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2. NÃO HÁ EDUCAÇÃO EM DIREITOS HUMANOS SEM O DIREITO

2.1 A EDUCAÇÃO COMO UM DIREITO

2.1.1 O Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova

Em meio ao contexto de reordenamento político e econômico decorrente da Revolução de 193015, foi deflagrado no Brasil um amplo movimento em defesa da renovação educacional. A assunção do Governo Provisório ensejou uma reestruturação da infraestrutura administrativa, com o objetivo de consolidar os princípios do novo regime, que culminou na

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“Em outubro de 1930, o Governo do Presidente Washington Luiz era derrubado por um movimento armado que se iniciava ao sul do país e tivera repercussões em vários pontos do território brasileiro. Esse movimento era um dos aspectos assumidos pela crise do desenvolvimento, crise que vinha de longe, acentuando-se nos últimos anos da década de 1920. Na verdade, o que se convencionou chamar Revolução de 1930 foi o ponto alto de uma série de revoluções e movimentos armados que, durante o período compreendido entre 1920 e 1964, se empenharam em promover vários rompimentos políticos e econômicos com a velha ordem social oligárquica. Foram esses movimentos que, em seu conjunto e pelos objetivos afins que possuíam, iriam caracterizar a Revolução Brasileira [...]. Através desses movimentos e, sobretudo, através da Revolução de 1930, o que se procurou foi um reajustamento constante dos setores novos da sociedade com o setor tradicional, do ponto de vista interno e, destes dois, com o setor internacional, do ponto de vista externo.” (ROMANELLI, 1978, p. 47).

criação de novos Ministérios, dentre eles, o Ministério da Educação e Saúde Pública16, para o qual foi designado como titular Francisco Campos (ROMANELLI, 1978).

O conjunto de decretos promulgados no bojo da Reforma Campos, como ficou conhecida, encetou a criação do Conselho Nacional de Educação17; regulamentou a organização do ensino superior, adotando o regime universitário no Brasil18; regulou a estrutura da Universidade do Rio de Janeiro19; organizou o ensino comercial, estatuindo a profissão de contador20, e o ensino secundário21.

Não obstante tenha pioneiramente fixado diretrizes válidas para todo o território nacional, destinadas aos ensinos secundário, comercial e superior, a Reforma Campos não incluiu em seu programa os ensinos primário e normal. Tampouco contemplou as demais ramificações do ensino médio profissional, “[...] perdendo a oportunidade que o contexto oferecia de criar um sistema de ensino profissional condizente com a ideologia do desenvolvimento que então ensaiava seus primeiros passos na vida política nacional.” (ROMANELLI, 1978, p. 142).

Por outro lado, o modo como foram estruturados os ensinos secundário e comercial foi estático, inviabilizando a mobilidade entre ambos os sistemas, atribuindo ao primeiro, função essencialmente propedêutica, e ao segundo, à formação destinada ao exercício das profissões liberais (ROMANELLI, 1978). Ademais, a reforma não previu a ampliação da oferta de ensino, antes estabeleceu um processo rigidamente seletivo como condição de ingresso, contribuindo para a elevação da evasão dos alunos das escolas. Todos estes aspectos imprimiram à Reforma Campos um caráter profundamente excludente e elitista (ROMANELLI, 1978).

Publicado em 1932, o Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova se constitui, portanto, como uma “[...] crítica à escola existente, que se caracterizava, [...] pela seletividade

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“[...] instituído logo após a tomada do poder, no ano de 1930. Era esse Ministério a primeira das grandes realizações práticas, mas, diga-se de passagem, não constituía propriamente uma novidade, já que no início da República ele existira, embora tivesse tido curta duração.” (ROMANELLI, 1978, p. 131).

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BRASIL. Decreto nº 19.850, de 11 de abril de 1931.

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BRASIL. Decreto nº 19.851, de 11 de abril de 1931.

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BRASIL. Decreto nº 19.852, de 11 de abril de 1931.

20 BRASIL. Decreto nº 20.158, de 30 de junho de 1931. 21

social do grupo a que se dirigia, pela formação educacional de tipo apenas propedêutico, por conteúdos de caráter formalista, pela separação entre o ensino e as atividades humanas.” (ROCHA, 2001, p. 122).

Os signatários22 do Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova (1932) afirmam neste documento que, passados 43 anos de promulgação da República, o país ainda não havia conseguido implementar “[...] uma educação universal, tanto no acesso como na capacidade de seleção e qualificação do ensino. Portanto, na crítica à incapacidade da República em realizar o seu fundamento jurídico-político de Estado laico, neutro e universal aos seus cidadãos. [...].” (ROCHA, 2001, p. 122).

À época, o “movimento de reconstrução nacional” foi sistematicamente criticado pela Igreja Católica, que detinha o monopólio das escolas e concorria com o Estado no que concerne à educação da população brasileira. Além de recear a perda do controle da educação, o grupo liderado pelos católicos considerava os princípios de laicidade e coeducação, reivindicados pelos renovadores, ultrajantes aos preceitos afirmados pela educação católica (ROMANELLI, 1978, p. 143).

Segundo o Manifesto, a educação no Brasil não poderia constituir-se enquanto um direito de todos, se o Estado abstraía dos princípios da universalidade, obrigatoriedade e gratuidade de sua oferta, enquanto um dever que lhe competia garantir formalmente. Além de assegurar estes princípios, a educação também deveria ser laica, evitando com isso que a escola se convertesse em “instrumento de propaganda de seitas e doutrinas” (MANIFESTO, 1932), e garantir aos alunos de ambos os sexos o direito às mesmas oportunidades educacionais, “pondo-os no mesmo pé de igualdade” (MANIFESTO, 1932).

A insuficiência da rede pública para atender a demanda educacional da população, ensejou a coexistência de ambos os sistemas de educação (público e privado); entretanto, naquela conjuntura, o critério de seleção da matrícula na rede privada não se restringia a capacidade meritória do aluno, mas constituía-se em um privilégio dos que por ela podiam

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26 intelectuais assinam o Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova, dentre eles, destacamos: Fernando de Azevedo, Anísio Teixeira, Afrânio Peixoto, Lourenço Filho, Roquette Pinto, Delgado de Carvalho, Hermes Lima e Cecília Meireles.

pagar, contribuindo para perpetuar os “quadros de segregação social” (MANIFESTO, 1932) vigentes.

Tal como defendido pelos renovadores, o postulado do direito à educação é inexequível caso “se constitua em privilégio das elites” (ROMANELLI, 1971, p. 143); por esta razão, o movimento renovador defende a institucionalização e a expansão da escola pública e gratuita, “[...] reconhecendo a todo o indivíduo o direito de ser educado até onde o permitam as suas aptidões naturais, independente de razões de ordem econômica e social.” (MANIFESTO, 1932), em defesa da igualdade de acesso para todos, assim expressa:

Em nosso regime político, o Estado não poderá, decerto, impedir que, graças à organização de escolas privadas de tipos diferentes, as classes mais privilegiadas assegurem a seus filhos uma educação de classe determinada; mas está no dever indeclinável de não admitir, dentro do sistema escolar do Estado, quaisquer classes ou escolas, a que só tenha acesso uma minoria, por um privilégio exclusivamente econômico. Afastada a ideia de monopólio da educação pelo Estado, num país em que o Estado, pela sua situação financeira, não está ainda em condições de assumir a sua responsabilidade exclusiva, e em que, portanto, se torna necessário estimular, sob sua vigilância, as instituições privadas idôneas, a ‘escola única’ se entenderá entre nós, não como ‘uma conscrição precoce’, arrolando, da escola infantil à universidade, todos os brasileiros, e submetendo-os durante o maior tempo possível a uma formação idêntica, para ramificações posteriores em vista de destinos diversos, mas antes como a escola oficial, única, em que todas as crianças, de 7 a 15 anos, todas ao menos que, nessa idade, sejam confiadas pelos pais à escola pública, tenham uma educação comum, igual para todos. (MANIFESTO, 1932).

Assim, em contraposição à “escola tradicional”, “artificial”, “verbalista” e socialmente excludente (1932), o Manifesto defende a escola única, laica, gratuita, obrigatória e comum (coeducação dos sexos), como princípios decorrentes da sua “[...] verdadeira função social, preparando-se para formar ‘a hierarquia democrática’ pela ‘hierarquia das capacidades’, recrutadas em todos os grupos sociais, a que se abrem as mesmas oportunidades de educação” (MANIFESTO, 1932); nesta perspectiva, defende o Manifesto que a educação deveria ser formalmente promovida e subsidiada pelo Estado como uma questão de interesse público e como um direito humano.

O Manifesto enfatiza ainda que os programas de ensino devem ser compreendidos no curso da evolução social e histórica de cada sociedade. Assim, o advento da produção urbano- industrial então emergente no Brasil, termina por converter a educação em uma imperiosa necessidade social e econômica; por esta razão, o substrato do “novo sistema de educação”

(MANIFESTO, 1932) é caracterizado pelo trabalho, que no bojo do Manifesto não se caracteriza apenas como “[...] o método que realiza o acréscimo da produção social, [o trabalho] é o único método suscetível de fazer homens cultivados e úteis sob todos os aspectos.” (MANIFESTO, 1932). Segundo Teixeira,

[...] o aparecimento da chamada educação nova, do trabalho, ativa ou progressiva, que mais não é do que a percepção de que a formação do homem comum, ou melhor, a formação de todos os homens não podia obedecer aos mesmos métodos de formação de uma classe especial de estudiosos, eruditos, intelectuais ou cientistas. A escola chamada tradicional, com a sua organização, ou seu currículo, ou seus métodos, somente teria eficiência para o tipo muito especial de alunos, a que sempre servira, isto é, aqueles muito capazes e que se destinassem a uma vida de estudos literários ou científicos. Ora, nenhuma nação pode pretender formar todos os seus cidadãos para intelectuais. E como nenhuma escola também seria capaz disso, a escola comum, intelectualista e livresca, se fez uma instituição mais ou menos inútil para a maioria dos seus alunos. (TEIXEIRA, 1976, p. 36, 37).

Sob a ótica do movimento renovador, a República não logrou estabelecer relações entre as reformas econômicas e educacionais, ocasionando no âmbito educacional uma “[...] sucessão periódica de reformas parciais e frequentemente arbitrárias, lançadas sem solidez econômica e sem uma visão global do problema, em todos os seus aspectos [...].” (MANIFESTO, 1932). Neste sentido, este documento atribui a causa da situação de desorganização do aparelho educacional à ausência nos planos de governo da definição dos fins de educação e dos meios materiais que encerram sua concretização (MANIFESTO, 1932).

Nesta perspectiva, defende o Manifesto que a afirmação da educação enquanto direito é insuficiente, pois a sua efetivação reivindica a garantia formal dos recursos necessários à sua realização, através da “[...] instituição de um ‘fundo especial ou escolar’, [...] administrado e aplicado exclusivamente no desenvolvimento da obra educacional, pelos próprios órgãos de ensino, incumbidos de sua direção.” (MANIFESTO, 1932), dotando o sistema educacional “[...] de uma ampla autonomia técnica, administrativa e econômica [...].” (MANIFESTO, 1932).

Para tanto, o Manifesto propõe a descentralização técnica e administrativa do sistema educacional, transferindo para os estados da federação a responsabilidade com a gestão da educação, em todos os seus níveis, desde que respeitados os “[...] princípios gerais fixados na

nova constituição, que deve conter, com a definição de atribuições e deveres, os fundamentos da educação nacional.” (MANIFESTO, 1932). À União caberia acompanhar os estados quanto ao cumprimento das diretrizes outorgadas na constituição, subsidiando-os em suas necessidades, “[...] por meio de estudos, inquéritos, demonstrações e subvenções.” (BRASIL, 1934, art. 150º, letra e). De acordo com o Manifesto,

A organização da educação brasileira unitária sobre a base e os princípios do Estado, no espírito da verdadeira comunidade popular e no cuidado da unidade nacional, não implica um centralismo estéril e odioso, ao qual se opõem as condições geográficas do país e a necessidade de adaptação crescente da escola aos interesses e às exigências regionais. Unidade não significa uniformidade. A unidade pressupõe multiplicidade. Por menos que pareça, à primeira vista, não é, pois, na centralização, mas na aplicação da doutrina federativa e descentralizadora, que teremos de buscar o meio de levar a cabo, em toda a República, uma obra metódica e coordenada, de acordo com um plano comum, de completa eficiência, tanto em intensidade como em extensão. (MANIFESTO, 1932).

A crítica apresentada no Manifesto contra o sistema educacional vigente consiste na ausência de articulação e de continuidade na organização do ensino preconizadas na reforma Francisco Campos, ocasionando a criação de “[...] sistemas escolares paralelos, fechados em compartimentos estanques e incomunicáveis, diferentes nos seus objetivos culturais e sociais, e, por isto mesmo, instrumentos de estratificação social.” (MANIFESTO, 1932).

Neste sentido, o Manifesto propõe que o ensino primário seja articulado ao secundário, sendo este organizado de modo a oferecer uma “[...] sólida base comum de cultura geral (três anos), para a posterior bifurcação (dos 15 aos 18), em seção de preponderância intelectual [...], e em seção de preferência manual, ramificada por sua vez, em ciclos, escolas ou cursos destinados à preparação às atividades profissionais, [...].” (MANIFESTO, 1932).

No que concerne ao ensino superior, o Manifesto defende que seja organizado de modo a desempenhar a tripla função que lhe é inerente, a saber: a produção, a transmissão e a propagação das artes e do conhecimento científico (MANIFESTO, 1932), integrando, desse modo, o ensino, a pesquisa e a extensão. Assinala ainda o Manifesto a necessidade de investir maciçamente na formação de professores, que devem possuir formação universitária, sem o quê, a proposta de reorganização do sistema, tal como formulada, será inexequível (MANIFESTO, 1932).

Importa destacar que as propostas defendidas tanto no projeto de renovação educacional, apresentadas pelo Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova, como no anteprojeto constitucional23 resultante da 5ª Conferência Nacional da Associação Brasileira de Educação (ABE), converteram-se em referência na elaboração das questões educacionais abordadas na Carta Constitucional de 1934 (ROCHA, 2001). Segundo Guiraldelli Junior,

O anteprojeto da ABE [...] não reproduzia todas as reivindicações que apareceram, quanto à política educacional, no Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova de 1932. [...] Tratou-se de, segundo o documento da ABE, no máximo, colocar para a União a tarefa de elaborar um ‘plano nacional de Educação’, determinar a forma de manutenção do ensino público através da fixação das percentagens da renda dos impostos da União, Estados e Municípios e, por fim, criar os Conselhos de Educação ao nível federal e estaduais. (GUIRALDELLI JUNIOR, 2009, p. 73, 74).

Embora fossem distintas as suas reivindicações, ambos os documentos foram definidos como “[...] o pensamento educacional mais completo e coerente articulado naquele espaço constituinte.” (ROCHA, 2001, p. 122).