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3.3 História de vida: uma abordagem qualitativa de pesquisa

3.3.1 O método autobiográfico: um caminho rumo à compreensão do sujeito social

55 Esta seção tem por objetivo apresentar respostas para as seguintes questões: Quem são

os participantes dessa pesquisa? De onde eles vêm? De que forma podemos entender o

contexto de onde esses sujeitos emergem? Por que o método autobiográfico seria a melhor

opção para entendimento desses indivíduos? A última questão justifica o porquê da utilização

da abordagem metodológica autobiográfica nesta pesquisa.

O objeto de estudo desta pesquisa são sujeitos reais e concretos, vinculados a um

contexto social, regido por normas culturais. A linguagem opera como uma ponte entre esses

aprendizes e o contexto social, ou seja, através da linguagem, eles absorvem uma cultura

(crenças, valores, opiniões, atitudes, desejos, etc.), construindo, dessa forma, ao longo dos

anos, a sua identidade. O contexto dentro do qual o sujeito constrói a sua identidade é um

lugar regido por relações assimétricas de poder e ideologia. Logo, entendemos que o processo

de construção identitária não se dá de forma pacífica ou de maneira natural, mas sim, através

de conflitos, de desejos interiores: uma constante negociação entre um indivíduo e o meio

social onde a linguagem opera de maneira crucial.

Como podemos entender esse contexto social do qual fazem parte os participantes desta

pesquisa? O método autobiográfico se faz eficiente para obtermos uma resposta plausível a

essa questão. Tendo em mente que os espaços sociais são regulamentados por relações de poder e que o poder opera em instituições “tais como família, escola, religião, etc.”

(FOUCAULT, 1977), podemos identificar nos sujeitos, individualmente, por meio de suas

narrativas, traços e marcas da operação do poder que regula e estrutura um contexto macro

social (em relação a esses indivíduos especificamente). Dessa forma, pela análise individual

das narrativas dos participantes dessa pesquisa (sujeitos pertencentes à classe social menos

favorecida), chegamos a uma melhor compreensão de seu contexto. Concordo com Ferrarotti

(1991), quando o autor argumenta que para entendermos a relação entre individuo e sociedade

56 começar pelas perspectivas dos indivíduos que, por sua vez, as sintetizam horizontalmente (o seu contexto social imediato, o contexto do seu contexto, etc.) e verticalmente (a sucessão cronológica do seu impacto nas diferentes regiões de mediação: a família, o grupo de pares das crianças e companheiros de escola, etc.). Devemos, sobretudo, identificar as regiões mais importantes, estas regiões que servem como articulações giratórias entre as estruturas e os indivíduos, os campos sociais nos quais a práxis dos homens auto-objectivada e o esforço universalizante do sistema social se encontram e se confrontam de modo mais directo (FERRAROTTI, 1991, p. 174, grifo do autor).

São os pequenos grupos, denominados por esse autor de grupos primários (famílias,

grupos de pares, colegas de emprego, vizinhos, parceiros de escola ou os amigos, etc.) que “participam ao mesmo tempo na dimensão psicológica dos membros que os constituem, e na

dimensão estrutural do sistema social” (FERRAROTTI, 1991, p. 174). Não quero dizer

categoricamente que todos os indivíduos que pertencem àquele contexto social (classe social

menos favorecida) pensam de maneira única e de forma homogênea. O que quero realmente

mostrar é que, através do método autobiográfico, podemos vislumbrar como a sociedade (dos

participantes desta pesquisa) é estruturada e como o poder opera em cada individuo, forçando-

o à homogeneização e à aceitação do status quo operante dentro daquele contexto social

específico.

São sujeitos cheios de desejos, crenças, ambições, ambivalentes, cambiantes, situados

em um contexto social regido por relações assimétricas de poder que este estudo tenta

compreender por meio do método autobiográfico. Segundo Nóvoa (1995), “a nova atenção

concedida às abordagens (auto) biográficas no campo científico é a expressão de um

movimento social mais amplo (...). Encontramo-nos perante uma mutação cultural que, pouco

a pouco, faz reaparecer os sujeitos face às estruturas e aos sistemas, a qualidade face à quantidade, a vivência face ao instituído” (NÓVOA, 1995, p. 18 grifo do autor). Dominicé

(2006, p. 354) argumenta que “em época de crise, um trabalho de reconfiguração biográfica se

tornou imperativo”. Bueno (2002) salienta que a construção identitária “passa a se constituir,

57 teóricas e das propostas que realimentam a área a partir dessa viragem” (BUENO, 2002, p.

13) de transformações metodológicas.

Então, o que é e em que consiste o método autobiográfico? Finger (1988, p. 84) enfatiza

que o método autobiográfico é um procedimento que dá ao pesquisador a oportunidade de desenvolver “uma compreensão que desenrola no interior da pessoa, sobretudo em relação a

vivências e a experiências que tiveram lugar no decurso da sua história de vida”. Bolívar

(2002, p. 111) enfatiza que “narrar a história de vida é uma auto interpretação do que somos,

uma encenação através da narração”. De acordo com esses autores, ao narrar a própria

história, o indivíduo entra em um processo de autorreflexão sobre suas experiências sociais

históricas, como essas experiências têm colaborado para a sua construção identitária. Os

sujeitos ressignificam o presente, pois ao contar a sua história, eles refletem e interpretam

suas experiências, ou seja, a autoconsciência é acionada para produzir a sua formação. Eles

passam a entender melhor a si mesmos e, ao mesmo tempo, procuram possibilidades de

emancipação intelectual e social ao problematizar o que lhes é familiar e natural, criticando,

buscando alternativas e abertura para mudanças (MASTRELLA, 2007, p. 119). A vida é um

processo de formação e a autobiografia, além de descrever a trajetória de vida do sujeito, “é fonte de compreensão das respostas e ações no contexto presente” (BOLÍVAR, 2002, p.176).

Através do método autobiográfico, procura-se compreender a personalidade, atitude,

comportamento, crenças e desejos dos pesquisados e como esses sujeitos constroem e

compreendem a realidade social a sua volta.

A última questão que esta seção contempla se refere ao porquê do uso da abordagem

autobiográfica. Ao narrar as suas experiências como aprendizes de línguas, suas lutas para se

apropriarem desse capital simbólico (inglês), os participantes desta pesquisa usam a

linguagem. Foram notórias as expressões de medo, contentamento, tristezas, alegrias, triunfos

58 língua inglesa. Eles estavam registrando “sentimentos, testemunhos, visões, interpretações em

uma narrativa entrecortada pelas emoções do ontem, renovadas ou ressignificadas pelas emoções do hoje” (DELGADO, 2006, p.18). De acordo com Nóvoa (1995) “a construção de

identidades passa sempre por um processo complexo graças ao qual cada um se apropria do sentido da sua história pessoal” (NÓVOA, 1995, p. 16). Ao relatar as suas experiências, os

aprendizes de línguas não estavam apenas usando a linguagem para transmitir algo: eles

estavam rememorando um passado que lhes propiciava uma compreensão de si mesmos no

tempo presente, ou seja, ao narrar, eles estavam reconstruindo e redefinindo, através da

linguagem, as suas identidades. Dessa forma, o método biográfico utilizado neste estudo se

mostra apropriado à teoria que subjaz a esta pesquisa em dois pontos: o primeiro se refere à

língua como constitutiva da realidade social, pois ao falar estamos construindo e não apenas

transmitindo algo; e o segundo refere-se à identidade como construção, portanto múltipla,

híbrida, cambiante e nunca como algo fixo, predeterminado e acabado.

O referencial teórico deste trabalho justifica o porquê da escolha do método história de

vida, uma vez que esta pesquisa pretende investigar como a aprendizagem de inglês contribui

para a formação da identidade do aprendiz de classe social menos favorecida. O sujeito que constrói relação com a língua inglesa é um sujeito híbrido “uma vez que ao voltar-se para seu

passado e reconstituir seu percurso de vida o indivíduo exercita sua reflexão e é levado para uma tomada de consciência tanto no plano individual como no coletivo” (BUENO, 2002, p.

23).

Por último, gostaria de fazer uma pequena menção à questão da lembrança. Delgado

(2006) enfatiza que passado e presente estão intrinsicamente interligados no processo de rememoração onde “múltiplas variáveis temporais, topográficas, individuais, coletivas

dialogam entre si” (DELGADO, 2006, p.16). Nós só lembramos porque o contexto nos lança

59 passadas, fazendo-nos recorrer a elas para ressignicar as situações conflituosas presentes.

Exteriorizamos o nosso pensamento através da linguagem e, mais uma vez, é importante

ressaltar o seu poder. Sobre esse assunto, Mastrella (2007) comenta que “a linguagem não

simplesmente descreve as lembranças, mas as constitui; o sujeito não apenas expressa as

lembranças, mas as elabora, as constrói; não apenas veicula sentimentos, idéias, emoções,

sonhos, mas através dela cria, organiza, dá sentido às suas experiências (MASTRELLA,

2007, p. 121, grifo da autora). Faço minhas as palavras de Mastrella (2007), pois acredito

também no caráter performativo da linguagem (AUSTIN, 1990, 1995; BUTLER, 1997),

como já apresentado anteriormente. Diante do exposto até agora, pergunto: Qual método seria

mais apropriado para produzir e permitir a coleta das lembranças dos aprendizes de línguas,

senão o método autobiográfico?