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– PósGraduação em Letras Neolatinas

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FACULDADE DE LETRAS

COMISSÃO DE PÓS-GRADUAÇÃO E PESQUISA

O FRACASSO COMO MOTIVO NO ÚLTIMO TEATRO DE JOSÉ IGNACIO CABRUJAS

por

OSCAR ROMÁN ZAMBRANO MONTES

Curso de Mestrado em Letras Neolatinas

(Estudos literários: Literaturas Hispânicas)

RIO DE JANEIRO

(2)

UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO

FACULDADE DE LETRAS

COMISSÃO DE PÓS-GRADUAÇÃO E PESQUISA

O FRACASSO COMO MOTIVO NO ÚLTIMO TEATRO DE JOSÉ IGNACIO CABRUJAS

OSCAR ROMÁN ZAMBRANO MONTES

Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras Neolatinas da Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro como requisito à obtenção do título de Mestre em Letras Neolatinas (Estudos Literários: Literaturas Hispânicas).

Orientador: Profº. Doutor Miguel Ángel Zamorano Heras.

RIO DE JANEIRO

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO

FACULDADE DE LETRAS

COMISSÃO DE PÓS-GRADUAÇÃO E PESQUISA

O motivo do fracasso no último teatro de José Ignacio Cabrujas

Oscar Román Zambrano Montes

Orientador: Professor Doutor Miguel Ángel Zamorano Heras.

Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Letras

Neolatinas, Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como requisito parcial à obtenção do título de Mestre em Letras Neolatinas (Estudos Literários:

Literaturas Hispânicas).

Aprovada em: __/__/___ por

_________________________________________________________________________ Presidente, Prof. Dr. Miguel Ángel Zamorano Heras – UFRJ

_________________________________________________________________________ Prof. Dr. Víctor Manuel Ramos Lemus – UFRJ

_________________________________________________________________________ Prof. Dr. Roberto Ferreira da Rocha – UFRJ

_________________________________________________________________________ Prof. Dr. Silvia Inés Cárcamo de Arcuri – UFRJ

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DEDICATÓRIA

(5)

AGRADECIMENTOS

(6)

ZAMBRANO MONTES, Oscar Román. O motivo do fracasso no último teatro de José Ignacio Cabrujas. Rio de Janeiro, 2015. Dissertação de Mestrado em Letras Neolatinas (Estudos Literários: Literaturas Hispânicas) - Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio de Janeiro.

RESUMO

Esta dissertação analisa as obras teatrais El día que me quieras (1979) e El americano ilustrado (1986), do dramaturgo venezuelano José Ignacio Cabrujas, como reação do autor, no plano imaginário, à agressão que o entorno da Venezuela liberal-petroleira exercia no grupo

social dos intelectuais de esquerda da geração do 58. Procuramos discutir, neste estudo,

questões relacionadas ao tipo de argumento e aos mecanismos da intriga, à caracterização dos

personagens e à importância simbólica dos espaços e os tempos das peças, como caminho que

nos permita estabelecer um diálogo com as mediações históricas, psico-sociais e estéticas que

marcam as áreas de tensão entre o artista, o grupo humano de que forma parte e a realidade

sócio-histórica venezuelana das décadas de setenta e oitenta. O súbito enriquecimento, pela

nacionalização do petróleo, trouxe um estado de bem-estar económico ao país e a esquerda

venezuelana, acomodada, pactuou com a democracia-liberal e os intelectuais de esquerda

ficaram desnorteados, numa posição de negado fracasso. Este estudo tenta comprovar,

mediante a análise crítica das duas peças de teatro de José Ignacio Cabrujas, o potencial

explicativo da estratégia criativa da confissão dos personagens, em relação ao sentimento de

fracasso de um grupo social, a que pertence o autor, e como parte de um plano para superar a

impostura derivada do resguardo ideológico.

Palavras-chave: José Ignacio Cabrujas, Teatro venezuelano, Dramaturgia, Motivos e

(7)

ABSTRACT

The present thesis analyzes the plays El día que me quieras (1979) and El americano ilustrado (1986), by Venezuelan playwright José Ignacio Cabrujas, as the author's response, in the imaginary dimension, to the attack suffered by left-wing intelectual generation of 1958

in the contexto of a liberal, oil-based Venezuela. This study attempts to dicuss aspects related

to the type of storylines, mechanisms of intrigues, characters development and the symbolic

importance of the drama’s spaces and times, as a way to establish a dialogue among the historical, psycho-social and aesthetic mediations that frame the areas of tension between the

artist, the human group that he belongs to and the social-historical Venezuelan reality of the

seventies and the eighties. The fast enrichment process of the country thanks to the oil

natioliazation led to an economical welfare state, which defined a pact between Venezuelan

left-wing parties and the liberal democracy. As a consequence, left-wing intellectuals

remained disoriented in the new landscape, in a position of denied failure. This research tries

to prove, trough the critical analysis of two Cabruja’s plays, the explanatory potential of the creative strategy in the confessions of the charecters, wich is conected to the feeling of failure

of a social group (Cabruja’s group) as part of a plan to overcome the imposture resulting from ideological isolation.

Key-words: José Ignacio Cabrujas, Venezuelan theater, Drama, Oil, Comunism, Time,

(8)

Quienes celebran aquí sus citas vienen siempre de un "allá", del ancho mundo, y helos aquí decididos a aportar a este aquí el frágil conocimiento que han atoado fuera de ese lugar. Frágil conocimiento no es ciencia imperiosa. Intuimos que vamos siguiendo una huella

(9)

SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO………...……....10

INTRODUÇÃO ………...………….11

I. CONTEXTO SOCIO-POLÍTICO DA VENEZUELA ENTRE 1979 E 1986...17

II. CABRUJAS NO CAMPO TEATRAL VENEZUELANO...………27

III. MEDIAÇÕES...35

IV. O MOTIVO DO FRACASSO...45

V. A ESTRATÉGIA DA CONFISSÃO...51.

VI. APRESENTAÇÃO E ANÁLISE DE EL DIA QUE ME QUIERAS (1979)……...…52

6.1 Personagens………..……….65

6.2 Tempos………..……….73

6.3 Espaço………..………..85

VII. APRESENTAÇÃO E ANÁLISE DE EL AMERICANO ILUSTRADO (1986)...108

7.1 Os personagens………119

7.2 O tempo…………...………....129

7.3 O espaço………...135

CONCLUSÃO………..….154

(10)

APRESENTAÇÃO

O motivo do pesquisador

Estudar e interpretar o último teatro de Cabrujas e escrever esta dissertação representa,

em minha vida, o amarre de vários cabos que, até agora, permaneciam soltos. Por um lado, fiz

teatro durante vários anos, dirigi várias obras na Venezuela (embora nenhuma de Cabrujas),

por outro lado, estudei Letras na U.C.V, menção literatura (embora quase nada aprendesse

sobre crítica e teoria dramática). Por fim, fui espectador de algumas montagens das obras de

Cabrujas (embora eu nunca as estudasse, nem as representasse). Só agora, graças ao mestrado,

consegui juntar todos estes interesses em um projeto amplo: realizar um estudo crítico sobre o

teatro de Cabrujas. Esta dissertação é o resultado da coesão dos últimos anos da minha vida e

se em alguns momentos parece inconsistente o atribuo às minhas próprias contradições.

Lembro quando meus pais me levaram ao teatro para ver a última montagem de El día que me quieras, dirigida por Juan Carlos Gené, uma lenda do teatro latino-americano, na

“Sala de Conciertos” do desaparecido Ateneo de Caracas, e da impressão que essa peça e seus personagens causaram em mim. Lembro a figura ensombrecida de Pío Miranda, tão pesada,

tão magnética. Relembro o silêncio final. A tristeza. A desolação. Meus pais aplaudiam, todos

aplaudiam de pé e eu sofri uma mistura de empatia e incompreensão. E Pío, escuro, tão

parecido com meu tio Adriano, tão parecido com tanta gente, com o país. Senti empatia por

Pío. Assim como Cabrujas e como Ricardo Píglia, eu também sinto certa inclinação pelos

fracassados, na literatura e na vida, por esses seres que perseveram em se desperdiçar se

destruindo. A geração do meu pai é a de Cabrujas e se me interessa tanto este tema é porque

busco entender minha família para poder me entender melhor. Pode parecer paradoxal, mas o

fracasso me seduziu. Germinou em minha vida uma curiosidade que aqui dá seus frutos.

Aqui significa nesta dissertação e significa também neste país. Assim como me seduziu o tema do fracasso, o Brasil também me seduziu. Antes de decidir estudar aqui, viajei

um ano pela América do Sul. De todos os lugares que visitei, cidades que conheci,

nacionalidades, ambientes e estilos, nenhum outro me atraiu mais do que o Rio de Janeiro. O

tempo tem passado, o ciclo do mestrado está terminando. Consegui, por meio de amigos,

organizar uma vida ideal para a escritura da dissertação durante estes últimos seis meses de

mestrado; vivo bem, confortável, com espaço, com tempo, sem pressões, perto da natureza,

(11)

que nem rico). Tive a singular fortuna de escrever uma dissertação de mestrado sem nenhum tipo de estresse, num clima prazeroso e através de um processo criativo disfrutado e feliz.

Se falo destas coisas, e o faço em primeira pessoa, é porque acho que eu sou uma variável deste texto. E é curioso: durante todo o processo, eu próprio, como pesquisador e

como estudante, experimentei em minha própria carne o fracasso. Não o estudei, o teorizei e o

pesquisei simplesmente, mas também o vivi em dois momentos: o primeiro foi há três anos,

quando tentei ingressar no mestrado de Letras da UFRJ e, apesar de ter tirado boas notas no

processo seletivo, fracassei, como um personagem de Cabrujas, no final, na última prova que

era também a mais fácil. O segundo momento de fracasso não aconteceu em nenhum

momento específico, mas durante todo o mestrado, quando tive que reduzir o corpus analisado

de quatro obras a duas, me vendo forçado a excluir Profundo e Acto cultural. O fracasso, mais do que tema e objeto de estudo, tem sido parte do processo.

Analisar meticulosamente as obras teatrais escolhidas, suas partes, seus mecanismos,

suas estratégias e técnicas, tem permitido conhecê-las, habitá-las. Tem sido um trabalho

exaustivo, lento, mas muito disfrutado. Entretanto, houve momentos de desesperança,

sobretudo na fase de análise. Momentos desnorteados. Que sentido, me perguntei mais de

uma vez, tem toda esta obstinação, esta insistência em desarmar, desfragmentar, descompor e

rearmar estas peças? Quem irá ler tantas páginas de análise? Esta é, acabava concluindo, uma

tarefa “intranscendente”. Porém o prazer, essa é a palavra precisa, o prazer de escrever sobre as obras, de poder finalmente expressar tantas conexões de ideias, opiniões e impressões

recolhidas e contidas por dois anos e mais, o prazer analítico (Borges falava do prazer de

entender) me permitiu persistir nesta teimosia até o final.

INTRODUÇÃO

Acreditamos no teatro como força crítica da cultura de um povo localizado no tempo,

entendido como expressão histórica e sintomática do panorama político-social vivido num

momento determinado. A análise, a partir da Teoria de motivos e estratégias de Ángel

Berenger, de duas obras de Cabrujas, El día que me quieras (1979) e El americano ilustrado

(1986), serve como ponto de partida para interpretar relacionalmente um capítulo decisivo do

acontecer nacional e indispensável na construção da idiossincrasia do venezuelano, conhecido

(12)

acontecida uma década depois da chamada Grande Venezuela ou Venezuela saudita, caracterizada pela explosiva riqueza de recursos econômicos surgidos como consequência da

nacionalização da indústria petroleira. Cabrujas consegue, mediante a sublimação da arte,

projetar e comover o universo de complexos nascido do enriquecimento súbito vivido por

uma sociedade, até então totalmente provinciana e bucólica, que, em poucos anos, encheu-se

de arranha-céus. Venezuela quis ser um país moderno, mas seu desenvolvimento foi mais

rápido do que o de seus habitantes, despistados entre tantas mudanças. Fez-se necessário

apelar à imitação: a sociedade adaptou-se à nova situação mediante a pose. Para ser ricos e

desenvolvidos bastaria aparentar sê-lo, porém a ambiguidade que surge da não

correspondência entre a vida e a realidade – o que se torna insustentável – gera um sentimento que define a tensão entre o homem e seu entorno: o fracasso.

A nacionalização do petróleo originou um acelerado crescimento econômico que

repercutiu em todos os âmbitos da vida do país e ocasionou uma mudança na idiossincrasia do

venezuelano, com respeito ao trabalho, ao progresso e à sua maneira de entender-se dentro do

mundo. Nasceu, então, a Venezuela saudita, um país milionário habitado por pobres, uma terra mágica de onde brotava ouro negro, uma promessa. Viveram-se anos de aparente

prosperidade, mas uma hecatombe contida e iminente, consequência da dívida externa, a

desvalorização monetária, a corrupção e o controle cambiário cresciam entre a miséria de um

país majoritariamente pobre. A Geração dos 58, ano que marcou o início da democracia, da

qual Cabrujas formava parte, enfrentou, durante aquele período histórico, o dilema de provir

de um grupo social ideologicamente comprometido com o cosmos comunista e seus projetos

ou pertencer a uma nação cujo caráter, realidade e história os contrariavam.

Na obra de Cabrujas, se problematiza a concepção irreal que a sociedade venezuelana

tem sobre si mesma (vida pública), mediante a complexa luta interna de personagens que, na

procura de uma correspondência entre seus anelos e a realidade do entorno, desnudam suas

contradições pessoais (vida íntima) não só ante tudo e todos, mas, sobretudo, ante si mesmos.

Começa uma etapa na vida do autor que afetará sua cosmovisão do mundo, seus argumentos e

seu estilo dramático, etapa marcada por uma escolha vital: a procura da sinceridade. Ser

autênticos, como sociedade e como indivíduos, como criador e intelectual, será uma obsessão

para o dramaturgo.

O grupo social de Cabrujas, intelectuais de esquerda da democracia, fundou sua razão

de vida nos ideais utópicos do comunismo, sofreu uma progressiva e dolorosa desilusão, a

perda de uma ideologia que a realidade estava derrotando. O sentimento de fracasso, para

(13)

do mesmo jeito que agem, com ou sem consciência, os personagens das obras a serem

estudadas. Eles sofrem demais. Pío Miranda, Arístides Lander e seu irmão Anselmo, todos

carregam o peso de sua própria frustração e buscarão, por meio da confissão aberta, o

caminho à sinceridade, que não resolve seus problemas (em ocasiões os aumenta), mas

suprime a mentira e dá abertura ao reconhecimento. A insignificância histórica, a falsidade, as

derrotas pessoais, o absurdo e as frustrações amorosas atormentam estes personagens que

sempre disfarçam seus fracassos, frente aos outros e frente a si mesmos, por trás de

ideologias, comportamentos e posturas que não lhes permite explicar-se ou se entender-se,

tampouco para melhorar-lhes a vida.

O autor apresenta universos dramáticos nos quais a confusão de relações resultante do

encontro dos personagens com a cultura, a religião e a política os ancoram na história. Contra

o sentimento de derrota e falsidade de seu país e grupo social, Cabrujas propõe, em seus

dramas, uma estratégia: a confissão. O clímax de cada obra, tensão máxima da progressão

dramática, é alcançado quando um personagem confessa seu fracasso e se revela ante os

outros com sinceridade. O resultado é um processo de despojo que termina em situações

radicais, violentas e dolorosas.

A hipótese deste trabalho consiste em comprovar, mediante a análise crítica das duas

peças de teatro de José Ignacio Cabrujas, o potencial explicativo da estratégia criativa da

confissão dos personagens, em relação ao sentimento de fracasso de um grupo social, a que

pertence o autor, e como parte de um plano para superar as imposturas derivadas do resguardo

ideológico.

Metodologia

Antes de entrar no assunto, uma aclaratória: Dizemos último teatro como fórmula metafórica para significar o teatro mais maduro e definitivo de Cabrujas, que está constituído

por El americano ilustrado e El día que me quieras. Houve otras obras posteriores, mas não abordam o tema do fracasso que era o que mais interessava a Cabrujas, e tal vez por isso não

sejam tão transcendentes nem tenham sido tão representadas quanto este par de obras que até

aqui analisamos. Porém, como viemos dizendo, houve mais obras. Em 83, Una noche oriental, em 90, Autorretrato de artista con barba y pumpá e em 95, Sonny, diferencias sobre Otelo, el moro de Venecia. Resulta evidente, desde um ponto de vista literal e estritamente cronológico, que o par de obras que analisamos compõem o “último” teatro de Cabrujas é um

(14)

Esta é uma pesquisa qualitativa, exploratória e bibliográfica. A forma de abordagem

do objeto de estudo é qualitativa, porque consideramos que há uma relação dinâmica entre

sujeito e mundo real; mais especificamente, entre dramaturgo, José Ignacio Cabrujas, seu

grupo social, os intelectuais de esquerda e seu entorno, a Venezuela de 1979-1986. A pesquisa

será exploratória, já que tem o objetivo de proporcionar maior familiaridade a cerca do teatro

de Cabrujas e do contexto em que foi escrito, em vista de fazê-los explícitos, para poder

relacioná-los dialeticamente e evidenciar suas estruturas significativas. Do ponto de vista do

procedimento técnico, a pesquisa é bibliográfica, pois foi elaborada a partir de textos

publicados (obras de Cabrujas, literatura, teoria literária, história venezuelana e

latino-americana).

O fracasso do projeto do país é múltiplo e deve ser abordado desde diferentes

perspectivas: em primeiro lugar, há um grande fracasso econômico, pois com tanto petróleo as

condições tendiam a riqueza, mas sofremos um crescimento sem desenvolvimento (Maza

Zavala, Márquez); em segundo lugar, há um fracasso político terrível no governo de Carlos

Andrés Pérez, que fez voar mais alto do que nenhum outro governante as aspirações dos

cidadãos que, em pouco tempo, se viram traídos (Blanco Muñoz, Caballero); ademais, há um

fracasso social, o de uma sociedade deslocada de sua realidade, sem identidade e, certamente,

despreparada para uma crise tão profunda e aparentemente interminável (Pocaterra, Arraiz

Lucca); por fim, há um fracasso ideológico, o da utopia comunista e da revolução latino

americana, desmanchada pela nova utopia do petróleo que prometia uma salvação mais

tangível e próxima (Beltrán Figueredo, Eagleton).

Marco teórico: Teoria de motivos e estratégias

Esta pesquisa se soma aos trabalhos que, contrários às leituras imanentes, procuram

decifrar os vínculos entre literatura e sociedade, âmbitos que não estão separados, a não ser no

espaço acadêmico, para assim poder ler e entender a criação teatral como o que sempre tem

sido: uma prática no mundo.

Este modo de abordar os estudos literários tem sua origem na corrente sociológica da

crítica marxista, vinculada à análise dos processos de produção literária, que tem como

principais expoentes críticos Lukács e Goldmann. As inquietações analíticas deste último,

Lucien Goldmann, culminaram no desenvolvimento do estruturalismo genético: teoria que se

ocupa das relações entre a visão de mundo de um autor e as circunstancias históricas que a

(15)

mestre para desenvolver uma proposta de análise específica para a pesquisa e crítica do teatro:

teoria de motivos e estratégias.

Nosso estudo sobre a obra de Cabrujas se baseia nestes mesmos pressupostos teóricos

e pretende ser o primeiro a explicar, a partir de sua produção dramática, de forma coerente, as

relações entre a visão de mundo do grupo social a que pertence o autor e o complexo tecido

de circunstâncias históricas que possibilitaram essa visão.

Cabrujas: autor, grupo social e entorno.

Berenguer concebe o autor como um “eu individual” que faz parte de um “eu

coletivo” que enfrentam ao “entorno” (2009, p.15) Em nosso estudo, o eu individual é Cabrujas dramaturgo e o eu coletivo é o grupo social dos intelectuais de esquerda da Caracas dos anos 70. O entorno, por sua vez, corresponde àquela Venezuela petroleira com sua

economia falida e seu coração quebrado. O enfrentamento entre indivíduo e entorno acontece

com a finalidade de melhorar as condições de vida do sujeito (individual ou coletivo). Nesse

contexto, as obras de um autor são suas reações à agressão do entorno. Concretamente, El día que me quieras e El americano ilustrado são produtos da reação de Cabrujas (no plano conceitual) frente à tensão entre o entorno da Venezuela petroleira capitalista e o grupo social

dos intelectuais de esquerda. Isto poderia parecer equivocado si consideramos as críticas que

o autor recebeu de outros membros de seu grupo social pelo conteúdo ideológico de suas

peças, mas trata-se de uma má interpretação; se Cabrujas criticava seu grupo radicalmente era

para não o ver morrer por inadaptação ou se envilecer por falsidade. Na medida em que o

grupo social ganha força, o sujeito ganha individualidade. (2009, p.15)

Esta priorización de lo individual se irá abriendo camino en todas las manifestaciones científicas primero, después sociales y políticas y, paralelamente, en la expresión artística. En el plano político, los individuos tienden a promover dos actitudes: una conservadora del pasado recuperado del Antiguo Régimen y otra renovadora radical que busca nuevas vías para el desarrollo y el éxito del individuo y del grupo.1 (2009, p.15)

A atitude de Cabrujas em relação a seu grupo é sem dúvida renovadora e radical:

expõe o fracasso ideológico de seu grupo social, a esquerda intelectual venezuelana. Pío

Miranda, ao renegar em repentina explosão o seu comunismo, para o espanto da família

Ancízar, é, em certo ponto, o próprio Cabrujas, dizendo aos seus companheiros de geração:

1Tradução: “Esta priorização do individual abrirá seu caminho em todas as manifestações cient

(16)

fracassamos. Estabeleceu-se uma democracia condensada e rica. O petróleo inflamou as

ambições, comprou as consciências, subvencionou a tibieza revolucionária. A possível

revolução adoeceu de dólares. Desde a perspectiva coletiva, o campo cultural teatral

venezuelano nunca teve tanto dinheiro, tanto bem-estar, tão boa saúde. Construíam-se teatros,

promoviam-se festivais, germinavam grupos, criavam-se prêmios. Porém, desde a perspectiva

individual, Cabrujas, membro e militante do Partido Comunista da Venezuela (PCV) e do

Movimento ao Socialismo (MAS), sentiu em sua própria carne não só a contínua, sólida e

histórica derrota eleitoral de ambos partidos, mas também a “capitulação” da guerrilha

armada, a FALN. Cabrujas acaba se comportando como o “inconforme” dos “inconformes”, quando expõe no plano conceitual o fracasso de seu grupo, o fracasso da ideologia comunista

e dos partidos em que havia militado, dentro das condições históricas do país naquele

momento. Diante disso, propõe, como estratégia, a confissão do fracasso e a aceitação da

realidade. Cabrujas é a consciência “inconforme” dentro da visão do grupo “inconforme” de esquerda, que deseja reconhecer seu fracasso confessando-o à sociedade como parte da

procura por autenticidade e, no fundo, para a supervivência do grupo, ineficaz socialmente

falando.

Resumindo, esquematizando: o autor Cabrujas reage ao motivo do fracasso com a estratégia da confissão.

Teoria de motivos e estratégias

A teoria de motivos e estratégias de Ángel Berenguer parte do estruturalismo genético

para explicar uma obra de teatro em relação a seu contexto e determinar a rede de relações

entre entorno, grupo social e indivíduo, que entram em jogo na gênese das obras analisadas.

De acordo com o sentido de relações, podemos explicar uma obra de duas maneiras: do

“entorno” ao “eu” (produção da obra) e do “eu” ao “entorno” (crítica da obra). Em palavras de Berenguer:

Produção da obra

En el primer caso, el YO genera una obra partiendo del ENTORNO que se configura en el plano conceptual donde la transformación es constante. Esta inestabilidad [relación con el ENTORNO] creará en el YO una tensión a la que reaccionará significativamente a través de estrategias. Su reacción a la tensión se concreta en una reacción a motivos específicos que deben ser el objeto último de un estudio crítico. El YO individual adopta un conjunto de estrategias en esa búsqueda de la autenticidad. La producción final de la obra se ejecutará en el plano imaginario.2 (p.24)

2 Tradução: “No primeiro caso, o EU gera uma obra partindo do ENTORNO que se configura no plano

(17)

Crítica da obra

El YO receptor-crítico accede a las estrategias que ha utilizado el artista para la configuración de su obra y los motivos que la han alentado y materializa sus reflexiones en el texto crítico, regresando así al plano conceptual del que partió el artista.3 (2009, p.25)

Essas seriam as bases do método de análise que Berenguer propõe, embora falte ainda

mencionar um termo, um conceito, uma categoria analítica sem a qual resultaria impossível

sistematizar o estudo da obra de arte no contexto da tensão entre o indivíduo e sua sociedade:

as mediações. “Las mediaciones”, explica Berenguer, “se plantean en este método como estructuras cuya función consiste en establecer y sistematizar las áreas en que el YO se

relaciona de una manera problemática (tensión) con el ENTORNO”4 (2009, p.26). São

mediações, a rede de acontecimentos, de experiências e de ideias que afetaram a vida de

Cabrujas e favoreceram sua inserção no grupo de intelectuais de esquerda venezuelanos, na

segunda metade do século XX. Dividimos e catalogamos tais mediações a partir de três

categorias: a mediação histórica, a mediação psicossocial e a mediação estética.

Das mediações surge o motivo criador: a relação tensa entre Cabrujas e a Venezuela

petroleira se concretiza no plano imaginário em um motivo, o fracasso. Frente esse motivo,

Cabrujas reage significativamente por meio da estratégiada confissão.

I. CONTEXTO SOCIO-POLÍTICO DA VENEZUELA ENTRE 1979 E 1986

O fracasso econômico. Ilusão e desengano

Os processos históricos são sempre lentos e extensos, e, ao mesmo tempo, plurais e

múltiplos, legitimamente irredutíveis. Porém, na necessidade de fazer um corte histórico de

sete anos (os sete anos transcorridos entre os esternos de El día que me quieras e El americano ilustrado) e de achar neles uma coerência, como a unidade de tempo e de significado, consideramos que esse período está, sem dúvida, definido pela evidência do fracasso: o fracasso econômico nacional.

motivos específicos que devem ser o objeto último de um estudo crítico. O EU individual adota um conjunto de estratégias nessa procura por autenticidade. A produção final da obra se executará no plano imaginário.”.

3Tradução: “O EU receptor

-crítico acessa as estratégias usadas pelo artista para a configuração de sua obra e os motivos que a tem induzido e materializa suas reflexões no texto crítico, voltando assim ao plano conceitual de

onde partiu o artista.”.

4Tradução: “As mediações são entendidas neste método como estruturas cuja função consiste em estabelecer e

(18)

O efeito que a descoberta da evidência do fracasso econômico produz nos

venezuelanos tem o peso de um terrível desengano, cruel na medida em que acaba com as

ilusões e as expectativas de um povo que se achava rico e estava bêbado de petróleo e

ostentação até que, repentinamente, tropeça com a realidade (anunciada, mas ébria e

felizmente ignorada) de uma dívida impagável e cobrada no pior momento.

A evidência do fracasso se manifestou em uma série de medidas que o governo

assumiu -desvalorização da moeda e controle cambiário- assustando os venezuelanos

desprevenidos. O desengano nacional foi tão devastador em suas consequências quanto um

desengano amoroso. Dor de orgulho ferido. Raiva, desilusão, mágoa. Tudo aconteceu numa

sexta-feira, 18 de fevereiro de 1983, dia que entrou para a história venezuelana como viernes negro; nome melodramático -como é o venezuelano- e involuntariamente irónico, se consideramos o fato de que a causa para desengano parte, primeiro, da ilusão, da ilusão pela

riqueza petroleira e sua cultura do milagre: o milagre do ouro negro.

(O Caracazo de 1989 é uma consequência do viernes negro: do descontentamento geral plantado nesse dia brota, poucos anos depois, o Caracazo, um distúrbio, uma bagunça pública, uma revolta popular espontânea de enorme potência a qual se soma um grupo de

militares descontentes e a convertem em um golpe de Estado).

A história do século XX venezuelano pode ser explicada como a história do amor

falido, apaixonado e furioso, entre o país e a riqueza petroleira. Um amor fracassado. O

contexto temporal que nos interessa (1979-1986) representa para a história venezuelana a

evidência do fracasso econômico (que é sempre um fracasso político), ao qual chamamos

desengano. Cabrujas escreve as duas obras analisadas neste estudo durante o período do desengano nacional.

O historiador Manuel Caballero, a fins do século XX, faz uma sintética revisão da

história política venezuelana de democracia contemporânea, partindo fim da ditadura de

Marcos Pérez Jiménez (1958) até o fim do século, dentro da qual encaixa perfeitamente a

nossa metáfora do desengano amoroso nacional. Dizia Caballero que

Esos cuarenta años han conocido una sucesión de gobiernos buenos, regulares y francamente malos, pero en su conjunto el balance es positivo: nunca en la historia de Venezuela los venezolanos habían vivido tan bien como en ese período. Esta no es una imagen idílica del período: a partir de 1977 (paradójicamente, después de haber recibido la mayor cantidad de ingresos de su historia gracias al aumento de los precios del petróleo), en Venezuela se produjo paulatinamente un proceso de empobrecimiento general, el mismo que conoció toda América Latina en la llamada

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aceptado por todos los analistas calificados de la historia venezolana reciente.5 (Revolución, reacción y falsificación, p.56)

O começo da “Caída” (histórica) coincide, como é pertinente que aconteça em qualquer relação de confiança traída, com o desengano nacional, com a descoberta por parte do venezuelano de que a fundamentação da confiança nacional, da sua fortaleza (econômica e,

por extensão, social e psicológica) é falsa.

O “Ascenso”, ao contrário, foi de esperança e idílio. Desde que Juan Vicente Gómez pagou a dívida externa em 1930, o país passou décadas solvente, fortalecido posteriormente

pelos elevados preços do petróleo que seguiram à Segunda Guerra. Mais tarde, na década de

cinquenta, os Estados Unidos duplicam sua produção de automóveis e, consequentemente, sua

demanda de gasolina. Marcos Pérez Jiménez subjugou o país durante dez anos com uma

ditadura militar e teve a sorte de governar com grande opulência econômica. Proliferam

rodovias, urbanizações, monumentos, obras públicas: a cidade se urbaniza, se enche de

prédios, de praças, de projetos urbanos. Depois do derrocamento de Pérez Jiménez, começa a

democracia contemporânea da Venezuela.

Na década de sessenta, se cria a Organização de Países Exportadores de Petróleo

(OPEP), da qual Venezuela forma parte junto com outros países que desejam, em conjunto,

proteger e regular seus negócios petroleiros. A economia venezuelana ganha em estabilidade e

riqueza. O país crescia sem esforço, se construíam hospitais, universidades e escolas.

Multiplicavam-se os movimentos artísticos, os espaços de cultura, as agrupações teatrais. O

país acordava cultural e socialmente à democracia. A década dos sessenta está marcada pelo

entusiasmo geral e pela esperança de crescimento e progresso.

Uma voz dissonante

A pedra no sapato da consciência nacional, o desmancha-prazeres solitário no meio

daquele entusiasmo geral foi o historiador e articulista de imprensa Augusto Mijares. Este, já

em 1968, desde a modesta tribuna que representa um jornal, alertava a respeito dos perigos

envolvidos na exploração e venda do petróleo. O seu olhar histórico achava nos registros do

tempo amostras suficientes de inconsciência e esbanjamento econômico para desconfiar do

5Tradução: “Esses quarenta anos tem conhecido uma sucessão de governos bons, reg

ulares e francamente ruins, mas, no geral, o balanço é positivo: nunca na história da Venezuela os venezuelanos tinham vivido tão bem quanto neste período. Esta não é uma imagem idílica do período: a partir de 1977 (paradoxalmente, depois de ter recebido a maior quantidade de ingressos da sua história graças ao aumento dos preços do petróleo), na Venezuela se produz paulatinamente um processo de empobrecimento geral, o mesmo que conheceu toda América Latina na chamada “década perdida” dos anos oitenta. Temos dividido esse período em duas partes: “O

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sucesso da imediata nacionalização petroleira. Mijares temia que o enriquecimento sem

esforço envilecesse o temperamento do venezuelano. O mito do ouro da época da colonização

revivia em forma de ouro preto, segundo Augusto Mijares, no artigo “Riqueza fácil”, publicado no jornal El Nacional no dia 11 de setembro de 1968 e compilado no livro

Coordenadas de nuestra historia:

En nuestros días aquel mito multisecular ha vuelto a aparecer con el petróleo. Más tentador que las perlas, porque el ocio y los placeres que él paga los ve todo el mundo, y tan desmesurado, casi inconcebible, en la realidad, como el Dorado lo fue sólo en la imaginación, que parece algo sobrenatural. El Dorado no es hoy sino una colonia de delincuentes. Casi todos, precisamente, porque a la riqueza producida por el trabajo, prefirieron la riqueza fácil.6 (2000. p.574)

A euforia nacional não permitia prudências. Enriquecíamos estratosfericamente, sem

pausas, sem escrúpulos, grosseira e opulentamente, na mesma medida em que gastávamos. “O que fácil vem, fácil vai” é um ditado que se aplica para definir as políticas econômicas dos programas de governo venezuelano da segunda metade do século XX. Uma sociedade rica,

porém formada não de trabalhadores, mas de parasitas.

As vacas gordas

Os milhões com os quais sonhava a ansiosa Venezuela dos anos sessenta chegaram

duplicados nos anos setenta graças a um evento inesperado: a crise mundial do petróleo de

1973. Com a Guerra do Ramadã ou Guerra de Outubro - enfrentamento militar entre Israel e

os países árabes (Egito, Síria) pela Palestina - os estados do Golfo Pérsico, membros da

OPEP, colocaram uma penhora petroleira sobre os países amigos de Israel (Estados Unidos e

Holanda). Com a culminação dos conflitos no Médio Oriente, os países petroleiros do Golfo

Pérsico haviam deixado, em conjunto, de exportar petróleo aos Estados Unidos e, em

consequência da baixa oferta, os preços do petróleo dispararam. E o resultado? Os ingressos

do governo venezuelano quadruplicaram. Com um novo sentido de confiança, o presidente

Carlos Andrés Péres prometeu -convenceu ao país- que Venezuela desenvolver-se-ia

significativamente a mínimo prazo.

Paradoxalmente, a Venezuela acabou com sua indústria nacional. Resultava mais

barato comprar e importar qualquer coisa do que produzi-la. Extintos os industriais, restaram

apenas empresários. Quem concertava máquinas de lavar, passou a importá-las e abriu uma

6Tradução: “Em nossos dias aquele mito multissecular voltou

a aparecer com o petróleo. Mais tentador do que as pérolas, porque o ócio e os prazeres que ele paga são vistos por todos, e tão desmesurado, quase inconcebível, na realidade, quanto o Dourado o foi só na imaginação, que parece algo sobrenatural. O Dourado não é hoje senão uma colônia de bandidos. Quase todos, precisamente, porque à riqueza produzida pelo trabalho, preferiram

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loja de máquinas de lavar. Quem fazia roupa, agora a comprava na China ou no Peru e a

revendia na Venezuela. As famílias com dinheiro viajavam até Miami para renovar sua

indumentária e comprar novos eletrodomésticos (os venezuelanos eram muito bem recebidos,

então). Daquela época se origina a expressão do tabaratismo, isto é, quando um venezuelano entrava em uma loja, de qualquer país, perguntava, aleatoriamente, o preço de um produto e

depois de escutar valor, invariavelmente, respondia “Tá barato, me dá dois”. Com o petróleo, perdia sentido qualquer produção em matéria de custos, o que importava era estar perto do

fluxo milionário do petróleo, distribuir e tomar da grande riqueza matriz.

Sucede que la fortaleza de la moneda venezolana y la debilidad o inexistencia de una industria y de una agricultura habían acostumbrado, con el estímulo natural de esa

moneda “dura”, a importar todo; el alud de dinero que llegó al país a partir de 1973

no hizo sino magnificar esa tendencia; y en la clase media venezolana se hizo costumbre no esperar a que los artículos de consumo llegaran a los puertos de su país, sino ir a buscarlos a su lugar de origen. En esas condiciones, comprar en el extranjero no se veía como una catástrofe sino como un hábito7. (CABALLERO, 2003, p.165)

Estimulado, atraído pela enorme quantidade de ingressos, o presidente Carlos Andrés

Pérez prometeu o imediato desenvolvimento do país e nomeou o seu delírio como La Gran Venezuela. Pensava usar os benefícios do petróleo para aumentar o emprego, combater a pobreza e investir na diversificação da economia. Como se aproximava, rapidamente, a

nacionalização do petróleo, o venezuelano tinha muita confiança em sua solidez monetária.

Por isto, gastava o lucro sem prudência. Assim como na história da formiga e a cigarra, os

governos venezuelanos, cigarras caribenhas e inconsequentes, não pouparam, não inverteram,

mas gastaram todos os recursos. A anelada nacionalização saiu cara e, apesar dos ingressos,

teve que solicitar empréstimos que até hoje a Venezuela negocia.

Advertências ignoradas. Crónica de um fracasso anunciado

Mais uma vez, depois de seis anos, a voz dissonante de Augusto Mijares regressa ao

ataque desmancha-prazeres e direciona certeiramente os temas relevantes antes de disparar.

Com dois anos de antecedência, já em 1974 (18 de fevereiro, mais especificamente), Mijares

publica um artigo intitulado “Petróleo”, onde polemiza o projeto de nacionalização e exploração direta do petróleo venezuelano. “Ha prevalecido un ambiente de entusiasmo y de

7

Tradução: “Acontece que a força da moeda venezuelana e a debilidade ou inexistência de uma indústria e de uma agricultura tinham se acostumado, com o estímulo natural dessa moeda forte, a importar tudo. A avalanche de dinheiro que chegou ao país a partir de 1973 não fez senão magnificar essa tendência; e na classe média venezuelana se fez costume não esperar que os artigos de consumo chegassem até os portos do seu país, mas ir procurá-los no seu lugar de origem. Nessas condições, comprar no estrangeiro não era visto como uma catástrofe

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anticipada celebración que por esto mismo nos mueve a desconfiar8” (2000, p.602). Mijares argumenta que ter alcançado a data formal, indicando o prazo para a reversão de contratos

petroleiros, não é indicativo suficiente, não é prova de que o país estivesse pronto e

preparado. Não era possível sequer, escrevia Mijares, ter um correio eficiente, controlar a

situação das crianças abandonadas, tampouco ter um sistema de transporte urbano funcional.

Como, então, em meio ao fracasso administrativo, propor a exploração direta do petróleo

estando o país em situação de fracasso administrativo? Teme, com toda justiça, que prolifere a

corrupção. Conclui dizendo: “No sé si juzgarán demasiado pesimistas mis observaciones, ningún examen de conciencia puede dejar de ser amargo9” (2000, 604).

A sorte da futura empresa petroleira - que mesmo antes de existir se projetava como a

futura principal empresa do país - dizia Mijares, “no puede dejarse a merced de las fluctuaciones políticas10” (2000. p.605). Mijares argumentava que a riqueza petroleira não devia ser usada para comprar o bem-estar, mas para fazer com que a produção e a indústria

endógena crescessem. Em poucas palavras, como costumava dizer metaforicamente Arturo

Uslar Pietri, se devia sembrar11 o petróleo; caso contrário, no melhor dos cenários possíveis

(ausência de corrupção e “maravillosa aptitud administrativa y técnica12” do governo), isto é,

num cenário ideal, utópico, a verdadeira situação da Venezuela seria patética. Nesse cenário,

o país, segundo Mijares, converter-se-ia numa empresa, uma gigantesca empresa, nada além

disso. E não só seria a Venezuela uma empresa para explorar diretamente o seu petróleo, mas

-e aqui está a gravidade- para transformá-lo em dinheiro para comprar outros produtos, solver

carências econômicas de todo tipo e assumir tarefas que não são de sua pertinência.

Observemos o absurdo de dita situação, como propõe Mijares, invertendo a relação.

Imaginemos que

a cualquiera de las actuales empresas petroleras mundiales se la hipertrofiara hasta el punto de asumir responsabilidades del Estado, que tuviera que atender a todas las necesidades y gastos de una nación: salubridad, ejército, comunicaciones, roscas profesionales y políticas, niños y locos que andan sueltos, madres solteras que ya no tienen dónde seguir “alumbrando”, vegetación que arde y ríos que se secan, subsidios para cuanto se produce, un Banco Agrícola que con inevitable puntualidad pierde su capital cada cierto tiempo y unos Institutos Autónomos que nunca son

8Tradução: “Tem prevalecido um ambiente de entusiasmo e de antecipada celebração que

, por isto mesmo, nos

faz desconfiar”.

9Tradução: “Não sei se julgarão pessimistas demais minhas observações, nenhum exame de c

onciência pode

deixar de ser amargo.”

10Tradução: “não pode ficar a mercê das flutuações políticas”.

11Tradução: “

plantar” o petróleo.

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autónomos para dejar de pedir auxilios al gobierno, los problemas que la industrialización y los de la reforma agraria, etc. etc.13 (2000.605)

O cenário parece absurdo. Porém, foi isso mesmo o que aconteceu, o Estado virou

empresário e, com milhões de petrodólares, sustentou a economia da Venezuela. A

nacionalização do petróleo e a criação da empresa Petróleos da Venezuela (PDVSA)

aconteceu em 1976. Contudo, neste mesmo ano, o país adquiriu uma enorme dívida para

financiar os custos da nacionalização. Terminava o período das vacas gordas e se aproximava

o de vacas magras, para o qual o país não estava preparado.

Em 1979, Luís Herrera Campins é eleito Presidente da República e recebe o país com

o preço do petróleo ainda alto e o verá subir mais durante seu mandato, fato que não impedirá

o aumento das dívidas até ocasionar um colapso. A corrupção administrativa, a ineficácia

oficial, a falta de planejamento de vários governos consecutivos, são variáveis que se

coordenaram para preparar a debacle. Entretanto, a alegre temeridade econômica do governo

de Carlos Andrés Pérez, que falava da Gran Venezuela e prometia paraísos (ignorando os sinais que anunciavam tempos tormentosos), e o cumplice silêncio de Luís Herrera Campins,

indeciso mandatário num momento crítico, foram fatores que contribuíram para ocultar a

catástrofe.

O desengano

O venezuelano bate de frente com a evidência do fracasso econômico nacional na sexta-feira 18 de fevereiro de 1983 (vienes negro), quando o país acorda com a moeda desvalorizada e com a venda de divisas suspendida. Venezuela, que se achava rica,

experimenta, então, os primeiros sintomas da doença econômica, o começo da instabilidade

monetária do país.

O sentimento é de incompreensão, de incredulidade, de impotência. Retomemos a

analogia amorosa que usamos ao princípio: o venezuelano é como um noivo apaixonado de

sua noiva, uma garota morena, voluptuosa e sensual chamada Riqueza Petroleira, melhor

conhecida como Rica. O namorado se sente muito bem, tem passado as últimas duas décadas

feliz, doido de amor por Rica. Está contente. Tio Augusto, porém, não cessa de lhe advertir

13Tradução: “

se qualquer das atuais empresas petroleiras mundiais fosse hipertrofiada até o ponto de assumir responsabilidades do Estado, e tivesse que atender todas as necessidades e gastos de uma nação: salubridade, exército, comunicações, roscas professionais e políticas, crianças e loucos que andam soltos, mães solteiras que já não têm onde seguir dando à luz, vegetação que arde e rios que secam, subsídios para quanto se produz um Banco Agrícola que com inevitável pontualidade perde seu capital cada certo tempo e uns Institutos Autônomos que nunca são autônomos para deixar de pedir auxílios ao governo, os problemas que a industrialização e os da

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que Rica é perigosa e desperta a desconfiança nele, que parece estar escondendo algo, mas,

cego de amor, ele o ignora. Até que, um belo dia, numa sexta-feira, 18 de fevereiro, o noivo

volta mais cedo do trabalho e descobre que Rica o trai com o porteiro do prédio. O efeito é,

logicamente, imediato: a ilusão se derruba frente à evidência do fracasso porque Rica não era

o tipo de garota que o venezuelano achava.

A dívida contraída em meados dos setenta e cobrada repentinamente pela banca

internacional, em um momento em que Venezuela enfrentava uma forte fuga de capitais,

causou um colapso nas reservas. A dívida saiu de controle e o Banco Central da Venezuela se

declarou insolvente em fevereiro, forçando o governo (para frear a fuga de capitais, negociar

com a banca e, ao mesmo tempo, organizar as coisas dentro do país) a tomar uma série de

medidas econômicas extremas: desvalorização e controle cambiário, que acabaram não

adiantando. A explicação é complicada, uma vez que o explosivo coquetel de fatores

econômicos que ocasionaram o viernes negro tomou a todos –inclusive o governo - de surpresa.

No meio deste cenário, o país estava confuso e carente de explicações. A economia se

derrubava de forma abrupta e repentina e o governo parecia sem soluções. Suas ações foram

brandas: primeiro, suspenderam a venda de divisas por dois dias, prazo que foi estendido por

mais uma semana, passada a qual estabeleceram o controle cambiário. Tal fato foi encarado

como um ato de indecisão. “El gobierno se encontraba”, segundo Manuel Caballero, “entre la espada y la pared; y optó entonces por una solución media: estableció un control de cambios

pero se negó, como lo pedían algunos personeros del gobierno mismo, a una devaluación

lineal.”14 (2003, p.167)

Decretou-se uma desvalorização necessária, embora insuficiente, do valor do bolívar

em relação ao dólar: houve uma desvalorização, no mercado oficial, de 4.30 a 7 bolívares por

dólar. “La devaluación”, explica Manuel Caballero, “trajo consigo el agravamiento de otro fenómeno que ya había comenzado a manifestarse: la inflación. Este es un fenómeno mundial,

pero Venezuela parecía a resguardo de eso: Venezuela parecía una isla rodeada de petróleo

por todas partes.”15 (2003, p.170)

14 Tradução: “O governo se encontrava entre a espada e a parede; e optou então por uma solução média:

estabeleceu um controle de câmbios, mas negou-se, como o pediam alguns achegados ao governo, a uma desvalorização linear”

15Tradução: “A

desvalorização trouxe consigo o agravamento de outro fenômeno que já havia começado a se manifestar: a inflação. Este é um fenômeno mundial, mas a Venezuela parecia livre disso: a Venezuela parecia

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Coração quebrado

A desvalorização, a inflação e a dívida representavam para o país a evidência do

fracasso. “Para los venezolanos significaba el fin de una vieja ilusión, la de la solidez de su moneda que se parangonaba en esto con las de los países del Primer Mundo” (CABALLERO, 2003, p.169). Incrédulo, ferido, desapontado, o venezuelano se perguntava o que havia

acontecido, como não foi prevista aquela possibilidade, por que não haviam administrado os

recursos enquanto existiam. A resposta é que, na verdade, houve, de fato, algumas

advertências, mas foram ignoradas. Nos primeiros anos da década de setenta, alguns

economistas e homens de Estado propuseram certas reformas, certa ordem, entretanto a

Guerra do Ramadã acabou com toda mesura possível. Teria resultado impopular para o

governo, pedir austeridade para os eleitores conscientes da fabulosa quantidade de

petrodólares que entravam no país. Impopular e desagradável, mais ainda para um presidente

como Carlos Andrés Pérez, presidente e showman. Além, ainda que Pérez desejasse fazê-lo, ninguém o teria apoiado: simplesmente, explica Caballero, faltou piso político para prosseguir com suas reformas, assim como aconteceu com o governo de Herrera Campins; porque o país

inteiro estava intoxicado, ébrio de petróleo caro.

Vale a pena considerar a visão panorâmica que desde o ano 2000 projetava Arturo

Uslar Pietri (intelectual e político) sobre a incompetência administrativa da riqueza petroleira

na história política nacional:

Realmente era muy difícil que aquí no se cometieran muchos disparates. La situación en el siglo XX venezolano ha sido extraordinariamente inusual y corruptora, la situación de un país pobre, muy atrasado y muy ignorante que de pronto tiene un Estado inmensamente rico, y que esa riqueza no se debe al trabajo nacional. El gobierno se convirtió en el principal agente de enriquecimiento y no hubo clase dirigente, esa es la verdad, en otros países sí la hubo y muy poderosa y muy eficiente, en Colombia, para no ir tan lejos, en el Perú, por no hablar de Argentina. A este país le cayó encima una montaña de recursos y no fue capaz de emplearlos medio sensatamente.16 (ARRAIZ, 2003, p.43)

Como novos ricos que fomos, esbanjamos a fortuna, a herança que caiu em nossas

mãos, não nos ocupamos em fortalecer a economia, a indústria, a produção nacional.

Construímos uma cidade moderna financiada pelo ouro negro e não pelo nosso trabalho e

16Tradução: “Realmente era muito difícil que aqui não se cometessem muitos disparates. A situação no século

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proliferaram paralelamente arranha-céus e barracões. O milagre nos cobriu por décadas,

alimentou nossa cobiça e nossas esperanças. Os governos venezuelanos não souberam

preparar a flutuante economia para resistir a um forte golpe e, naquele fevereiro, a ilusão

(cimentada sobre fundamentos falsos) se desfez. O venezuelano enfrentou a evidência do fracasso econômico nacional e o desengano produziu um trauma doloroso para o qual os governos não o tinham preparado.

A medida que el Estado ha ido mostrando más abiertamente sus lacras y sus vicios, a medida sobre todo que ha ido mostrando su ruina, la espléndida confianza en el futuro, la expectativa de los venezolanos de que sus hijos tendrán asegurado un porvenir promisor, donde la educación sería el canal privilegiado de movilización social vertical, todo eso se vino al suelo. Una ola de escepticismo parece haber

ganado el país.”17 (CABALLERO, 2003, p.178)

Enquanto isso, Cabrujas…

Entre 1979 e 1986, Cabrujas produz de forma compulsiva e desenfreada. Atua para

teatro, escreve três obras teatrais, dirige várias peças e óperas, escreve roteiros

cinematográficos, uma minissérie para televisão, várias telenovelas e seus primeiros artigos de

opinião. Seu ritmo de trabalho é vertiginoso e o nível da quantidade e qualidade de produção é

muito alto, o que não suprime sua vida sentimental: neste mesmo período se casa com a

cantora lírica Isabel Palacios.

Cabrujas atua em Casa de bonecas, de Ibsen, dirigida por Carlos Gorostiza; em

Mesopotamia, de Isaac Chocrón, com direção de Ugo Ulive e em Prueba de fuego, escrita e dirigida também por este. Dirige Los ángeles terribles, de Román Chalbaude Simón, de Isaac Chocrón, seus amigos e companheiros de ofício. Dirige também Drácula, de Bran Stoker e realiza no Panteón Nacional Tres torres, tres silencios, tres erguidas soledades, com poemas e textos seus e música de Aldemaro Romero. Começa, naqueles anos, a dirigir ópera: O triunfo de amor de A. Scarlatti, Don Pasquale de Gaetano Donizetti, Don Giovanni de Mozart, Tosca, de Giacomo Pucini e A sonâmbula de Vicenzo Bellini. Além de El día que me quieras e de El americano ilustrado, escreve, ainda, Una noche oriental, dirigida por Enrique Porte no Teatro Alberto de Paz y Mateos. Para cinema, escreve os roteiros originais de El rebaño de los ángeles, dirigida por Román Chalbaud, e Homicidio culposo, escrito junto a César Bolívar. Adapta, também para cinema, sua obra de teatro Profundo e sua telenovela La señora de Cárdenas. Para televisão, Cabrujas escreve as telenovelas Natalia de 8 a 9; Chao, Cristina; Gómez I y II (inspirada na vida do ditador Juan Vicente Gómez) e La dueña,

17Tradução: “Na medida em que o Estado

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baseada em El conde de Montecristo de Alejandro Dumas. Além disso, escreve, para televisão, a minissérie El asesinato de Delgado Chalbaud, que, assim como Gómez, aborda fatos da história política venezuelana. Neste período começa, ainda, pela primeira vez, a

colaborar em El Nacional com seus artigos de opinião por convite de Miguel Otero Silva. Por fim, resulta evidente que estes sete anos representam um período de intensa

atividade criativa para Cabrujas. Vamos explorar isto com mais detalhes no próximo capítulo.

II. CABRUJAS NO CAMPO TEATRAL VENEZUELANO

Assim como Bourdieu, temos que concordar que isso que chamamos campo artístico

não é bem o meio artístico, nem o contexto. Por exemplo, se falarmos de campo artístico

venezuelano não nos referimos apenas aos principais artistas venezuelanos e às suas obras,

com relação à intertextualidade e oposição entre si, mas à algo muito maior, que resulta

incompreensível desde uma perspectiva imanentista, que precisa de uma espécie de visão

macro e relacional, necessariamente interdisciplinar, e cujas contingências históricas,

econômicas e políticas implicam o foco sociológico das artes. Segundo Bordieu, falamos de

“um campo de forças que atuam sobre todos os que entram nesse espaço e de maneiras

diferentes segundo a posição que eles ocupam nele (...), e também de um campo de lutas que

procuram transformar esse campo de forças” (1989, p.2). Não se trata apenas, como ocorre tradicionalmente, de analisar as obras dos autores, do espaço cultural (mais especificamente

teatral), de um determinado lugar (Venezuela), num determinado momento histórico (os anos

70), mas, também, de levar em conta, desde uma perspectiva relacional e não hierarquisadora, o desenvolvimento político e as relações desse espaço com o poder (institucionalização teatral do momento) como consequência e causa da situação econômica

contingente (bonança generalizada pelos fortes ingressos), com a respectiva conformação e

câmbio do campo e da batalha pela consagração e as posições das obras e de seus autores.

Recém falamos da conformação do campo teatral nos referindo à época de Cabrujas, o que pode causar estranheza se consideramos que as primeiras manifestações teatrais se

remontam, como em grande parte do desigual continente de que Venezuela forma parte, à

época da colonização; faz mais de quatro séculos, e, contudo, não é uma asseveração gratuita.

Falar de um drama nacional venezuelano é falar, em seus primórdios e durante, literalmente,

séculos, de eventos, de fatos ocasionais. Os dramas esporádicos escritos pelos contados

dramaturgos e suas isoladas apresentações nas pouquíssimas salas de teatro, que então

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um campo, segundo Even-Zohar e Bourdieu. A proliferação na Venezuela de salas de teatro,

de público teatral, de autores e grupos, festivais, prêmios, instituições e, inclusive, o

aparecimento dos primeiros críticos sistemáticos são elementos que, juntos e combinados,

constituem o campo e o sistema, que na Venezuela são posteriores ao fim da ditadura de dez

anos de Pérez Jiménez. O começo da democracia coincide com o demorado processo de

institucionalização teatral, que não se explica totalmente se não consideramos a

nacionalização do petróleo, o único motivo, a única explicação para que uma sociedade pobre,

da noite para o dia, enriquecesse de tal modo que pudesse se permitir a teatros, festivais e mil

maravilhas tiradas, que nem coelho do chapéu, pela arte da magia e do nada.

Começa, então, o que Arturo Uslar Pietri, em sua faceta de ensaísta e político,

denominou “o biberão de petróleo” (tetero de petroleo), uma espécie de ilusão econômica e política das que derivariam as futuras desgraças econômicas. Com o bem-estar social, se

instaurou o que o pesquisador Leonardo Azparren Jiménez denominou modelo social democracia/petróleo, “por el tipo de acuerdo social, político y económico que ha regido la

vida venezolana en los últimos 40 años. Sus rasgos principales, la libertad, el bienestar de una

economía rentista y el Estado promotor y salvador, modelaron una sociedad nueva que

propició un espíritu cultural liberal18” (2011, p. 18). O surgimento de uma economia capitalista de Estado, expansiva, benfeitora e sustentada pela renda petroleira, consolidou a

crença numa riqueza monetária invulnerável dando origem a noção ideológica da Gran Venezuela, que em menos de uma década se mostrou ilusória. A rápida modernização e o fluxo de dinheiro ajudaram a formar o campo teatral venezuelano, pois, como explica

Bourdieu, “a expansão econômica pode, por exemplo, exercer seus efeitos mais importantes por mediações completamente inesperadas, tais como o aumento do volume dos produtores e

do público” (1989, p.3), como efetivamente aconteceu e vamos tentar demostrar aqui.

Cabrujas visto a partir do esquema do sistema literário

A continuação, trataremos de observar a obra de Cabrujas como pertencente a um

sistema nacional específico com dimensão histórica, o que implica entender a prática teatral

de forma relacionada, isto é, em suas formas de texto dramático, representação, circulação e

recepção. A dimensão histórica se refere às condições de produção, circulação e recepção em

seus contextos local, institucional e social. Vamos falar das obras de Cabrujas, de seu público

18Tradução: “

(29)

e o mercado, as instituições e os grupos de teatro, tentando, também, considerar as formas e

estilos teatrais, os dramaturgos e os textos dramáticos como elementos do sistema nacional

teatral venezuelano.

Vamos estruturar, agora, vários elementos do modelo de periodização da história do

teatro na Venezuela de Leonar Azparren Jiménez (2011, p.7-12) no esquema proposto por

Itamar Even-Zohar (a partir do esquema da comunicação e a linguagem de Jakobson) para

analisar os esquemas literários (2001. p.29). O esquema de Even-Zohar, extraído

textualmente, configura-se da seguinte forma:

INSTITUIÇÃO [contexto]

REPERTÓRIO [código]

PRODUTOR [emissor]–––––––––– [receptor] CONSUMIDOR ("escritor") ("leitor")

MERCADO [contato/canal]

PRODUTO [mensagem]

Passemos, agora, a uma enumeração, não necessariamente organizada (para o

pensamento relacional pouco importam ordem, estrutura e hierarquias), de elementos

extraídos do Modelo de Periodização de Azparren Jiménez e demarcados nos fatores do

esquema de Even-Zohar. Comecemos, então, comentando:

O produto

Cabrujas produziu textos de teatro, espetáculos teatrais, artigos, ensaios e crônicas

para a imprensa, programas de rádio, sobre ópera, roteiros de telenovelas, roteiros

cinematográficos de ficção e documentários. Considerando que a quantidade de produções é

muito grande e variada, vamos limitar nosso interesse no que, para efeitos literários e para

efeitos desta pesquisa, resulta mais pertinente: suas peças dramáticas.

Teatro de Cabrujas

Juan Francisco de León (1959)

Los insurgentes (1962)

El extraño viaje de Simón El Malo (1962)

Tradicional hospitalidad, segundo ato de Triángulo escrito com Román Chalbaud e Isaac

Chocrón (1962)

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Venezuela barata (1965-1966)

Días de poder (1966), escrita com Román Chalbaud.

Fiésole (1967)

El tambor mágico (1970)

La sopa de piedras (1973)

Profundo (1971)

La soberbia milagrosa del General Pío Fernández (1974)

Acto Cultural (1976)

El día que me quieras (1979)

Una noche oriental (1983)

El americano ilustrado (1986)

Autorretrato de artista con barba y pumbá (1990)

Sonny, diferencias sobre Otelo, el moro de Venecia (1995)

Produtor

Cabrujas foi escritor prolixo e heterodoxo, além de múltiplo produtor cultural.

Dramaturgo, colunista de imprensa, roteirista de rádio (durante anos manteve um programa

radial sobre ópera), de telenovelas e de cinema. Foi muito bem sucedido em todos os âmbitos,

porém destaca-se em três deles: como homem de teatro, como escritor de telenovelas e como

articulista de imprensa. Como homem de teatro (dramaturgo, diretor e ator), recebeu vários

Prêmios Municipais, além do Prêmio Nacional de Teatro, que é o máximo galardão teatral

venezuelano, teve sucesso de bilheteria constante a partir de meados dos 60 até sua morte (e

também depois da morte), embora tenha sido também ferozmente atacado pela crítica depois

da estreia de sua obra mais polêmica, El dia que me quieras, além de ignorado pela oficialidade que, para não premiá-lo, decidiu não entregar nenhum prêmio nacional de teatro

no ano 1979 (Cabrujas era o grande, o polêmico, o unânime, favorito). Foi editado, traduzido,

e representado no exterior (Brasil, Alemanha, Colômbia). Foi consagrado no campo

intelectual, ainda que imediatamente atacado por sua incursão no mundo televisivo. Os

representantes da “alta cultura” o criticaram, até sua morte, com a intenção, falida, de rebaixá-lo de seu alto posicionamento nos campos cultural e teatral, no entanto, diria Bourdieu,

conseguiram, como declarou várias vezes, roer-lhe a consciência artística. Como articulista de jornais e publicações foi, além de bem sucedido, poderoso; extrapolou o campo artístico para

se posicionar no campo do poder: o país parava para ler e comentar suas crônicas e reflexões

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acontecimentos do país, influenciados pelos artigos de Cabrujas. Não é gratuito o fato de

terem sido publicadas, em várias oportunidades, compilações e antologias de seus artigos de

imprensa, antes mesmo que seu teatro. Como roteirista de telenovelas conseguiu não só

revolucionar a mídia na Venezuela desde o ponto de vista cultural - algo que parecia

impensável e incompatível com os tempos - como também alcançou um alto nível de

assistência ou rating. Foi contratado por canais de televisão nacionais (RCTV, Televen, Marte TV) e internacionais (Televisión Azteca, Cadena Caracol) até o ano de sua morte. Seus

roteiros foram comercializados e vendidos para ser transmitidos, produzidos ou mesmo

refeitos em quase todos os países da América Latina, além de alguns países de Europa e,

inclusive, do Oriente Médio. Ditou um curso de escritura para televisão a partir do qual foi

editado, vários anos depois, o livro Y Latinoamérica inventó la telenovela (2002).

Consumidores

Itamar Even-Zohar fala de consumidores diretos e indiretos, problematizando a noção

clássica de leitor de literatura e nos faz entender que consumidores podem ser até os

analfabetos que repetem a frase “ser ou não ser”, ouvida, por acaso, em um programa de rádio, no ônibus que os leva para casa, mesmo sem saber que foi originalmente escrita por

Shakespeare, mesmo desconhecendo olimpicamente a existência da obra de teatro Hamlet ou, indo além, mesmo desconhecendo que exista algo chamado teatro. Não temos como de

rastrear todos os consumidores indiretos e residuais do produtor Cabrujas, mas, mesmo nos

limitando aos consumidores diretos, a diversificação destes é complicada. Podemos

localizá-los em espécies de círculocalizá-los concêntricos que vão se ampliando sucessivamente do menor ao

maior: leitores de sua obra dramática, público dos documentários cujos roteiros foram escritos

por Cabrujas, público dos longas-metragens de ficção cujos roteiros ele escreveu, ouvintes

intencionais ou casuais de seu programa de rádio sobre ópera, leitores das edições compiladas

de seus artigos de imprensa, público das obras em que atuou, público das obras que dirigiu,

público das obras que escreveu (este, sobretudo, é um grupo de consumidores incalculável

porque o teatro de Cabrujas tem sido amplamente representado, até depois da sua morte, e

segue lotando salas e esgotando a bilheteria, como aconteceu, sem ir muito longe, no último

trimestre do ano passado com El americano ilustrado, dirigido por Héctor Manrique e seu GA80), leitores de imprensa de El diario de Caracas e de El Nacional, onde publicou até 1995, e, para terminar, a imensa quantidade de telespectadores, intencionais ou casuais

(diretos ou indiretos), nacionais e internacionais dos roteiros, a partir dos quais foram feitas

Referências

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