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4 MARXISMO E TENSÕES EUROCÊNTRICAS NA AMÉRICA LATINA E NO

4.3 O marxismo no PCB e o modelo democrático-burguês

A conversão do modelo democrático-burguês em esquema geral a ser a adotado por países coloniais, semicoloniais e dependentes, em conformidade com o Programa adotado no VI Congresso da Komintern em 1928, encontrou condições propícias para sua aceitação no contexto brasileiro. Konder argumenta que a tendência ao ecletismo favoreceu a combinação entre marxismo e positivismo durante os primeiros anos do PCB, o que redundou na reiteração de uma concepção etapista da história. Por sua vez, essa síntese no plano filosófico convergiu com algumas ideias vigentes no campo historiográfico, sobretudo no que se refere ao argumento que caracterizava o Período Colonial como feudal. Embora carecendo de uma fundamentação teórica que sustentasse a tese feudal, alguns dos principais intelectuais do IHGB, como Varnhagen, Capistrano de Abreu24 e Oliveira Vianna, consideravam a colonização seria caracterizada pelo feudalismo. Dessa maneira, embora o modelo democrático-burguês tivesse uma premissa metrocêntrica, no início de sua recepção no Brasil encontrou uma tradição intelectual nacional que favoreceu sua aclimatação. Com isso, desde suas primeiras formulações os marxistas mobilizaram a tradição do pensamento social brasileiro para interpretar o país, fomentando o debate sobre a Revolução Brasileira.

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Particularmente é preciso atentar para as ambiguidades da questão feudal na obra de Capistrano de Abreu, conforme discutido no primeiro capítulo desta tese. Deve-se acrescentar que Capistrano forneceu os elementos que vieram a ser desenvolvidos por seu amigo João Lúcio de Azevedo sobre os ciclos econômicos da colonização portuguesa. Essa noção foi amplamente disseminada junto aos intelectuais brasileiros que contestaram a tese feudal, dentre eles Roberto Simonsen, Caio Prado Jr. e Celso Furtado. Por isso, Capistrano converteu-se em referência entre os defensores e os críticos da tese feudal.

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Embora a ideia de Revolução Brasileira tenha reverberado mais intensamente no país entre 1958 e 1964, suas origens estão atreladas à adoção do modelo democrático-burguês pelo PCB. Conforme Anita Leocádia Prestes (2013), desde o final da década de 1920 o PCB adotava as diretrizes fornecidas pela Komintern para os países classificados como coloniais e semicoloniais, as quais apontavam para a necessidade do estabelecimento de uma revolução de caráter anti-imperialista e antifeudal no Brasil. Ainda conforme a autora, a definição do caráter “democrático-burguês” do programa revolucionário assumido pelo PCB refletiria o mimetismo vigente entre os comunistas da época, pois essas formulações consistiam em transposições para o Brasil das teses de Lenin sobre a Rússia czarista, as quais fundamentaram sua proposição de uma revolução democrático-burguesa em 1905 (PRESTES, 2013).

A preocupação com a interpretação da realidade a fim de propiciar uma fundamentação teórica para a ação política remete praticamente ao período em que se iniciou a organização do movimento comunista no país. Com isso, apresentava-se como dilema fundante dos teóricos vinculados ao PCB o embate entre a necessidade de compreender a sociedade brasileira, mas em consonância com convenções gerais que muitas vezes impossibilitavam a apreensão das especificidades do país. As opções feitas pela maior parte dos intelectuais comunistas perante esse dilema resultaram em soluções que tendiam a reiterar uma compreensão eurocêntrica da formação da sociedade brasileira. Apesar de formular a questão em outros termos, ao fim e ao cabo, a crítica que Caio Prado Jr. elaborou em seu livro A Revolução Brasileira possibilita apreender como os equívocos decorrentes de uma interpretação eurocêntrica a respeito da formação da sociedade brasileira tiveram consequências políticas devastadoras para os comunistas. Para compreender as relações transtextuais constitutivas da posição defendia por Prado Jr., bem como suas tensões eurocêntricas, deve-se atentar mais detidamente para as formulações teóricas que fundamentaram o modelo democrático-burguês pecebista.

Como já salientado, a principal expressão teórica do marxismo durante seu período de “consciência política pré-crítica” (MORAES, 2007b), foi o livro publica do por Octávio Brandão em 1926. Agrarismo e Industrialismo. Ensaio marxista-leninista sobre a revolta de São Paulo e a guerra de classes no Brasil detém o status de primeira interpretação do Brasil em bases marxistas. Para despistar a repressão governamental, além da utilização do pseudônimo de Fritz Mayer, Brandão indicou que a impressão havia ocorrido em Buenos Aires. Trata-se de um texto que inaugura a recepção do modelo democrático-burguês como matriz marxista de interpretação do Brasil, onde se argumenta que haveria no país “dois

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mundos que se chocam: o feudalismo e o industrialismo”, em que o “industrialismo despedaçará o feudalismo” e, posteriormente, “o comunismo despedaçará o industrialismo burguês” (MAYER, 1982[1926], p. 263).

Moraes (2007a; 2014) observa que o livro é facilmente criticável pela fragilidade dos argumentos, indicando que, décadas depois, o próprio Brandão apontaria erros no texto. Conforme observado no tópico anterior, na época em que foi publicado Agrarismo e Industrialismo, o acesso às ideias marxistas nos país era bastante precário. Certamente a escassez de material para um estudo mais sistemático do materialismo histórico contribuiu significativamente para as limitações do livro. Apesar dessas dificuldades, o trabalho trouxe algumas inovações para época. Para Moraes, seu pioneirismo deve-se não apenas à utilização da diretriz etapista de Stalin para a interpretação dos fenômenos históricos do país, mas também pela precursora utilização do termo “marxismo-leninismo” para designar a doutrina inspiradora do seu trabalho. Nesse sentido, ressalta que a “fórmula ‘marxismo-leninismo’ [...] só seria lançada na URSS no final da década” e que “em 1924, nem Stalin nem qualquer outro dirigente do comunismo internacional designava o corpus teórico-doutrinário de seu movimento de pela expressão ‘marxismo-leninismo’” (MORAES, 2007a, p. 140).

A revolta aludida no subtítulo do livro de Brandão foi a chamada “Revolta Paulista de 1924”, levante tenentista contra o governo de Artur Bernardes. De acordo com Boris Fausto (2002), Bernardes encontrou problemas com as forças armadas ainda na campanha presidencial de 1921, pois vazaram na imprensa duas cartas supostamente de sua autoria que continham ofensas aos militares, mas cuja falsificação foi posteriormente comprovada. Além disso, a animosidade intensificou-se com a decisão de Bernardes de utilizar tropas do Exército para intervir na política local pernambucana, o que ocasionou protestos do Clube Militar que prontamente foi fechado pelo governo ao ser considerado uma associação nociva à sociedade, levando ao surgimento do movimento tenentista. A primeira manifestação foi o levante dos Dezoito do Forte de Copacabana, em 1922 (FAUSTO, 2002).

Fausto (2002) indica que exatamente dois anos depois, no dia 5 de julho, como homenagem aos tenentes massacrados no Rio de Janeiro, iniciou-se a revolta paulista, comandada pelo General Isidoro Dias Lopes, que durou até o dia 27 de julho. Houve intensa batalha pelo controle de São Paulo, que chegou a ficar sob o domínio dos tenentistas. Mediante intervenção dos setores das forças armadas que não aderiram ao movimento, a rebelião foi debelada e muitos dos insurretos sobreviventes fugiram para o interior do estado, formando uma “coluna paulista” que se dirigiu para o Paraná. Em 1925 os tenentes vindos de São Paulo juntaram-se com uma coluna vinda do Rio Grande Sul, onde também ocorreu um

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levante tenentista, formando-se a Coluna Prestes (FAUSTO, 2002).

Portanto, o ponto de partida da análise de Octávio Brandão são esses acontecimentos do levante tenentista de 1924, que posteriormente originou a Coluna Prestes. Sua premissa básica é que o conflito resultou do antagonismo entre duas diretrizes, o agrarismo e o industrialismo. A sociedade brasileira seria dominada pelo agrarismo rural de cunho feudal, representado pelo governo de Artur Bernardes. Devido ao domínio da “política de fazendeiros de café, instalados no Catete”, haveria no país uma “oposição burguesa desorganizada”, na medida em que a “burguesia industrial e comercial [era] politicamente nula”, pois seu “atraso político é tamanho que a burguesia industrial ainda não formou o seu partido, enquanto o proletariado já conseguiu forjar o seu partido desde 1922” (MAYER, 1982[1926], p. 256). O “atraso político” da burguesia brasileira, decorrente do predomínio do agrarismo, fez com que o industrialismo fosse manifesto apenas indiretamente mediante o impulso “antifeudal” da pequena burguesia, que ganhou vazão com o tenentismo. Assim, a pequena-burguesia surgiria como aliada natural da burguesia. Deve-se notar, ainda, que o confronto entre agrarismo e industrialismo estaria relacionado também à disputa de interesses entre o imperialismo inglês, que apoiaria o governo, e o imperialismo estadunidense, favorável à industrialização (KONDER, 1988; SILVA, 2007; MORAES, 2014).

Conforme observa Angelo José da Silva (2007), em Agrarismo e Industrialismo a análise desse conflito abrange a compreensão das dimensões econômicas, políticas e psicológicas. Para Brandão, “a economia nacional é dominada pelo café” e, por conseguinte, “a política, a psicologia e a hierarquia social reinantes são cafeeiras”, na medida em que “o país está envenenado pelo agrarismo” (MAYER, 1982[1926], p. 157). Destarte, sua caracterização da sociedade brasileira é sintetizada da seguinte forma:

Dominado por esse agrarismo econômico, bem centralizado, o Brasil tinha de ser dominado pelo agrarismo político, consequência direta daquele. O agrarismo político é dominação política do grande proprietário. O grande proprietário no Brasil é o fazendeiro de café, de São Paulo e Minas. O fazendeiro de café, no Sul, como o senhor de engenho, no Norte, é o senhor feudal. O senhor feudal implica a existência do servo. O servo é o colono sulista das fazendas de café, é o trabalhador de enxada dos engenhos nortistas. A organização social proveniente daí é o feudalismo na cumieira e a servidão nos alicerces. Idade Média. A consequência religiosa é o catolicismo, a religião que predominou na Idade Média [...]. E a consequência psicológica: no alto, o orgulho, a mentalidade aristocrática, feudal; em baixo, a humildade. Como tudo isto combina! A economia é a base social, a camada sobre a qual se superpõe a política, a sociologia, a moral, a religião, a arte, a filosofia, a história, a antropologia. A economia é em sociologia o que o granito é em geologia (MAYER, 1982[1926], p. 256-257).

Tem-se nessa formulação uma expressão bastante esquemática do modelo democrático-burguês ao traçar um explícito paralelo entre a República Velha e a Idade Média

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europeia. Dessa maneira, Brandão procede em acordo com os parâmetros indicados por Löwy (2012) ao caracterizar o eurocentrismo no pensamento marxista latino-americano, destacadamente ao buscar correspondências entre cada um dos elementos constituintes da história brasileira e o processo histórico europeu. Ademais, também chama atenção o metrocentrismo na maneira como o método dialético é utilizado. Konder (1988) observa que Brandão serviu-se de uma concepção dialética baseada na tríade tese, antítese e síntese, na qual Artur Bernardes representaria a tese, ao expressar os interesses do agrarismo feudal, ao passo que Isidoro Dias Lopes seria a antítese, pois representaria a pequena burguesia e por tabela o capital industrial ainda enfraquecido politicamente. A síntese seria a revolução do proletariado que conduziria o país ao comunismo, a ser desencadeado por uma crise que ocorreria em um futuro próximo25 (KONDER, 1988). Para além das simplificações formais incutidas nessa tríade, interessa indicar que sua utilização se orienta pelo pressuposto da identidade das características históricas do Brasil e da Europa, o que exclui a especificidade do caráter colonial da formação do país, decorrendo daí uma perspectiva metrocêntrica.

É importante notar que em Agrarismo e Industrialismo não se tem apenas a influência da dogmática soviética, embora constitua a principal expressão da “consciência política pré- crítica” do marxismo no Brasil (MORAES, 2007b). Dessa maneira, o texto de Brandão apresenta relações transtextuais (GENETTE, 2010) com alguns temas correntes no pensamento social brasileiro nas primeiras décadas do século XX, como observa Ângelo José da Silva ao afirmar que:

É neste sentido que podemos assinalar a influência de Euclides da Cunha visível nas linhas de Agrarismo e industrialismo. A raça e o meio, temas centrais em Os sertões, percorrem o texto de Brandão. Não podia ser diferente, afinal, Euclides da Cunha pode ser considerado divulgador de ideias progressistas para aquele período e Brandão foi se apoiar em ideias que, além de marxistas, poderiam sustentar sua crítica à realidade brasileira (SILVA, 2007, p. 143).

Silva (2007) não detalhou como ocorreu a apropriação de Euclides da Cunha mediante as questões da “raça” e do meio, mas Konder (1988) coloca de maneira mais explícita como se expressou o debate racial no trabalho de Brandão:

Até preconceitos raciais emergem no pensamento de Octávio Brandão. Ele lamenta que o Brasil seja prejudicado pela proliferação dos “intermediários”, em geral. Os “intermediários” – explica – são “tipos que, geralmente, não possuem as qualidades dos extremos, tendo os defeitos de ambos”. E aponta os diversos “intermediários”

25 Apesar de afirmar que essa proposição de Brandão é excessivamente esquemática, Moraes (2014) ressalta seu

mérito ao prever que aquela conjuntura redundaria em um conflito político mais intenso. Efetivamente as disputas envolvendo os tenentistas e os agraristas vieram a contribuir para a significativa mudança no ordenamento oligárquico do poder pautado pela política dos governadores, não obstante seu desenlace não tenha correspondido ao trunfo dos comunistas.

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que existem no nosso país: “étnicos como os mulatos e caboclos, econômicos como os quitandeiros e lojistas, religiosos como os espíritas e teósofos” (KONDER, 1988, p. 148).

Ao imputar um caráter problemático ao que denomina de “intermediários”, que em termos étnicos corresponderiam aos mestiços, Brandão incorreu em uma opinião bastante comum naquele período. Conforme observa Lilia Schwarcz (2012[1993]), com o fim da escravidão e da monarquia, a questão racial assumiu o centro das reflexões em diferentes searas do conhecimento, como a Medicina, o Direito e a História. Nesse ínterim, o problema da miscigenação assumiu contornos bastante peculiares, pois “no Brasil as teorias [raciais] ajudaram a explicar a desigualdade como inferioridade, mas também apostaram em uma miscigenação positiva, contanto que o resultado fosse cada vez mais branco” (SCHWARCZ, 2012[1993], p. 39). Dentre os partidários dessa perspectiva no pensamento social brasileiro daquele período, destacam-se alguns dos intelectuais mais influentes na República Velha, como Sylvio Romero, Nina Rodrigues, Oliveira Vianna e Paulo Prado.

Dessa forma, percebe-se que tipos mestiços como mulatos e caboclos também eram vistos com desconfiança por Paulo Prado (2001[1928]), defensor de uma perspectiva racial eugênica. Analogamente, Oliveira Vianna (1973[1919]), adepto da ideia de “arianização” da população brasileira, apontava a população mestiça como o principal elemento que contribuiria para a persistência da tendência dispersiva da organização social brasileira, pautada em uma política assentada no mandonismo local e caracterizado pela solidariedade de clã. Aliás, Konder (1988) observa que a explicação de Brandão sobre o desenvolvimento histórico do Brasil pauta-se pela dicotomia entre centralização e descentralização, que é um dos principais motes da interpretação de Vianna (1973[1919]). Portanto, é plausível afirmar que as indicações de Brandão coadunam com a ideia do mestiço como um elemento que representaria um entrave para o desenvolvimento do país, ecoando argumentos permeados pela colonialidade do poder vigentes no meio intelectual brasileiro, embora seu intento fosse emancipatório.

Destarte, a abordagem dada por Brandão à questão racial relaciona-se com o ecletismo que caracterizou o início da apropriação do marxismo no Brasil, conforme observação de Konder (2009[1984]). Assim, ao apontar o mestiço como um problema, inadvertidamente Brandão reforçava os fundamentos doutrinários da dominação que estava combatendo. No entanto, conforme salienta Silva (2007), os pressupostos de sua explicação sobre a formação da sociedade brasileira estavam assentados em uma concepção materialista, diferenciando-se da maioria dos seus contemporâneos, adeptos do determinismo racial e/ou ambiental. Ainda

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assim, mesmo recusando essas perspectivas, Brandão apropriou-se das classificações raciais do seu tempo. Nesse sentido, a despeito de ter procurando seguir à risca as diretrizes soviéticas, o intelectual e dirigente comunista recorreu à tradição intelectual brasileira para formular seus argumentos, sendo possível apontar a existência de relações metatextuais (GENETTE, 2010) com Oliveira Vianna e Euclydes da Cunha ao discorrer sobre a formação do país. Com isso, sua interpretação do Brasil incorpora elementos hegemonicamente dominantes junto à intelectualidade nacional, reiterando o eurocentrismo mediante a articulação entre o modelo democrático-burguês soviético e a inferiorização da população mestiça presente nos discursos “científicos” elaborados durante a República Velha.

Como ocupava uma posição de destaque no PCB na década de 1920, atuando como dirigente do partido, vereador no Rio de Janeiro e intelectual, as ideias defendidas em Agrarismo e Industrialismo influenciaram de maneira significativa as diretrizes dos comunistas brasileiros e até mesmo alguns sul-americanos. A tese feudal defendida por Brandão contribui para o fomento do modelo democrático-burguês no Brasil. Já a maneira como Brandão compreendia a questão racial no país estava tão disseminada entre os principais quadros do PCB que repercutiu em Buenos Aires durante a I Conferência Comunista da América Latina, ocorrida em 1929. A respeito desse evento chama atenção o texto publicado por Mariátegui e Pesce (2010[1929]), que naquela oportunidade obtiveram dos demais participantes informações que subsidiaram sua compreensão sobre a questão racial na América Latina. Particularmente no que concerne ao Brasil, as informações colhidas serviram para os marxistas peruanos determinarem a situação dos negros26.

Mariátegui e Pesce iniciam sua exposição constatando a grande presença de negros na América Latina, com destacada concentração em Cuba, Antilhas e Brasil. Afirmam que, enquanto a maior parte da população indígena estaria vinculada à agricultura, os negros trabalhariam nas indústrias. Particularmente no que concerne ao caso brasileiro, afirmam que haveria uma pequena quantidade de negros “puros”, mas que o contingente de pessoas mulatas era bastante alto. Mariátegui e Pesce diferenciam a população mulata conforme a tonalidade da pele, indicando que “los negromulatos [...] constituyen un 30 por ciento de la población, son numerosos en todo el litoral y se encuentran especialmente concentrados em algunas regiones, como en Pará”27 (MARIÁTEGUI, PESCE, 2010[1929], p. 88), informando

26 Mariátegui e Pesce não nomeiam quem foi o informante da comitiva do PCB, referindo-se a ele apenas como

“el compañero delegado del Brasil” – “o companheiro delegado do Brasil” (MARIÁTEGUI, PESCE, 2010[1929], p. 88).

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Em livre tradução: “os negro-mulatos que constituem 30 por cento da população, são numerosos em todo o litoral e se encontram especialmente concentrados em algumas regiões, como no Pará”.

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também haver uma significativa quantidade de mulatos com pele mais clara.

Além disso, com base no relato do comunista brasileiro, os peruanos reportam que “El cruzamiento se hace cada día más intensamente, produciendo tipos cada vez más claros desde que no vienen al país, desde cerca de medio siglo, inmigrantes negros”28, indicando que “El preconcepto contra el negro asume reducidas proporciones. En el seno del proletariado, éste no existe. En la burguesía, em ciertas capas de la pequeña burguesía, este mal se deja percibir”29 (MARIÁTEGUI, PESCE, 2010[1929], p. 88). Os marxistas peruanos acrescentam que no Brasil não haveria um ódio racial, sendo possível constatar a presença de negros e mulatos na burguesia nacional, diferindo da situação conflituosa vivenciada nos EUA. Isto posto, concluem que “no se podrá hablar en rigor, en el Brasil, de preconceptos de razas”30 e, consequentemente, “La situación de los negros en el Brasil, no es de naturaleza tal como para exigir que nuestro partido organice campañas reivindicatórias para los negros, con palabras de orden especiales”31 (MARIÁTEGUI, PESCE, 2010[1929], p. 89). Com isso, Mariátegui e Pesce apontam que a presença negra na América Latina constitui um importante fator econômico e social, mas que suas reivindicações coincidem com as demandas de suas classes, sendo desnecessária a elaboração de um programa específico voltado para esse segmento da população (MARIÁTEGUI, PESCE, 2010[1929]).

Dessa maneira, Mariátegui e Pesce reportam e corroboram a problematização da questão racial brasileira apontada pelo delegado do PCB. Com base nessa caracterização, seria possível indicar a presença da preocupação com o branqueamento da população e o ideal do convívio harmônico entre as raças. Essas proposições apontam para a convergência entre a concepção consagrada na República Velha a respeito da miscigenação e outra que estava sendo gestada ao longo da década de 1920, consolidada no decênio seguinte.

Por um lado, tem-se uma leitura própria da ideia de branqueamento da população, onde o fim do tráfico negreiro seria a causa atribuída a essa suposta tendência, que seria expressa tanto no dito “clareamento” da população, quanto no contingente relativamente reduzido dos “negros puros” em comparação aos mulatos de diferentes tonalidades de pele. Esse argumento pressupõe que a interrupção do tráfico de mão de obra escrava da África, cujo marco é a Lei Eusébio de Queiroz de 1850, teria contribuído para uma tendência ao

28 Em livre tradução: “o cruzamento se faz cada dia mais intensamente, produzindo tipos cada vez mais claros