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2.1 O percurso metodológico 80

2.1.1 O método na abordagem histórico-cultural 81

Em suas proposições, Vygotsky (1991, p. 69-70) defende a ideia de que o elemento chave da abordagem do estudo e interpretação das funções psicológicas superiores do homem que também serve como base dos novos métodos de experimentação e análise consiste na posição de que, na abordagem dialética, o sujeito é influenciado pela natureza, age sobre ela e cria, mediante mudanças provocadas por ele na natureza, novas condições naturais para a sua existência.

Esta visão, apresentada por Vigotski (1991, p. 74), está vinculada a diretrizes metodológicas que buscam atender a duas teses básicas de seus estudos: de que a gênese das funções psicológicas está nas relações sociais e de que a constituição do funcionamento humano é socialmente mediada pelo outro e pelos signos. Vigotski concebe o estudo do homem na qualidade de ser que se constitui imerso na cultura e como produtor-intérprete de sistemas semióticos. São, desta forma, recorrentes em sua obra conceitos como signo, palavra e linguagem, especificidades do humano. Sobre o funcionamento humano, dentre as diretrizes metodológicas que Vigotski explorou, “[...] estava incluída a análise minuciosa de um processo, de modo a configurar sua gênese social e as transformações do curso de

eventos.” (GÓES, 2000, p. 11). Este autor apresenta uma visão ampla da investigação histórico-cultural, com destacado nível nos detalhes dos processos.

Para Vygotsky (1991), o requisito básico de um método dialético é estudar o referido corpo ou objeto de estudo no processo de mudança, descobrindo sua natureza e sua essência em seu tempo, pois é somente em movimento que um corpo mostra o que é, e nesta forma de investigação a historicidade é fundamental. O referido autor afirma que

Estudar algo historicamente significa estudá-lo em movimento. Esta é a exigência fundamental do método dialético. Quando em uma investigação abarca- se o processo de desenvolvimento de algum fenômeno em todas as suas fases e mudanças, desde que surge até que desapareça, isso implica explicitar sua natureza, conhecer a sua essência, já que somente em movimento demonstra o corpo que existe. Assim, a investigação histórica da conduta não é algo que complementa ou ajuda o estudo teórico, senão que constitui seu fundamento. (VYGOTSKI, 1995, p. 67-68) [Tradução nossa].

O método dialético visa a revelar as relações dinâmicas ou causais reais subjacentes ao fenômeno, indo além de sua aparência, captando as mediações que o determinam e o constituem. Nesse sentido, o estudo considera “[...]não somente o final da operação, mas também a sua estrutura psicológica específica.” (VYGOTSKY, 1991, p. 84, grifo do autor). Para Vygotsky, os princípios que formam a base da análise das funções psicológicas superiores são: análise do processo, e não de objetos; análise explicativa, e não descritiva, que revela as relações dinâmicas ou causais reais; uma análise genética que volte ao seu ponto de partida, quer e construa todos os pontos e faça retornar à origem o desenvolvimento de uma determinada estrutura. Assim, o resultado do desenvolvimento será uma forma qualitativamente nova que aparece no processo de desenvolvimento (VYGOTSKY, 1991; VYGOTSKI, 1995).

Desta forma, para Vigotski (1991, 1995), o objeto e o método de investigação mantêm uma estreita relação, o que faz com que o método de conhecimento se configure como parte essencial de uma concepção teórica; o método é, ao mesmo tempo, pré-requisito e produto, o instrumento e o resultado do estudo. Sob essa abordagem, o método de conhecimento determina não só o objetivo da pesquisa, mas também o caráter e a natureza da investigação.

A forma como é conduzida a investigação reflete uma espécie de diálogo entre a pesquisadora, os sujeitos investigados – os quais não são abordados de uma forma neutra- e os teóricos consultados. Os diálogos estabelecidos não se esgotam. O pesquisador está imerso em valores, interesses e princípios, e estas suas marcas se mostram na condução da

pesquisa, na produção dos novos conhecimentos e/ou da própria ciência. É preciso que entendamos que em nenhum momento, de acordo com Caraça (1998), a ciência pôde atingir a essência última da realidade. Para este autor,

A ciência não tem, nem pode ter, como objetivo descrever a realidade tal

como ela é. Aquilo a que ela aspira é a construir quadros racionais de interpretação

e previsão, a legitimidade de tais quadros dura enquanto durar o seu acordo com os resultados da observação e da experimentação. (CARAÇA, 1998, p. 108, grifo do autor).

Para Caraça (1998), a ciência deve ser considerada como um instrumento forjado pelos homens, como um instrumento ativo de penetração no desconhecido, cujo objetivo final é a formação de um quadro ordenado e explicativo dos fenômenos naturais, sejam eles do mundo físico ou do mundo humano, individual e/ou social. Na produção da ciência, a todo momento, a atividade teórica (razão) e a atividade prática (observação e experimentação) estão em mútua ação, o que faz com que nenhuma interpretação esteja isenta do real, como também que nenhuma experiência esteja desacompanhada da atividade racional que a inspira e a orienta.

A realidade a ser compreendida pelos homens apresenta duas características: a interdependência– a realidade é um organismo vivo cujos compartimentos comunicam e participam uns da vida dos outros, relacionam-se intrinsecamente entre si – e a fuência– o mundo está em permanente evolução, todas as coisas, a todo momento, se transformam, tudo devém, tudo é, a todo momento, uma coisa nova –, que devem ser consideradas na produção de um conhecimento novo (CARAÇA, 1998).

Estudar algo dialeticamente é estudá-lo nas interações e no processo de mudança, considerando sua historicidade e sua totalidade. A totalidade no sentido aqui exposto não significa todos os fatos, significa:

[...] realidade como um todo estruturado, dialético, no qual um fato qualquer (classe de fatos, conjunto de fatos) pode vir a ser racionalmente compreendido... Os fatos são conhecimentos da realidade se são compreendidos como fatos de um todo dialético [...], se são entendidos como partes estruturais do todo. (KOSIK, 1985 apud ARAÚJO; MOURA, 2008, p. 95).

Estas partes estruturais do todo são interdependentes e evoluem. Desta forma, colocamo-nos diante de alguns embaraços, também apresentados por Caraça (1998): como fixar a atenção num objeto particular de estudo? Como encontrar, no movimento da interdependência e da fluência, os fatos ou os próprios objetos de estudo?

Para tanto, reportamo-nos a Caraça quando propõe para tal problema o conceito de isolado. Diz:

Na impossibilidade de abraçar, num só golpe, a totalidade do universo, o observador recorta, destaca, dessa totalidade, um conjunto de seres e fatos, abstraindo de todos os outros que com eles estão relacionados.

A um tal conjunto daremos o nome de isolado; um isolado é, portanto, uma secção da realidade, nela recortada arbitrariamente. (CARAÇA, 1998, p. 112, grifo do autor).

O conceito de isolado, nessa abordagem, significa o integrante do todo, como uma secção da realidade que conserva “[...] todos os fatores que, ao se interdependerem, têm influência marcante no fenômeno a estudar.” (MOURA, 2004, p. 267). Caraça (1998, p. 112) chama a atenção para o fato de que na observação de certo fenômeno ou no decurso de uma dada ação, pode surgir um fato inesperado que não fora convenientemente determinado, mas que é um fator dominante no estudo. Porém, como o próprio termo sugere, o inesperado não pode ser previsto, mas sua importância coloca-se no gerar de novas relações e de novas sínteses. Nesse sentido, o surgimento do inesperado, de acordo com Moura (2004, p. 267), torna-se um relevante fator que contribui para o desenvolvimento da ciência.

O isolado como uma secção afasta uma parte do resto da realidade; o seu uso comporta, assim, certa margem de erro que influencia o estudo. Cabe, então, ao pesquisador selecionar isolados que conservem todos os fatores dominantes, ou seja, aqueles cuja ação de interdependência influem no fenômeno a estudar.

Há situações, ainda, em que o estudo se encaminha de tal forma que há a necessidade de considerar um isolado como elemento constitutivo de outro mais amplo29, o que, de acordo com Moura (2004, p. 267), pode “[...] servir de referencial para análise de fenômenos mais complexos.” Para a recomposição de certos compartimentos da realidade, Caraça (1998) indica a necessidade de constantemente construir cadeias de isolados, de modo que cada elo da cadeia corresponda a um nível de isolado, o que dá indicativos de que os níveis de isolados se interdependem. Contudo, “[...] não há uma relação hierárquica entre os isolados, tanto do ponto de vista temporal, quanto qualitativo, mas sim uma relação dialética entre eles.” (ARAÚJO, 2003, p. 67).

Para Moura (2004), Caraça toma o conceito de isolado

[...] para analisar mudanças qualitativas delimitando parte de um todo de modo que seja possível acompanhar com mais objetividade as mudanças qualitativas no seu interior. Essas mudanças, ainda segundo o autor, são realizadas movidas por determinadas ações que se interatuam, promovendo um movimento qualitativo nos elementos que tomam parte do isolado. (MOURA, 2004, p. 261).

A análise a partir de isolados implica recortes do todo, considerando as relações de interdependência e de fluência, de maneira que cada parte está no todo e o todo está em cada parte.

Mas quais relações podem ser estabelecidas entre o conceito de isolado e a pesquisa que desenvolvemos? Em nossa investigação, tomamos para estudo parte do fenômeno significação de conceitos matemáticos pelo acadêmico em formação profissional, consideramos a mediação na constituição de processos que visam à significação do conceito vetor com tratamento da geometria analítica por acadêmicos de cursos de Engenharia. O referido fenômeno é consoante com o problema central da pesquisa. Assumimos, assim, como isolados, o significado da mediação na significação do conceito vetor com tratamento da geometria analítica pelo acadêmico em formação profissional de engenheiro: sentidos produzidos no processo de mediação na significação do conceito vetor por acadêmicos e a atividade em aulas da disciplina de Geometria Analítica e Vetores. Elementos destes isolados, no nosso entendimento, apresentam singularidades, mas também uma dinâmica relacional entre si, não de uma forma hierárquica, mas dialética, tanto do ponto de vista temporal quanto qualitativo. Como afirma Araújo (2003), nesse sentido, os isolados são considerados como princípio da metodologia dialética, em que se toma uma unidade que faz parte do todo para análise.

À medida que apreendemos a dinâmica expressa no movimento da interdependência e da fluência dos isolados, visando às possibilidades de análise, os isolados são explicitados na forma de episódios. Como episódio, tomamos o conceito apresentado por Moura (2004, p. 267):

Os episódios poderão ser frases escritas ou faladas, gestos e ações que constituem cenas que podem revelar interdependência entre os elementos de uma ação formadora. Assim, os episódios não são definidos a partir de um conjunto de ações lineares. Pode ser que uma afirmação de um participante de uma atividade não tenha um impacto imediato sobre os outros sujeitos da coletividade. Esse impacto poderá estar revelado em um outro momento em que o sujeito foi solicitado a utilizar-se de algum conhecimento para participar de uma ação no coletivo. O pesquisador, tal como produtor de cinema, é que faz a leitura dessas várias ações, que parecem isoladas, à procura das interdependências reveladoras do modo de formar-se.

Entendemos, assim, que episódios são classes de fatos e/ou situações que explicitam empiricamente o fenômeno. Como o fenômeno considerado na presente investigação considera a mediação na significação conceitual pelos acadêmicos em formação profissional, entendemos que os episódios selecionados não são quaisquer episódios, mas aqueles que, de alguma forma, retratam o referido fenômeno. Assim, indicamos que os episódios selecionados são episódios de mediação. Episódios de mediação aqui são entendidos como aqueles que possibilitam interpretações das ações humanas como social e semioticamente mediadas, ou seja, aqueles que contemplam a relação sujeito-conhecimento-sujeito.

O conteúdo dos episódios será apresentado por um conjunto de cenas selecionadas dentre os dados construídos com o objetivo de revelar as ações de mediação na significação do conceito vetor pelos acadêmicos. As cenas consideradas retratam fatos/situações/acontecimentos/produções vinculados à significação do conceito vetor por acadêmicos em aulas da disciplina de Geometria Analítica e Vetores. A partir dos dados construídos, buscamos entender não só o que o fenômeno apresenta, mas também os indícios necessários para a sua revelação. Assim, na presente tese, assumimos o conceito de isolado, de episódio de mediação e de cenas, a partir do significado apresentado, para a produção, organização e discussão dos dados.

2.1.2 Os sujeitos, o cenário da pesquisa e os procedimentos metodológicos na e para a