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4 A EDUCAÇÃO COMO DIREITO

4.1 O LUGAR DA ESCOLA NA POLÍTICA SOCIOEDUCATIVA

Como já abordamos nessa discussão, historicamente as políticas destinadas a crianças e adolescentes envolviam apenas os desvalidos, aqueles

que se encontravam em “situação irregular. Tinham por objetivo o controle social da população pobre, vista como perigo iminente. As instituições de internação criadas para assistir esses sujeitos, tinham por principal objetivo preservar a ordem pública, prevenindo ou corrigindo desvios, conforme relembra Albuquerque (2015). A proposta educativa de tais instituições, estava pautada na repressão, coerção, no intuito de se constituir a ordem, de se promover a civilidade, sem nenhuma preocupação com a formação humana ou construção da autonomia desses sujeitos. O advento do ECA provoca uma ruptura no olhar sobre a infância e adolescência e um redirecionamento nas políticas destinadas a esta população. A educação passou a configurar-se como um direito do público, incluindo de forma universal crianças e adolescentes. A efetivação desse direito não se restringe ao acesso ao sistema escolar através da efetivação da matrícula, mas, sobretudo, a garantir às crianças e aos adolescentes as condições necessárias para sua permanência na escola, uma escola que deverá propiciar uma educação gratuita e de qualidade (DIAS, 2013).

No entanto, as conquistas legais, em muitos aspectos, ainda não se tornaram realidade para muitos. Conforme argumenta Dias (2013, p. 73), “ainda há situações que revelam o hiato existente entre o direito assegurado na lei e o que de fato é realizado no cotidiano”. Apesar dos avanços legais, crianças e adolescentes são cotidianamente expostos à violação de direitos pela família, pela sociedade e pelo Estado.

A garantia do direito à educação escolar, por exemplo, tem avançado no que diz respeito à universalização do acesso, mas a permanência de crianças e adolescentes na escola ainda é um grande desafio. E quando se trata de autores de atos infracionais, as dificuldades são ainda maiores. As ações políticas desenvolvidas não têm sido capazes de garantir a democratização do acesso e a permanência desses sujeitos na escola. Segundo a autora, a própria trajetória de vida dos adolescentes infratores é marcada pelo fracasso e/ou exclusão escolar, dificuldades para efetivar matrículas, reprovações e evasão escolar.

Um levantamento sobre a situação da infância e da adolescência brasileira, realizado pelo Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF) em 20084, indicou que 51% dos adolescentes e jovens submetidos a MSE de 4 Dois anos depois da publicação da Resolução n° 119/2006 do CONANDA que institui o SINASE.

privação de liberdade não estavam frequentando a escola no período em que cometeram o ato infracional. Do total dos adolescentes privados de liberdade no período do levantamento, 76% possuíam idades entre 16 e 18 anos, dentre os quais 90% não havia concluído o Ensino Fundamental e, pelo menos 6% eram analfabetos (UNICEF, 2009).

Segundo analisa Dias (2013), no ambiente escolar se desenvolvem processos educativos, que contribuirão na formação das identidades dos seus educandos. Dentro ou fora das salas de aula, a escola funciona atribuindo parâmetros classificatórios dos alunos, ou seja, “fornece informações aos jovens sobre eles próprios”. Tais informações irão repercutir “positiva ou negativamente, na construção da identidade do aluno, apresentando desdobramentos fora do ambiente escolar”. O mesmo ocorre em relação aos adolescentes em conflito com a lei: a escola tem sido vista por eles como “uma das dimensões que contribui para a formação da sua identidade, autoconceito e autoestima”. Do mesmo modo, Oliveira (2015, p. 113) considera que a forma como esses sujeitos interpretam as experiências que são acumuladas ao longo das suas trajetórias de vida, estão interligadas as suas subjetividades e traduzem suas experiências no mundo da vida. A autora considera que “os modos de ser, de pensar e de viver individuais encontram-se ligados a um universo coletivo”. Ao longo de seus estudos, Dias (2013, p. 83) observou que a trajetória escolar dos adolescentes e jovens em conflito com a lei tem sido marcada “por constantes mudanças de escolas, expulsões, conflitos com colegas, discriminação, rotulação e violação de alguns direitos individuais, principalmente do direito à educação”.

Na perspectiva da autora, as experiências vivenciadas na escola marcam profundamente a vida do adolescente. A escola é um ambiente de intensa socialização, onde as diferenças convivem, é o lugar onde o estudante vai desenvolver suas capacidades motoras, linguísticas, onde se adquire referências que influenciarão seu modo de ver e viver a vida. Desta forma, o estudante que experimenta repetidamente o fracasso escolar sofre um processo de culpabilização e desvalorização de si mesmo. Fracassar na escola gera no estudante uma perspectiva de vida de fracassos.

A exclusão escolar e a violência estão lado a lado. O fracasso escolar pode estimular o estudante a desenvolver comportamentos agressivos, na mesma proporção em que as violências que estes sofrem afetam seu

desempenho escolar. É uma via de mão dupla, que gera um ciclo interminável de violações e violências.

Segundo acrescenta Dias (2013), esses sujeitos reconhecem a escola como importante na construção do seu projeto de vida. No entanto, as experiências negativas dentro da escola os conduzem a rejeita-la. Conhecer quais experiências eles têm vivenciado na sua trajetória escolar, pode ser uma alternativa para desenvolver pontualmente um trabalho educativo com os mesmos, resinificando a escola nas suas vidas e livrando-os do estigma da negatividade.

O SINASE foi constituído tendo como finalidade superar esse ciclo de violações. Atua sob a égide dos princípios educacionais em detrimento das práticas punitivas, o que deve ocorrer através de articulação entre a política do SINASE e as demais políticas sociais de forma a contribuir para se efetivar o Sistema de Garantias de Direitos do Socioeducandos, com ênfase no direito à educação – que deve ser estruturada de modo intersetorial e cooperativo, articulado às políticas públicas de assistência social, saúde, esporte, cultura, lazer, trabalho e justiça, entre outras. Fica estabelecida a obrigatoriedade da oferta da educação escolar no contexto das unidades de privação de liberdade. Esta oferta deverá seguir parâmetros específicos que foram instituídos pelas Diretrizes Nacionais para o atendimento escolar de adolescentes e jovens em cumprimento de medidas socioeducativas5. Deste modo, o atendimento escolar

de adolescentes e jovens em cumprimento de medidas socioeducativas está fundamentado nos seguintes princípios:

I - a prevalência da dimensão educativa sobre o regime disciplinar; II - a escolarização como estratégia de reinserção social plena, articulada à reconstrução de projetos de vida e à garantia de direitos; III - a progressão com qualidade, mediante o necessário investimento na ampliação de possibilidades educacionais; IV - o investimento em experiências de aprendizagem social e culturalmente relevantes, bem como do desenvolvimento progressivo de habilidades, saberes e competências; V - o desenvolvimento de estratégias pedagógicas adequadas às necessidades de aprendizagem de adolescentes e jovens, em sintonia com o tipo de medida aplicada; VI - a prioridade de adolescentes e jovens em atendimento socioeducativo nas políticas educacionais; VII - o reconhecimento da singularidade e a valorização das identidades de adolescentes e jovens; VIII - o reconhecimento das diferenças e o enfrentamento a toda forma de discriminação e

violência, com especial atenção às dimensões sociais, geracionais, raciais, étnicas e de gênero (BRASIL, 2016, art. 4).

Os princípios reafirmam a condição de sujeito de direitos dos adolescentes em conflito com a lei, colocando-os como prioridades nas políticas educacionais. Para que se efetive o cumprimento da oferta, a qualificação e a consolidação do atendimento escolar de adolescentes e jovens em cumprimento de medidas socioeducativas, a Resolução preconiza a participação dos entes federados, em regime de colaboração, de acordo com sua capacidade, bem como, as instituições de ensino, conforme suas atribuições nos termos da lei, devendo atuar de modo cooperado garantindo:

I - a inserção de ações voltadas para o atendimento escolar, no âmbito do SINASE, nos Planos Municipais, Estaduais e Distrital de Educação; II - a implementação de políticas, programas, projetos e ações educacionais para a qualificação da oferta de escolarização, no âmbito do SINASE, contemplando as diferentes modalidades e etapas do atendimento socioeducativo; III - a integração dos diferentes sistemas de informação para identificação da matrícula, acompanhamento da frequência e do rendimento escolar de adolescentes e jovens em atendimento socioeducativo; IV - o aperfeiçoamento e a adequação qualificada e contínua do censo escolar para atendimento às especificidades educacionais de adolescentes e jovens em cumprimento de medidas socioeducativas; V - a promoção da participação de adolescentes e jovens em atendimento socioeducativo em exames de larga escala, nacionais e locais, em especial aqueles voltados à produção de indicadores educacionais, à certificação e ao acesso à Educação Superior (op. cit., art. 5).

As condições de acesso, avaliação e monitoramento desses estudantes correspondem as mesmas as quais estão submetidos aqueles que frequentam a escola regular. Determina-se que os socioeducandos em regime de internação deverão contar com espaço de escolarização próprio, dispondo de infraestrutura adequada e recursos pedagógicos necessários, além de equipe pedagógica e administrativa qualificada, de modo a garantir a qualidade do ensino ofertado. Na impossibilidade de se ofertar qualquer ensino na modalidade que contemple as necessidades dos educandos, os mesmos deverão ser matriculados em instituição escolar fora da unidade de atendimento. A oferta do ensino para socioeducandos também está sujeita a algumas excepcionalidades, de modo a tender algumas especificidades desse público. Entre elas, podemos citar que é atribuído às escolas que funcionam em unidades de internação socioeducativa a elaboração de projeto político-pedagógico próprio, desenvolvido de forma

articulada ao projeto institucional da unidade em que está inserida, ainda em consonância com Diretrizes Curriculares Nacionais, e que garanta o cumprimento da carga horária mínima definida em lei.

As diretrizes curriculares obrigam os sistemas de ensino a assegurar a matrícula desses sujeitos a qualquer momento que se desenvolver a demanda, mesmo na ausência dos documentos de identificação. O estudante que se encontrava fora da escola, que não dispõe de documentos que comprovem sua trajetória escolar deverá ser submetido à avaliação diagnóstica, sendo inserido na etapa ou modalidade de ensino que melhor corresponda a seu nível de aprendizagem. Sendo vetado, em qualquer circunstância, a violação do direito à matrícula escolar.

Os profissionais envolvidos nesse processo deverão atuar efetivamente na garantia da permanência desses estudantes na escola, priorizando estratégias pedagógicas que possam superar todas as formas de preconceito e discriminação a que os adolescentes e jovens estejam sujeitos, conforme disposto no artigo 12. É responsabilidade do poder público investir no desenvolvimento e difusão dessas práticas pedagógicas inovadoras direcionadas a este público. O processo de escolarização desses sujeitos deverá atender os seguintes aspectos:

I - Oferta de educação integral em tempo integral; II - oferta de Educação Profissional; III - garantia do Atendimento Educacional Especializado (AEE) aos estudantes com deficiência; IV - acompanhamento pedagógico específico, garantido o sigilo; V - promoção de condições de acesso e permanência na Educação Superior; VI - participação de adolescentes, jovens e suas famílias nos processos de gestão democrática da escola (Op. cit., art. 114).

Assim como deve ocorrer na escola regular, o ensino ofertado nas escolas das unidades socioeducativas deve se pautar nos princípios da gestão democrática. Deste modo as famílias dos adolescentes e jovens que se encontram em atendimento socioeducativo tem direito à participação no processo de escolarização, e cabe aos sistemas de ensino criar condições para que esta participação possa se efetivar.

O documento ainda reivindica, em termos de cooperação, colaboração, parceria com instituições de Ensino superior para o desenvolvimento de ações

de pesquisa e extensão que possam contribuir com a criação, implementação e fortalecimento de políticas públicas educacionais no âmbito do SINASE.

Essa leitura crítica, da política e práticas desenvolvidas na educação escolar dos adolescentes e jovens em conflito com a lei, que nos propomos a realizar ao longo deste trabalho, representa nossa contribuição para esse processo.

Nesse contexto procuramos, de antemão, conhecer um pouco sobre a realidade desses sujeitos. Realizamos um levantamento de dados oficiais que constituem o cenário social de adolescentes e jovens, considerando as informações que mais interessam à nossa análise. Também procuramos apresentar algumas informações de como vem se estabelecendo a dinâmica das medidas socioeducativas ao longo dos anos. Tais informações são organizadas e analisadas estabelecendo comparativos entre o cenário nacional, regional – especialmente na Região Nordeste – e estadual – com destaque para o estado de Pernambuco.

5 O CENÁRIO SOCIAL DAS MEDIDAS SOCIOEDUCATIVAS E A