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O MOTIVO DO FRACASSO

No documento – PósGraduação em Letras Neolatinas (páginas 45-51)

Recapitulemos. O motivo frente ao qual Cabrujas reage, motivo que resulta das mediações (histórica, psicossocial e estética) tensas entre autor, grupo social e entorno, é o fracasso: fracasso de um país petroleiro que tinha recebido montanhas de dinheiro e, mesmo assim, faliu. Fracasso da geração de 58, dos intelectuais de esquerda que apostaram por uma revolução falida. Fracasso da ideologia comunista como ética grupal no entorno de uma Venezuela liberal/petroleira. Fracasso histórico e fracasso grupal, além de fracasso ideológico.

32 Tradução: “Tenho escrito telenovelas com a intenção de ganhar a vida e a dos meus sem trabalhar no

Governo, com a intenção de ver ópera na Scala de Milão e tomar uísque. Me exibir agora como arrependido seria uma estupidez inconcebível.”

33Tradução: “Você bota o pais inteiro para ver o que tem feito [telenovelas]. Qual e sua relação com o poder?

A sedução do poder em você deve ser muito grande.

O poder tem me ensinado. A televisão tem me ensinado escrever teatro, tem feito de mim melhor escritor de teatro porque tem me ensinado conhecer as pessoas, a imagem das pessoas. Tem me ensinado a não pensar tanto em mim, a me voltar sobre as pessoas. Tem me ensinado, por exemplo, a escolher a temática da minha coluna em El Nacional, a saber que não posso escrever lá como capricho o que eu queira. Eu não quero ser arbitrário quando escrevo. Me parece que alguém como Breton na Venezuela é um bobo.”

A reação de Cabrujas, obviamente, é indireta e tem lugar no plano conceitual, imaginário, da obra de arte. Tentamos, até agora, mostrar, durante a análise das obras, como o motivo do fracasso é muito mais do que temático, intrínseco à composição das obras analisadas e como é estruturante das condições espaço-temporais e das relações entre os personagens. O autor persegue uma coerência inconsciente com respeito a algum motivo. Tragamos aqui as palavras de Juan Villegas em sua Nueva interpretación y análisis del texto dramático.

El motivo, entendido como unidad y situación, como estrategia de análisis permite el análisis estructural-funcional (función de las partes en el todo) y el análisis ideológico. Este último supone que la situación esquemática se carga de contenido ideológico en su plasmación en un texto particular y, a la vez, evidencia la ideología del autor y su grupo social”34 (1991, p.111)

O motivo que dá coerência à obra de Cabrujas, que a explica como reação, no plano imaginário, do autor frente à Venezuela petroleira e liberal, e que persegue a busca de autenticidade do indivíduo que forma parte do grupo humano dos intelectuais de esquerda é o fracasso. Cabrujas o assumia como tema consciente em sua criação dramática:

El tema que me importa es el fracaso. Un hombre se refugia en una idea, la proclama como parte de sí mismo y se adhiere a ella. Al hacerlo cree pertenecer, cree hacerse cierto. Pero esa idea jamás lo explica ni lo hace pertenecer a nada porque en el fondo no tiene nada que ver con su vida.35 (CABRUJAS, 2009, p.19)

Fala de seus personagens, de seu grupo social e de si mesmo. Fala de Manganzón de

Profundo, de Cosme Paraíma de Acto Cultural e, sobretudo, de Pío Miranda, Arístides e Anselmo Lander: genuínos fracassados ideológicos. A relação entre o personagem de Pío e a geração de 58, os vínculos ideológicos e o motivo do fracasso resultante da tensão, são evidentes, quando Cabrujas declara que

Le tengo rabia a su fanatismo. Al fanatismo de Pío. A su fé en Stalin, en la Unión Soviética, en el koljosz, en toda esa palabrería que yo, al igual que él, pronuncié. Toda esa experiencia, todos esos koljoses, todas esas palabras soviéticas, palabras en las que uno nunca pudo profundizar.36 (2012, p. 280)

Queremos trazer aqui uma definição de fracasso extraída do romance Respiração Artificial, de Ricardo Piglia, uma definição literária que vem em forma de citação. Quem fala é Tardewski, um polanês solitário e empobrecido que, ao longo da sua vida, passou de

34 Tradução: “O motivo, entendido como unidade e situação, como estratégia de análise permite a análise

estrutural-funcional (função das partes no todo) e a análise ideológica. Esta última supõe que a situação esquemática se carrega de conteúdo ideológico em sua plasmação num texto particular e, ao mesmo tempo, evidencia a ideologia do autor e seu grupo social.”

35Tradução: “O tema que me importa é o fracasso. Um homem se refugia em uma ideia, a proclama como parte

de si mesmo e adere a ela. Ao fazê-lo acredita pertencer, acredita fazer o certo. Mas essa ideia jamais o explica nem o faz pertencer a nada, porque no fundo, não tem nada a ver com sua vida.”

36Tradução: “Tenho raiva de seu fanatismo. Do fanatismo de Pío. De sua fé em Stalin, na União de Repúblicas

Socialistas Soviéticas, no koljosz, em todo esse palavreado que eu, igual a ele, pronunciei. Toda essa experiência, todos esses koljoses, todas essas palavras soviéticas, palavras nas que nunca nos aprofundávamos.”

discípulo de Wittgenstein, antes da guerra, a imigrante esquecido e medíocre professor particular de filosofia para estudantes de segundo grau:

Sentia inclinação pelo que chamam homens fracassados, disse [Tardewski]. Mas, o que é, disse, um fracassado? Um homem que não tem quiçá todos os dons, mas sim muitos, inclusive bastantes mais do que os comuns em certos homens de sucesso. Tem esses dons, disse, e não os explora. Os destrói. De modo, disse, que na verdade destrói sua vida. Tinha um cara, por exemplo, que eu encontrava com frequência. Na Polónia. Este homem tinha se eternizado na Universidade, sem nunca fazer as provas que faltavam para terminar sua carreira. De fato tinha abandonado a Universidade pouco antes de obter seu diploma em matemáticas e depois tinha deixada plantada sua noiva no dia da boda. Não via nenhum mérito especial em realizar nada. (...) Se tenho falado disso tudo, disse, é porque eu mesmo, claro, sou um fracassado. Quero dizer, um fracassado no verdadeiro sentido, ou seja, disse, alguém que tem desperdiçado sua vida, que tem esbanjado suas condições. Tenho sido, disse, o que costumam chamar um jovem brilhante, uma promessa, alguém frente a quem se abrem todas as possibilidades. (2010, p.152)

Três facetas do fracasso: Anselmo, Arístides e Pío

No último teatro de Cabrujas se desenvolve o motivo do fracasso em três personagens: Pío Miranda, Arístides Lander e Anselmo Lander. Esses personagens, protagonistas de suas obras, assumem o fracasso vital de forma provisória até que as circunstâncias obrigam o desencadeamento de uma crise, de um colapso.

Embora o fracasso dos três personagens seja ideológico, cada um deles fracassa de forma absoluta em três aspectos independentes: o amor, a ambição e a fé. Pío fracassa no amor porque não consegue resolver sua situação, de uma década, de indefinido noivado com María Luisa; Anselmo tem uma fé fracassada porque apesar de ser bispo e de oferecer missa não acredita em Deus, deseja sua cunhada e finda o voto de castidade; fracassa também a ambição desmedida de Arístides, que, durante a juventude, se achava predestinado a grandes coisas que jamais alcançou. Em conjunto, estes três personagens exploram criativamente todas as possibilidades, todas as caras do fracasso que marcou a geração de Cabrujas (inconscientemente) e que estimulou a parte mais importante de sua obra dramática.

Pío Miranda vive o fracasso amoroso, ele fracassa na vida. Seu problema não é ser um escuro professor noturno ou não ter dinheiro; seu problema é a irresolução amorosa com María Luisa. O tempo cênico de El día que me quieras mostra a relação amorosa de Pío e María Luisa, levada até o limite. É uma relação muito peculiar. Em dez anos, não mantiveram relações sexuais e nunca se viram nus. María Luisa viu seus vinte e oito anos se converterem em trinta e oito sem uma toma de posição séria de parte de Pío. Então, ela o pressionou. O pressionou e Pío inventou uma mentira: disse que como era comunista eles não poderiam se casar nessa lixeira do capitalismo, mas na verdade proletária da URSS e a convidou para

morar com ele na Ucrânia; inventou uma carta enviada a Romain Rolland e, assim, conseguiu postergar o momento de encarar o fracasso e enfrentar a verdade.

A conversa entre Isaac Chocrón, Cabrujas, sua mulher, Eva Ivany, e a jornalista Miyó Vestrini, publicada em Isaac Chocrón frente al espejo, tinha como tema original a amizade entre Cabrujas e Chocrón, no entanto, em algum momento, tal tema se perdeu e deu lugar a outro: obra recém estreada El día que me quieras. Diz Cabrujas:

José Ignacio: Pío Miranda cree en él. Solo logra destruirlo, inhibirlo, su fallido amor con María Luisa, cuando comprende que el acto de vivir se le escapa. Cuando se da cuenta que es un payaso, porque no logra hacer coherente su vida junto a la simpleza de un ser humano que lo quiere, quiere vivir con él… y él no se atreve. Si no se ha acostado con María Luisa, a lo largo de no sé cuántos años, es porque pertenece a otra cosa. Él se quiere acostar en Rusia.”37 (VESTRINI, 1980, p.206)

Em El americano ilustrado, Anselmo fracassa no âmbito religioso, mas de forma paradoxal, porque fracassa desde o sucesso, fracassa ascendendo na jerarquia eclesiástica, até alcançar o cargo de bispo e até perder toda sua fé e toda sua vontade vital; resignado, encarcerado na igreja, afastado do amor que o atormenta, o amor clandestino por María Eugenia (um amor não fracassado, mas consumado). Entendemos a fé de Anselmo como uma fé oportunista, uma fé deformada e cínica, uma fé que no fundo não tem nada de fé. Já no Prólogo, o vemos lendo literatura erótica na capela e depois fazendo uma proposta sexual. No primeiro ato, reitera seu amor por María Eugenia e em outro momento informa a Arístides que está participando de uma conspiração contra o presidente Guzmán (Arístides, irônico, lhe

pergunta se está achando que é “Juana de Arco”); confessa também que tem uma conta-

poupança em Hamburgo com cem mil marcos e que quer deixar eu bigode crecer. Seu grande fracasso é a negação, a posposição da renúncia, sua paulatina corrupção por permanecer na igreja. “Monseñor”, dice Anselmo sobre sí mismo, “se ha hecho melancólico, disperso y a

veces adiposo de tanto hastío.”38 (AI.26)

O fracasso de Arístides é histórico, disfarçado de fracasso profissional. Na verdade, Arístides tinha ambições profissionais tão grandiosas (alcançar o grau de General, presidir o Partido Conservador, modificar a Constituição Nacional) que podemos dizer que suas ambições são proporções históricas. É oportuno trazer aqui outra citação de Respiração Artificial, de Piglia, que pode aclarar a situação de Arístides

37Tradução: “José Ignacio: Pío Miranda acredita nele mesmo. Só consegue destruir, inibir, seu falido amor com

María Luisa, quando compreende que a vida está passando. Quando percebe que e um palhaço, porque não consegue fazer coerente sua vida junto à simpleza de um ser humano que gosta dele, que quer viver com ele… e ele não se atreve. Se não tem deitado com María Luisa, ao longo de não sei quantos anos, é porque pertence à outra coisa. Ele quer ter sexo na Rússia.”

A capacidade de pensar a realização de sua vida pessoal em termos históricos, lê Tardewski a frase de Le Roy Ladurie anotada en seu caderno de citações, foi para os homens que participaram na Revolução Francesa tão natural, quanto pode ser natural para os nossos contemporâneos, quando chegam aos quarenta anos, a meditação sobre sua própria vida como frustração das ambições de sua juventude. Via condensada nessa frase, disse, enquanto tirava os óculos e voltava guardar o caderno na gaveta, o que Marcelo llamava, não sem ironia, a mirada histórica. (2010, p.183) O olhar de Arístides era histórico, assim como suas aspirações. Porém, com apenas quarenta anos alcançou o intranscendente cargo de Secretário de Protocolo do Ministério de Relações Exteriores. Repentinamente acontece a peripécia: Guzmán o nomeia ministro e ele se sente brevemente feliz. O que ignora é que Guzmán o nomeia ministro somente para que se realize a indigna tarefa de negociar a entrega de Guayana a Inglaterra (nasce a Guayana inglesa). E legítimo pensar que o anterior Ministro de Relações Exteriores, o doutor José Tadeo Tello Uzcátegui, não tenha sido demitido conforme disse Guzmán, mas que tenha renunciado. Arístides aceita o cargo e embarca para Inglaterra em missão diplomática degradante, sobretudo para alguém com uma mirada histórica tão marcada quanto a de Arístides.

Em profundidade, como dissemos ao princípio, Arístides, Anselmo e Pío sofrem um fracasso ideológico. E dizemos ideológico nos referindo, de entre os muitos significados possíveis do termo, àquela acepção, mais sociológica do que epistemológica que, em palavras

de Eagleton, “tem se interessado mais pela função das ideias dentro da vida social que por sua

realidade ou irrealidade” (2005, p.21) Dizemos ideologia e pensamos no conjunto de ideias e de crenças de um grupo social (como os católicos ou os militantes do Partido Conservador no final do século XIX, como os comunistas de princípios do século XX e como os intelectuais de esquerda das décadas do setenta e oitenta). Todos vivem com alguma ideologia, participam, militam, se refugiam num dogma, no conjunto de crenças que não explicam, que resultam ineficazes para resolver seus problemas e que, com o passar do tempo, desencadeia uma crise.

Anselmo vê morrer sua fé e renega de sua religião e seu cargo, enquanto que paradoxalmente ascende dentro da jerarquia da igreja até chegar a bispo; quando, no primeiro ato, Arístides lhe pergunta se acaso não é ele o pastor, Anselmo responde “(como si escapara

de una convicción).- Dios no cree en mí, Arístides. Dios es ateo.”39 (AI.15)

Arístides, que em sua juventude pertenceu ao Partido Conservador, com o decorrer do tempo acaba se inscrevendo, de forma interesseira e não sincera, no Partido Liberal (opositor do Conservador) por ser o partido oficial; desse jeito ele pôde obter um cargo -medíocre- no

governo, embora não deixasse de desprezar o presidente Guzmán. Se opõe secretamente ao partido e ao governo de Guzmán, mas faz um pacto com o presidente em troca do ministério. Anselmo (que conhece seu irmão), ao saber que Arístides aceitou o ministério, critica sua

inconsistência dizendo: “Hace un mes odiabas a Guzmán. Oscuro, como un pequeño ratón

entre libros, me parecías respetable”40, ao que Arístides responde “(Herido).- Hace un mes sigue siendo hoy. Y la oscuridad es la misma. La oscuridad soy yo”41 (AII.24)

O fracasso ideológico dos três personagens nasce da falta de correspondência entre crenças, princípios e ideias. De um lado, está a vida, prosaica e ordinária, de outro está Arístides, um medíocre burocrata, tentado pelo poder e disposto a esquecer seus princípios em troca de um cargo; Anselmo , um padre sem fé e com desejos sexuais e Pío, um eterno noivo que não consegue consumar seu amor nem na igreja, tampouco na cama. “A mí”, diz oportunamente Cabrujas (e nisto se parece a Tardewski, personagem de Piglia que sente inclinação pelos fracassados e que fala, como citamos faz pouco, de um conhecido seu (de Tardewski) na Polónia, que tinha abandonado a universidade bem antes de se formar porque

segundo dizia não via sentido em realizar nada) “siempre me interesó el tema de la

frustración, del derrotado, del que balbucea y fracasa y no sabe por qué. No me gustan los exitosos sino los que abordan el fracaso como una profesión de vida.”42 (CABRUJAS, 2010, p.616)

Contudo, é impossível manter o fracasso indefinidamente, chega um ponto culminante que nasce da necessidade de mudança de uma situação de fracasso para a oposta. Sobrevêm a crise. O termo é originalmente médico e indica um ponto irreversível na saúde de um paciente, mas tem acepções variadas. Há crise econômica, como a do viernes negro em 1983; há crise política, como a da esquerda em 1968, quando o Partido Comunista de Venezuela negocia com a democracia a rendição da guerrilha; há crise histórica, como a da Venezuela durante o governo de Guzmán, quando entrega parte do território nacional à Inglaterra; e há, também, crise psicológica, como a crise dos quarenta que desencadeia o desencanto de Arístides, o aniversariante. “Pero acaso”, conclui Manuel Caballero respeito à definição de

crise, “lo más importante es su dimensión ideológica. En todo caso, cada vez que se producen,

se sacude también el entero edificio de las creencias, prejuicios y principios. En una palabra, se puede decir que toda crisis sea en lo fundamental una crisis de creencia” (2009, p.19). A

40Tradução: “Há um mês você odiava o Guzmán. Escuro, como um pequeno rato entre livros, você me parecia mais respeitável.”

41Tradução: “(Magoado).- Há um mês segue sendo hoje. E a escuridão é a mesma. A escuridão sou eu” 42Tradução: “Sempre me interessou o tema da frustração, do derrotado, do que balbucia e fracassa e não sabe

falsidade, o fracasso ideológico oculto, negado e autonegado, dos personagens de Cabrujas, do próprio Cabrujas e dos intelectuais de esquerda dentro do contexto político e socio- econômico daquela Venezuela, tudo entra em crise.

No documento – PósGraduação em Letras Neolatinas (páginas 45-51)

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