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CAPÍTULO 1 – DO LIVRO AO GÊNERO: LDP

1.2 QUESTÕES DE ABORDAGEM

1.2.1 O livro de Chartier e o livro de Bakhtin

Na obra do escritor argentino Jorge Luís Borges, de forma recorrente, o livro é tomado como metáfora, como símbolo. Sua aula da Universidade de Belgrano, da qual já citamos um trecho anteriormente, dedica-se inteiramente a refletir sobre essa interpretação mística do livro e um dos exemplos mais representativos que o autor utiliza é a dos livros sagrados. Logo no início de sua fala, Borges afirma:

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Certa vez, pensei em escrever uma história do livro. Não do ponto de vista físico. Os livros não me interessam fisicamente (sobretudo os livros dos bibliófilos, que costumam ser desmedidos), mas sim as diversas valorações que deles se têm feito. (BORGES, 1999, s/p.)

Baseando-nos nesse trecho, seria fácil concluir que Borges e Chartier pouco têm a dialogar; afinal, escrever uma história do livro do ponto de vista físico é justamente a tarefa a que se dedica o autor francês. Pelo contrário,entretanto, o autor argentino é uma das grandes referências das obras de Chartier. É o que ele mesmo vai mostrar, por exemplo, em sua Lição Inaugural do Collège de France para a Cátedra “Escrito e culturas na Europa moderna”, quando diz:

Borges é o cego que nos indica, na fulgurância poética da fábula, que as magias da ficção sempre dependem das normas e práticas do escrito que as habitam, apoderam-se delas e as transmitem. (CHARTIER, 2010, p. 19)

O autor escolhe a seguinte citação do argentino para explicar a perspectiva que lhe interessa na obra deste, a saber, a de atribuir “as variações do sentido das obras às mutações dos modos de ler”:

A literatura é coisa inesgotável, pela suficiente e simples razão que um só livro já o é. O livro não é uma entidade enclausurada: é uma relação, é o centro de inúmeras relações. Seja ela anterior ou posterior, uma literatura difere de outra, menos pelo texto do que pelo modo como ela é lida. (BORGES, s/d. apud CHARTIER, 2010, p. 23)

No mesmo texto, Chartier vai explicar como,no século XVIII, foi justamente um entendimento oposto ao de Borges que permitiu elaborar as noções modernas de autoria e propriedade intelectual:

foi somente quando as obras escritas foram separadas de qualquer materialidade particular que as composições literárias puderam ser consideradas como bens imóveis. Daí, o oximoro que faz designar o texto como uma “coisa imaterial”. Daí, a separação fundamental entre a identidade essencial da obra e a pluralidade indefinida de seus estados ou, para usar o vocabulário da bibliografia material, entre substantivas e acidentais, entre o texto ideal e transcendente, e as formas múltiplas de

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sua publicação. Daí, enfim, as hesitações históricas, que nos conduzem até o presente, a respeito das justificações intelectuais e dos critérios de definição da propriedade literária, a qual supõe que uma obra possa ser reconhecida como sempre idêntica a si mesma, qualquer que seja o modo de sua publicação e de sua transmissão. (CHARTIER, 2010, p. 17, ênfase adicionada)

A ênfase dos estudos de Chartier na materialidade dos livros parece responder diretamente, portanto, ao paradoxo que ele descreve acima. Por acreditar que uma obra é sim alterada por seus modos de produção e circulação é que o autor defende que se deve “vincular o estudo dos textos, quaisquer que sejam, com o das formas que lhes conferem a própria existência e com aquele das apropriações que lhes proporcionam o sentido” (CHARTIER, 2010, p. 14) e ainda que “o escrito é transmitido a seus leitores ou auditores por objetos ou vozes, cujas lógicas materiais e práticas precisamos entender” (CHARTIER, 2010, p. 14).

A proposta de Chartier não é completamente incoerente com a nossa, portanto, pois o autor procura enfatizar, na produção e recepção de uma obra, a importância do contexto e dos interlocutores envolvidos, aproximando seu entendimento da leitura do de uma prática de comunicação. Em uma perspectiva enunciativo-discursiva, porém, não é possível, como Chartier parece fazer, subordinar esses componentes à forma e aí reside a crítica que podemos fazer a sua interpretação.

Para o Círculo de Bakhtin, o livro é, tanto como o diálogo, uma forma de interação verbal:

O livro, isto é, o ato de fala impresso, constitui igualmente um elemento da comunicação verbal. Ele é objeto de discussões ativas sob a forma de diálogo e, além disso, é feito para ser apreendido de maneira ativa, para ser estudado a fundo, comentado e criticado no quadro do discurso interior, sem contar as reações impressas, institucionalizadas, que se encontram nas diferentes esferas da comunicação verbal (críticas, resenhas, que exercem influência sobre os trabalhos posteriores, etc.). Além disso, o ato de fala sob a forma de livro é sempre orientado em função das intervenções anteriores na mesma esfera de atividade, tanto as do próprio autor como as de outros autores: ele decorre portanto da situação particular de um problema científico ou de um estilo de produção literária. Assim, o discurso escrito é de certa maneira parte integrante de uma discussão ideológica em grande escala: ele responde a alguma coisa,

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refuta, confirma, antecipa as respostas e objeções potenciais, procura apoio, etc. (BAKHTIN/VOLOCHÍNOV, 2006[1929], p. 126, ênfase adicionada)

No trecho acima, Bakhtin/Volochínov caracteriza o livro como situado, dialógico, responsivo. Como representante legítimo, portanto, da comunicação verbal conforme Bakhtin a compreende.Ao abordar o problema do conteúdo, da forma e do material na criação estética, Bakhtin é bem claro em sua explanação:

De que se constitui a obra de arte? De palavras, orações, capítulos, talvez de páginas, de papel? No ativo contexto axiológico e criador do artista, todos esses elementos nem de longe [ocupam] o primeiro mas o segundo lugar, não são eles que determinam axiologicamente o contexto mas são por ele determinados. Com isso não se está questionando o direito de estudar esses elementos, mas a tais estudos indica-se apenas o lugar que lhes cabe na efetiva interpretação da criação como criação (BAKHTIN, 2003[1952-53/1979], p. 180, ênfase adicionada)

Pode-se dizer: as formas de visão e acabamento artístico do mundo determinam os procedimentos extraliterários e não o contrário; a arquitetônica do mundo artístico determina a composição da obra (a ordem, a disposição e o acabamento, o encadeamento das massas verbais) e não o contrário (BAKHTIN, 2003[1952-53/1979], p. 182, ênfase adicionada)

A materialidade do LDP, portanto, poderia ser um objeto de análise em uma perspectiva enunciativo-discursiva, mas desde que respeitados os procedimentos metodológicos estipulados pelo Círculo de Bakhtin, que visam a evitar uma dissociação entre forma e sentido, que não é possível– a não ser em tentativas artificiais – e por isso mesmo é indesejável. As regras metodológicas para a análise do signo, segundo Bakhtin/Volochínov, são as seguintes:

1. Não separar a ideologia da realidade material do signo (colocando-a no campo da “consciência” ou em qualquer outra esfera fugidia e indefinível).

2. Não dissociar o signo das formas concretas da comunicação social (entendendo-se que o signo faz parte de um sistema de comunicação social organizada e que não tem existência fora deste sistema, a não ser como objeto físico).

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3. Não dissociar a comunicação e suas formas de sua base material (infraestrutura) (BAKHTIN/VOLOCHÍNOV, 2006[1929], p. 43)

Delas, decorre o método sociológico bakhtiniano de análise:

A ordem metodológica para o estudo da língua deve ser o seguinte: 1. As formas e os tipos de interação verbal em ligação com as condições

concretas em que se realiza.

2. As formas das distintas enunciações, dos atos de fala isolados, em ligação estreita com a interação de que constituem os elementos, isto é, as categorias de atos de fala na vida e na criação ideológica que se prestam a uma determinação pela interação verbal.

3. A partir daí, exame das formas da língua na sua interpretação linguística habitual. (BAKHTIN/VOLOCHÍNOV, 2006[1929], p. 124)

Antes de pensarmos mais detalhadamente de que modo o método pode nos servir para a análise de nosso objeto, o projeto gráfico-editorial, cabe tornar mais claro o raciocínio que nos leva a entender o LDP como um enunciado em um gênero do discurso.