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3 O CONTROLE SOCIAL PUNITIVO EXERCIDO PELO SISTEMA PENAL

3.2 O MITO DA OPERACIONALIDADE DOGMÁTICA DO “CÓDIGO TECNOLÓGICO”

A filosofia do positivismo contribuiu para a adoção do método científico, como base para a organização política da sociedade, consistente em um conjunto de categorias de observação dos fenômenos no mundo físico ou material, capaz de produzir a verdadeira ciência a partir de fenômenos concretos (positivos). Com isso, o positivismo propôs substituir a explicação das causas pela observação dos efeitos dos fenômenos, destacando-se a ideia de neutralidade do cientista.

Amparado nos parâmetros de experiência, objetividade e universalidade, o positivismo, na lição de Wolkmer (2006b, p. 188), defende um conhecimento científico gerado por observações empíricas e experiência dos fatos, utilizando-se da metodologia própria das ciências naturais, da matemática e da lógica.74 Por isso, Bobbio (1995, p. 135)

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As seis ciências fundamentais (Matemática, Astronomia, Física, Química, Biologia e Sociologia), segundo Comte (2012, p. 51), apresentam uma

afirma que “o positivismo jurídico nasce do esforço de transformar o estudo do direito numa verdadeira e adequada ciência que tivesse as mesmas características das ciências físico-matemáticas, naturais e sociais”.

Na concepção positivista, o conhecimento científico se revela como a única forma de conhecimento verdadeiro, desprezando-se quaisquer outras que não possam ser cientificamente comprovadas, como é o caso daquelas pertencentes ao campo do domínio teológico (crenças) e metafísico (abstrações). Como observa Wolkmer (2006b, p. 191), “a doutrina positivista procurou banir todas as considerações de teor metafísico-valorativas do Direito, reduzindo tudo à análise de categorias empíricas na funcionalidade de estruturas legais em vigência”. Desse modo, o Direito é explicado por sua própria materialidade coercitiva, previsibilidade e segurança. Para o historiador, “esse caráter ideológico, passível de ser detectado na doutrina positivista, não é de forma alguma ‘reconhecido’, mas ‘ocultado’ pelo dogmatismo jurídico oficializado”.

Será essa concepção positivista de ciência que sustentará o edifício da Ciência Jurídica e da Dogmática Jurídica. A condição de ciência “prática” que marca a Ciência Jurídica desde a antiguidade condiciona o paradigma dogmático. Assim, afirma Andrade (1996b, p. 50-51), a técnica jurídica determina as condições sob as quais o Direito cumpriria o ideal de segurança com um máximo de economia e celeridade, independentemente ou com abstração dos conteúdos concretos de cada ordenamento jurídico em particular, consolidando o princípio da certeza como base para a segurança do tráfego jurídico.

Conforme destaca Andrade (1993, p. 30), toda ciência, enquanto processo de produção de conhecimento, adota uma matriz epistemológica que forja o respectivo método para atingir a produção daquele conhecimento. Logo, o conhecimento produzido pela ciência guarda uma relação de dependência com a matriz dominante. No tocante invariável hierarquia, constituindo a Matemática o ponto de partida e, a Sociologia, o fim único e essencial de toda a filosofia positiva. De acordo com o filósofo, a Sociologia não apenas fechava a série, mas, também, reduzia os fatos sociais às leis científicas, sintetizando todo o conhecimento humano e colocando em evidência uma nítida passagem do foco individual para o coletivo ou social. Dessa forma, o positivismo jurídico francês, com Comte, alcança seu apogeu na primeira metade do século XIX, impondo-se como principal tendência do Direito contemporâneo e constituindo-se na rigorosa reação às correntes definidas como jusnaturalistas, que buscavam a origem e a essência do Direito na natureza ou na razão humana.

à Ciência Jurídica, o positivismo se impôs como epistemologia dominante, forjando o método lógico-formal de apreensão do Direito, como método de conhecimento dominante.

Nesse sentido, o discurso científico, com seus pressupostos epistemológicos, postula a objetividade e a neutralidade ideológica, conforme salienta Mészáros (2004, p. 245). No entanto, observa-se que a opção epistemológica não tem nada de neutralidade, porquanto se revela política e socialmente condicionada pela racionalidade científica, atribuindo ao Direito positivo uma série de domínios formais, consubstanciados em precisão, completude, coerência, decidibilidade etc.

Desenvolvendo importante consideração sobre o tema, Warat (2004a, p. 153) ressalta que a Dogmática Jurídica se apresenta como a tentativa de construir uma teoria sistemática do Direito positivo sem formular sobre os mesmo nenhum juízo de valor, convertendo-a em uma mera ciência formal. A epistemologia positivista imprime, portanto, um caráter científico à Dogmática Jurídica, concebida como atividade que estuda o Direito positivo vigente, de forma não valorativa. Sob esse manto da cientificidade, ressalta Andrade (1993, p. 31-32), o Direito procura preencher os pressupostos epistemológicos de ciência positivista, desligando-se da problemática histórica, sociológica, econômica, política e todas as disciplinas que não se relacionam ao “dever-ser”.

A Dogmática Jurídica surge, então, como um conjunto de categorias construtivas e sistematizadas pelo operador do Direito, destinadas a dar razão, de forma lógica, ao objeto do Direito. Conforme leciona Andrade (1996b, p. 52-53), no seio do paradigma dogmático, que se orienta no sentido da realização do Direito, “a interpretação não é senão um capítulo preliminar da construção jurídica que encontra seu momento culminante no sistema”.

Como um desdobramento disciplinar da Dogmática Jurídica, a Dogmática Penal, consolidada na Europa em meados do século XIX, é marcada por uma dependência paradigmática, que no dizer de Andrade (2003a, p. 103-104), apresenta quatro aspectos fundamentais: a) a Dogmática Penal admite uma fundamentação epistemológica neokantiana complementar à juspositivista; b) a Dogmática Penal circunscreverá, nos limites de sua estrutura normativista, a problemática do monopólio da violência física pelo Estado Moderno, em que o discurso liberal de limitação do poder punitivo como garantia da segurança jurídica ocupará o lugar central; c) a Dogmática Penal projeta o respectivo método para uma específica construção da teoria do delito;

e d) a Dogmática Penal é constituída por uma ideologia específica – a ideologia da defesa social.

A partir das análises de Andrade (2008, p. 250-251), verifica-se que a Dogmática Penal se estabelece, desde sua formação alemã e italiana até a hereditariedade que alcançou na América Latina e no Brasil75, “como um conhecimento ‘científico’, normativo, autônomo e sistemático, que encontra explicação em si mesmo através de uma postura metódica imanente, que não remete a considerações de índole naturalística, filosófica, social, econômica, política, moral ou outra extranormativa”. Apresenta-se, assim, como uma Ciência do “dever- ser”, tendo por “objeto” o Direito Penal positivo vigente em determinado tempo e espaço, por tarefa metódica (técnico-jurídica) a construção de um aparato conceitual elaborado a partir da interpretação do material normativo e por finalidade a aplicação útil do Direito. É nesse universo normativo e conceitual que a Dogmática Penal se constrói como ciência e como instrumental pedagógico de formação dos operadores do Direito, edificando a interpretação necessária à imputação da responsabilidade ao agente que pratica uma conduta definida como crime ou contravenção na lei penal, com o discurso da promessa de segurança jurídica.

Nesse cenário, a especificidade da Dogmática Jurídica foi partilhada pelos penalistas como ciência do Direito Penal, cujo objeto é o Direito Penal positivo construído a partir de um arsenal normativo e de seus respectivos sistemas de conceitos, interpretados por meio de procedimentos intelectuais lógico-formais. Por isso, as normas penais elaboradas pelo legislador são interpretadas a partir de um sistema de conceitos ou teorias, com o escopo de garantir segurança jurídica com a uniformização e a previsibilidade das decisões judiciais, consolidando a prática de “decisões iguais para casos iguais” e distribuindo justiça.

A promessa de racionalização e segurança jurídica que caracteriza o paradigma dogmático se revelará em promessa de racionalização do poder punitivo estatal e segurança jurídica na administração da Justiça penal. Desse modo, fica demarcada no discurso dogmático uma função declarada e oficialmente perseguida,

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De acordo com Andrade (2009, p. 162-163), a matriz do paradigma dogmático de ciência penal encontra-se originariamente na Alemanha e, posteriormente, é recebido em outros Estados da Europa continental, entre eles Itália, Espanha, Portugal, Grécia e Holanda, e também da América Latina, em países como Brasil, Argentina, Costa Rica, Peru, Venezuela, tendo uma marcada vigência nas regiões do centro e da periferia do capitalismo mundial.

denominada por Andrade (2003a, p. 123) de “função instrumental racionalizadora/garantidora”, cuja dimensão programadora das decisões judiciais penais implica uma contribuição técnica do paradigma (interpretativa e conceitual) à operacionalidade decisória e a dimensão garantidora implica um compromisso com decisões igualitárias, seguras e justas.

Esse discurso dogmático racionalizador/garantidor representa, na concepção de Andrade (2003a, p. 123), a dicotomia liberal Estado (poder punitivo) x indivíduo (liberdade individual), condicionada ao fato de como racionalizar, em concreto, o poder punitivo (violência física) frente aos direitos individuais (segurança), ou seja, de como punir com segurança. Extrai-se daí que tanto o Direito Penal, como programação, quanto a Dogmática, como metaprogramação, nascem como uma reação contra o arbítrio da antiga Justiça penal.

A função declarada da Dogmática Penal é sintetizada pela ideia de “segurança jurídica”, que tem origem no sistema da teoria do delito. Conforme assevera Andrade (2003a, p. 125), objetivando a elaboração técnico-jurídica do Direito (Penal) vigente, a Dogmática (Penal), a partir da interpretação das normas (penais) produzidas pelo legislador (princípio da legalidade), desenvolve um sistema conceitual do crime com a função de garantir maior uniformização e previsibilidade das decisões judiciais e, por consequência, a aplicação igualitária (“decisões iguais para casos iguais”) do Direito Penal, promovendo a segurança jurídica e a justiça das decisões penais. Trata-se de uma dimensão técnica de orientação do intérprete da norma, norteando as decisões judiciais e garantindo a segurança jurídica pela igualdade dos julgamentos. Por outro lado, a função garantidora impõe ao mesmo intérprete a observância das garantias fundamentais do ser humano, dando às decisões um caráter de justiça.

Desse modo, o sistema dogmático é construído e consolidado com a denominada estrutura jurídica do crime, que encerra as categorias fundamentais de tipicidade, antijuridicidade e culpabilidade, permitindo demonstrar analiticamente que o crime é produzido por uma conduta (ação ou omissão) típica, antijurídica e culpável.

Os argumentos desqualificadores da cientificidade da Dogmática Jurídica encontram-se, essencialmente, na ideia de que não possui como objeto “fatos”, e sim “normas” (mundo do “dever-ser”), na medida em que também seus enunciados não são controláveis empiricamente, como acontece nas ciências exatas. Ademais, a Dogmática Jurídica não tem compromisso com a verdade científica e a produção de conhecimento, já que se preocupa apenas com a decidibilidade dos conflitos e a

orientação da tarefa judicial, no sentido de encaminhar “decisões iguais para casos iguais”.

Diante disso, não obstante busque a Dogmática Jurídica a condição científica e objetiva para a manutenção da ordem social, resta patente o distanciamento dessa condição se considerado o seu objeto um sistema de normas insuscetível de verificação.

Apesar das enormes divergências e contradições, todo o sistema dogmático que constrói a estrutura jurídica do crime, encerrando as categorias fundamentais de tipicidade, antijuridicidade e culpabilidade, orienta as decisões judiciais dos operadores do Direito no caminho dos resultados calculáveis e previsíveis, cuja segurança jurídica prometida representa as funções declaradas pela Dogmática Penal.

No entanto, paralelamente a essas funções declaradas, verifica-se que a pretendida cientificidade da Dogmática Penal, quando relacionada com a realidade social, cumpre funções de conexão legitimadoras e não declaradas, também chamadas de funções latentes, as quais cuidam daquilo que não foi prometido, mas que, na prática, é de fato cumprido. É o caso da prescrição de “soluções desiguais aos destinatários em conflitos iguais”, escondida sob o manto da neutralidade científica, típica do positivismo, conservando e reproduzindo a desigualdade social.

Vale registrar que na concepção de Andrade (1996b, p. 69) a racionalidade do juiz também ganha relevância para a Dogmática, na medida em que basta fundamentar a racionalidade do ordenamento jurídico (com a recepção das teorias da norma e do ordenamento jurídico, recobertas pelo axioma do legislador racional) e a racionalidade de sua aplicação (com a teoria da neutralidade da atividade científica e judicial) para que o Direito, emanado do legislador racional e aplicado pelo juiz racional, mediante o instrumental conceitual da ciência dogmática, esgote logicamente o seu itinerário. Nesse contexto, diz a criminóloga, coexiste a morte da subjetividade do intérprete, traduzida nas impressões de cientista e juiz neutros. No mesmo sentido, Warat (2004a, p. 161) afirma que o jurista consegue retoricamente modificar a significação jurídica dos textos legais por meio do corpo de conceitos e teorias elaboradas pela Dogmática Jurídica realizando, assim, formas de Direito translegislativas.

Esse discurso racionalizador/garantidor da Dogmática Penal se encontra inserido numa perspectiva mais globalizante do crime, denominada de “ideologia da defesa social”. Tal ideologia é sintetizada por Andrade (2003a, p. 137-138) como o conjunto das representações sobre o crime, a pena e o Direito Penal, construídas pelo saber oficial e,

em particular, sobre as funções socialmente úteis atribuídas ao Direito Penal (proteger bens jurídicos lesados garantindo também uma penalidade igualitariamente aplicada para os seus infratores) e à pena (controlar a criminalidade em defesa da sociedade, mediante a prevenção geral e especial).

Como ressalta Baratta (1994, p. 09), a função de “prevenção especial positiva” (que visa à ressocialização dos infratores)76, base dos programas de reabilitação nos Estados Unidos e na Europa na década de 1970, é considerada uma hipótese refutada pelos programas de pesquisa de controle. Do mesmo modo, a função de “prevenção geral negativa” (que visa à dissuasão dos potenciais infratores)77, sustentada, especialmente nos Estados Unidos, nas duas formas alternativas ou complementares de "neutralização" do infrator (incapacitation) e de "intimidação específica" (specific deterrence), também é considerada uma hipótese empiricamente não comprovada.

No caso da teoria da “prevenção especial negativa”, segue Baratta (1994, p. 09-10), o fim se alcançaria transformando definitiva ou temporariamente o autor de uma infração delitiva em um indivíduo incapaz de cometer outros delitos (neutralização), seja com a destruição física ou psíquica do indivíduo, seja com uma prisão de máxima segurança, com intervenções cirúrgicas ou com formas atualmente já experimentadas de controle eletrônico em liberdade ou, ainda, produzindo no infrator, por meio de um tratamento bastante severo, uma contra motivação para cometer outras infrações (intimidação específica).

Dessa forma, verifica-se que a identidade ideológica da Dogmática Penal se estabelece pela dialetização do discurso liberal com o discurso da ideologia da defesa social, universo a partir do qual deve ser compreendida sua função declarada e a crise irreversível de legitimação instrumental dos sistemas punitivos.

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No caso da teoria da ressocialização, a função imediata é essa transformação do infrator, ou seja, este fim seria alcançado "transformando" o condenado, de maneira que ele se torne um sujeito "apto para uma vida em liberdade sem delitos".

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No caso da teoria da intimidação geral (prevenção geral), a função imediata é a contra motivação, ou seja, a ênfase não recai sobre o infrator em si, vez que a defesa social se realiza criando, por meio da ameaça da pena e/ou do espetáculo (oculto) de sua aplicação, uma contra motivação que atinja aqueles criminosos potenciais, neutralizando sua possível tendência à prática delitiva. Trata-se de uma teoria elaborada para aqueles indivíduos que, apesar de não serem criminosos, pode-se supor que não tenham suficientemente introjetado uma atitude espontânea de lealdade à ordem jurídica.

Conforme se observa, a Dogmática Penal centraliza a construção do sistema garantidor na conduta do agente a partir da técnica de imputação da responsabilidade penal baseada nos requisitos objetivos (conduta típica e antijurídica) e subjetivos (culpabilidade). Contudo, diz Andrade (2003a, p. 301), são “as variáveis relativas à pessoa do autor e outras, exorcizadas pela Dogmática pela porta da frente de sua construção conceitual que ingressam pela porta dos fundos e preponderam nas decisões judiciais”. Daí dizer-se que a decisão judicial que sentencia é muito mais complexa do que uma simples imputação de responsabilidade penal lastreada em dispositivos legais e no “código tecnológico” dogmático.

A Dogmática Penal, portanto, como afirma Andrade (2009, p. 181-182), constitui uma instância interna do sistema penal e não só tem sido incapaz de controlá-lo externamente, como também tem sido capturada pela sua lógica de funcionamento, de forma integrativa e co- participativa. Desse modo, infere-se que se o desequilíbrio do sistema penal, do qual a Dogmática Penal acaba prisioneira, encontra seu limite na própria sociedade, a incapacidade demonstrada para controlar a violência e garantir os direitos humanos (déficit funcional de segurança jurídica) remonta à sua própria debilidade analítica e idealismo, isto é, “à profunda separação cognoscitiva entre dogmática e realidade social e aos seus défices epistemológicos”. Logo, a Dogmática Penal, como prisioneira da própria fantasia que criou, deixa evidente o mito de sua eficaz operacionalidade tecnológica.

Por conta disso, assevera Andrade (2003a, p. 298-299), a radiografia dos sistemas penais revela o enorme déficit histórico de cumprimento da função instrumental racionalizadora/garantidora idealizada e prometida pela Dogmática Penal, por não ter assegurado o exercício do controle penal com igualdade e segurança jurídica. Considerando que as decisões judiciais são relativamente pré- programadas pelo legislador, seu poder discricionário se revela menor do que o poder das agências policial e penitenciária e, ainda, do que o do Ministério Público. Além disso, ressalta a criminóloga crítica, também fica fora da intervenção dogmática o exercício do poder policial, que, juntamente com o poder penitenciário (execução penal), é responsável pela maior arbitrariedade e violação dos Direitos Humanos, seja pelo poder repressivo configurador, pela repressão aberta (Zaffaroni) ou pelo poder disciplinar (Foucault) estigmatizador ou deteriorador (paradigma da reação social).

Destarte, o campo de intervenção da Dogmática Penal cobre apenas parte do processo decisório, na medida em que o seu “código

tecnológico”, como instrumento construído para a racionalização garantidora das decisões judiciais, não abarca o second code judicial, escapando da competência da ciência jurídico-penal. Desse modo, a funcionalidade da Dogmática é explicada pelo excessivo cumprimento de uma função instrumental latente e oposta à declarada (eficácia invertida) e de uma função simbólica confirmadora desta (eficácia simbólica). Conforme salienta Baratta (2006, p. 85), as funções simbólicas tendem a prevalecer sobre as funções instrumentais, de maneira que o déficit de tutela real dos bens jurídicos é compensado pela criação, no público, de uma ilusão de segurança e um sentimento de confiança no ordenamento e nas instituições. De outra parte, afirma Andrade (2003a, p. 316), é “por sobrepor à imagem real do sistema penal uma imagem ideal do funcionamento do Direito Penal que o discurso dogmático tem tido uma eficácia simbólica legitimadora”, influenciando a discussão contraditória sobre os sistemas punitivos e as políticas criminais.

A perda do equilíbrio entre as funções simbólicas e instrumentais no sistema da Justiça criminal (supondo que esse equilíbrio tenha de fato existido) revela que as funções simbólicas visadas pela lei penal se tornam cada vez mais independentes da natureza real dos conflitos e dos problemas em função dos quais são produzidos os símbolos. Por isso, Baratta (1994, p. 13) ressalta que essa crise da prevenção indica que não é tanto a função instrumental da pena que serve para resolver determinados problemas e conflitos, mas são determinados problemas e conflitos que, ao atingirem certo grau de interesse e de alarme social no público, se convertem em um pretexto para uma ação política destinada a obter não tanto funções instrumentais específicas, mas sim outra função de caráter geral: “a obtenção do consenso buscado pelos políticos na chamada ‘opinião pública’”.

Percebe-se, então, na mesma linha de Andrade (2008, p. 241), que a Dogmática Penal exerce “um protagonismo decisivo no processo de instrumentalização e legitimação do poder de punir pela legalidade e da construção do modelo Direito Penal do fato, que o traduz”. Não é por outro motivo que as normas continuam sendo violadas e a cifra oculta das infrações permanece elevada, enquanto que as agências de controle penal são medidas pelas tarefas instrumentais de realização impossível.

A par do que até aqui foi exposto, verifica-se que o sistema penal representa a institucionalização do monopólio da violência, racionalizada na figura do Estado por uma dupla via legitimadora - legalidade e utilidade, ambas construídas pelo saber oficial da Ciência

do Direito Penal78 e da criminalidade, relacionadas à Dogmática e à Criminologia.79 Conforme assevera Andrade (2003a, p. 177 e 295), enquanto a Dogmática Penal se projeta no horizonte da racionalização garantidora do sistema, a Criminologia se projeta no universo da racionalização utilitarista, de resposta penal na pessoa do criminoso e na prisão. Apesar da não comprovação empírica das teorias da prevenção