. (TWYMAN, 1990, s/p)

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novo design dos livros didáticos apenas refletia mudanças mais gerais que aconteciam com relação aos livros tradicionais e outros materiais, pois, como já citamos, no mesmo período surge um maior interesse pela tipografia e aumentam consideravelmente o volume e a variedade de impressos disponíveis.

Uma maior consciência sobre quando exatamente o design do livro didático mudou na direção descrita aqui, e também em relação a determinados tipos de textos, pode ajudar a responder a algumas dessas questões.25 (TWYMAN, 1990, s/p)

A introdução dos livros didáticos totalmente ilustrados vai concretizar-se na Europa apenas ao longo do século XX, segundo o próprio Twyman, mas as questões que o autor levanta ainda não foram satisfatoriamente respondidas, seja para os livros e materiais didáticos dos séculos XVIII e XIX, seja para aqueles que temos disponíveis hoje e que, certamente, foram influenciados por essas primeiras iniciativas.