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O Movimento Armorial e a defesa de um Nordeste “puro”

1 O CANTO, A PEDRA E O REINO: METÁFORAS DE NORDESTE

1.3 O REINO: NORDESTE E O MOVIMENTO ARMORIAL

1.3.1 O Movimento Armorial e a defesa de um Nordeste “puro”

Nos anos anteriores ao lançamento do Movimento Armorial – final da década de 1960 – o Brasil enfrentava uma série de vicissitudes de ordem econômica, originadas em sua maioria pela política desenvolvimentista aplicada pelo governo militar a partir do golpe de 1964. Baixos salários, alta concentração de renda, perda de direitos e exploração dos trabalhadores, tudo em concatenação com uma política externa que incitava a presença em solo brasileiro de grandes empresas multinacionais, provindas principalmente da Inglaterra e dos Estados Unidos da América.

Era um círculo vicioso: os baixos salários, a ineficiência das leis trabalhistas, a isenções e os incentivos fiscais, a legislação benevolente e os financiamentos privilegiados atraíam as empresas estrangeiras que, passando a explorar economicamente o Brasil, e com o poder de seu capital investido no país, para o benefício de uma minoria empresarial, terminava por influir na política social interna brasileira, impondo decisões e atitudes do governo que beneficiassem a classe empresarial – conseqüentemente, as multinacionais – e acentuavam ainda mais o empobrecimento das classes populares. Tudo devidamente

disfarçado pela imagem de um “milagre econômico” produzido pelo próprio governo que exaltava o aumento da renda nacional, mas não mostrava como essa mesma renda era cada vez mais desproporcionalmente distribuída entre as classes sociais.

De certa forma, o golpe militar de 64 foi uma resposta às propostas reformistas de João Goulart que pretendia empreender, entre várias outras, a reforma agrária. Não que a reforma agrária que Jango propunha ferisse os interesses burgueses e capitalistas que apoiaram o golpe. Na verdade, privilegiava a propriedade privada (ainda a questão do latifúndio), graças à ampliação do mercado interno.

Dessa forma, instaurado no poder, uma das medidas tomadas pelo governo militar para garantir a manutenção da hierarquia social foi o incentivo à elaboração da imagem de um Brasil forte, autêntico a partir daquilo que seriam suas raízes e que, por isso mesmo, deveria manter-se fiel às tradições, mesmo que elas sugerissem o domínio político e econômico de uma maioria empobrecida por uma minoria aristocrática.

Apesar de se posicionar sempre contra qualquer vestígio da presença das multinacionais no Brasil, Ariano irá, em grande medida, sintonizar-se com a intenção do governo militar de elaborar uma “arte autenticamente brasileira” que representasse o ideal de nação que o governo militar pretendia disseminar.

Assim, o governo militar exigia do Brasil uma cultura fortemente fechada. Para tanto, era necessário que se cantasse na música, que se contasse nos livros, que se louvasse nos meios de comunicação em geral – rádio, jornal e televisão – aquilo que se convencionou chamar de a “música brasileira”, “o homem brasileiro”, o “crescimento do Brasil”, não só para os olhos (e ouvidos) de fora, mas também aos olhos (e ouvidos) de dentro, do “povo” brasileiro. Era preciso promulgar a imagem de um país coeso econômica e culturalmente.

Entretanto, nem tudo funcionou nesse sentido. De acordo com Marcelo Ridenti,

A modernidade capitalista - desenvolvida ao longo do século XX, com a crescente industrialização e urbanização, avanço do complexo industrial-financeiro, expansão das classes médias, extensão do trabalho assalariado e da racionalidade capitalista também ao campo, etc. - viria a consolidar-se com o desenvolvimentismo nos anos 1950 e especialmente após o movimento de 1964, implementador da modernização conservadora, associada ao capital internacional, com pesados investimentos de um Estado autoritário, sem contrapartida de direitos de cidadania aos trabalhadores. Uma parte da intelectualidade brasileira, particularmente no meio artístico, viria a politizar-se criticamente nesse processo.86

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RIDENTI, Marcelo. Cultura e política: os anos 1960-1970 e sua herança. In.: DELGADO, Lucília de Almeida Neves; FERREIRA, Jorge (orgs.). O Brasil republicano vol. 4: o tempo da ditadura: regime militar e

De forma geral, duas tendências surgiram nos movimentos intelectuais e artísticos ao longo das décadas de 1960 e 70 como forma de combate a uma descaracterização cultural brasileira e com o intuito de promover aquilo que cada uma delas, à sua maneira, considerou como sendo uma dita poeticidade brasileira. De um lado, o próprio Movimento Armorial, iniciado em 70, pode ser visto como o exemplo maior de um padrão estético voltado para escolhas reacionárias, que fundam num pretenso passado as ditas raízes culturais do país. Diante dessa premissa, toda forma de expressão artística que não parta diretamente do uso dessas tais “raízes”, ou parta de elementos de uma cultura considerada estrangeira é tido como “lixo cultural” e, como tal, deve ser descartado. Em grande medida, esse foi um posicionamento em resposta à, por outro lado, tendência em incorporar à dita arte brasileira formas e materiais de expressão originados fora dessa redoma cultural brasileira. Foi uma forma de afirmar uma expressividade nacional que se caracterizasse pela fusão dos mais diversos produtos culturais mundiais, uma maneira de assumir o papel do imperialismo, principalmente o norte-americano, na formação social e cultural do Brasil da década de 60. Tratou-se do movimento intelectual e artístico que ficou conhecido como tropicalismo, cujas características e escolhas estéticas muito explica, por oposição, aquelas feitas pelo Armorial.

No livro Todos os dias de Paupéria87, Castelo Branco desmonta o discurso que faz da tropicália um movimento cultural centrado nas ações políticas e estéticas do que seria um “núcleo baiano” - Caetano Veloso e Gilberto Gil. No lugar disso, Castelo Branco nos apresenta um tropicalismo, para além de seus aspectos estéticos, como uma vontade de ruptura associado à geração dos 1960 em que podemos encontrar inúmeras personalidades que, muitas vezes, passaram despercebidas para o público em geral e que incorporaram, ou seja, fizeram de si a marca do “corpo-transbunde-libertário” como suporte para suas “subjetividades errantes”. Para Castelo Branco, o tropicalismo, por ser linha de fuga em meio à intensificação espaço-temporal da vivência social e de seu universo expressivo em meados do século XX, apresenta ele próprio, em sua conformação, uma grande variedade de linhas de fuga, de elementos de errância diluidores, por si só, da idéia de unidade e de “núcleo”. Em suma, o livro de Castelo Branco trata de dar nomes a essas linhas de fuga – Tom Zé, Jomard Muniz de Brito, José Agrippino de Paula, Hélio Oiticica, Wally Salomão, Lígia Clark, Torquato Neto, entre vários – mas também de trazer a primeiro plano o papel da cidade na constituição de uma estética urbana e de uma nova “signagem das coisas”. Leia-se o autor:

87

BRANCO, Edwar de Alencar Castelo. Todos os dias de Paupéria: Torquato Neto e a invenção da

Neste universo de crise da linguagem – não apenas da linguagem poética, ou artística, mas crise, inclusive, da linguagem cotidiana, como vamos ver –, a cidade emergirá – no Brasil e no mundo – não apenas como centro das atividades humanas, mas também como destacado objeto de desejo e de reflexão. É na década de sessenta, em razão da rápida incorporação de novidades técnicas ao espaço urbano, que a cidade assumirá a condição de coisa ideal e desejável, algo semelhante a um ímã de luzes piscantes que seduz e atrai as pessoas.88

Se, como bem disse Edwar Castelo Branco, o deslumbramento tecnológico característico dos anos 1960 é bastante relevante para se pensar as suas manifestações vanguardistas, o efeito de tal aspecto sobre a produção musical considerada “de vanguarda” à época fica ainda mais claro, isso pelo desejo de inovação manifestado pelos músicos na adoção de novos timbres, alguns deles, elétricos ou eletrônicos.89

Já desde o início da década de 1950, com o advento da gravação em fita magnética, os músicos vinham descobrindo novos timbres nos instrumentos eletrônicos. A elaboração sonora propiciada pela fita, em comparação ao disco de vinil, trouxe versatilidade e flexibilidade na gravação e estocagem dos sons, permitindo a manipulação direta de aspectos como altura, timbre, ritmo e forma dos sons.90

Esse embate de sonoridades – de um lado o pansincretismo sonoro autofágico e deglutidor de todos os estilos defendido pelo tropicalismo; de outro a cultura “de pedra” pretendida pelo Armorial, impenetrável a qualquer ruído estranho à assim considerada cultura popular – coadunava-se, senão refletia, uma batalha mais ampla entre a tendência modernista e cosmopolita, já detectável pela influência sobre as artes e o pensamento nacional-popular, lançado pelo governo Vargas, durante o Estado Novo e levado às últimas conseqüências com a política repressiva do regime militar, a partir do golpe de 1964.

Em grande medida, o tropicalismo significou, portanto, além de outras coisas, uma decodificação estética do ambiente urbano – “palco de heterogeneidades” – em matéria de literatura, artes plásticas, cinema, música. Representou, ainda, o desejo de superar o mito da Ilha Brasil elaborado na década de 1950 pelo escritor e historiador português Jaime Zuzarte Cortesão (1884 -1960) e que pretendia dar um fechamento territorial além de cultural ao Brasil. O tropicalismo, portanto, lutava pela ruptura desse caráter isolado que o próprio conceito de “Ilha” dava ao país em meados do século XX.

88

BRANCO, Edwar de Alencar Castelo. Todos os dias de Paupéria: Torquato Neto e a invenção da

tropicália. São Paulo: Annablume, 2005, p. 58. 89

Ver BRANCO, Edwar de Alencar Castelo, op. cit. 90

Sobre o surgimento da música eletrônica, ver GRIFFITHS, Paul. A música moderna: uma história

No anseio de escapar a esse influxo urbano e capitalista caracterizado pelas novas formas de expressão artística, Ariano não apenas retoma o conceito da “ilha Brasil”, tomando- o como tema para sua tese de livre-docência apresentada à Universidade Federal de Pernambuco91, como rejeita tudo que para ele faça parte da nova “signagem das coisas” tropicalista e das atitudes estéticas e intelectuais que o tropicalismo no Brasil, a partir da década de 1960, influenciou. Ariano critica, entre outros, os artistas que

[...] sem necessidade, tomam, por exemplo, a atitude de colocar a Coca-Cola em cores positivas nas letras de suas composições e até se vangloriam de tal fato como de uma façanha, uma vitória pessoal obtida por eles. Volto-me contra outros que também sem nenhuma necessidade, não se acanharam de compor refrões musicais para a Coca-Cola. Em ambos os casos estavam cometendo a traição de Judas e Fausto, em troca da alma ou de 30 dinheiros.92

Para Ariano, a Coca-cola é uma

[...] empresa emblemática do capitalismo americano, símbolo da hegemonia econômica dos Estados Unidos e arma principal, em rádios e televisões, da ridícula arte de massas com a qual os americanos pretendem e estão conseguindo vulgarizar, corromper e descaracterizar a cultura dos outros países.93

Como “Judas” e “Fausto”, Ariano se refere a músicos como, por exemplo, o cantor Renato Russo. Herdeiro da proposta tropicalista de inclusão dos aspectos urbanos da sociedade na produção cultural da mesma, Renato Russo, como vários outros compositores, pintores, escultores, escritores e cineastas das décadas de 1970 e 80, reconhece sua música e sua arte como fazendo parte desse ambiente ruidoso que é a cidade grande e, admite a própria urbanicidade de sua banda - Legião Urbana - e de sua música - rock de inspiração americana - como produtores de uma estética musical que não deixa de ser brasileira.

Em 1981, para o disco Dois da banda de rock Legião Urbana, Russo compôs a canção “Geração Coca-cola” que trazia os versos:

Quando nascemos fomos programados pra receber o que vocês Nos empurraram com os enlatados

Dos U.S.A., de nove às seis

91

SUASSUNA, Ariano. A onça castanha e a Ilha Brasil: uma reflexão sobre a cultura brasileira. Recife: UFPE, 1976. (Tese de Livre-docência em História da cultura brasileira).

92

Idem.

93

Desde pequenos nós comemos lixo comercial e industrial Mas agora chegou nossa vez

Vamos cuspir de volta o lixo em cima de vocês Somos os filhos da revolução

Somos burgueses sem religião Somos o futuro da nação

Geração Coca-Cola

Curiosamente, a letra faz uma crítica semelhante à de Ariano quando aponta a presença dos “enlatados dos U.S.A.” como sinal de uma subserviência cultural do Brasil àquela imposta pelos Estados Unidos a partir de meados do século XX. Entretanto, Renato Russo destoa de Ariano ao propor (ou aceitar) a incorporação desses produtos culturais como elementos “abrasileirados” e assimilados como possibilidade de expressão estética e política a partir da produção cultural brasileira.

É dentro dessa visão de Ariano que o Armorial assume claramente um sentido político, apesar de, também, e principalmente, artístico, como será através do Armorial que Ariano virá a por em prática, por meio da expressão artística, o desejo de fechamento desse espaço Brasil. Ariano, que afirma nunca ter deixado as fronteiras do país e não ter a menor intenção de fazê- lo por “não gostar de viajar”94, irá pelas atividades do Movimento, instaurar um espaço imaginário e artístico – o Nordeste – com uma cultura e uma expressividade próprias, para além das quais o dito “homem nordestino” e ele próprio, Ariano, não têm necessidade de ir.

Ao passo que o assim chamado tropicalismo representa musicalmente a abertura a novas formas de concepção e linguagem, corolário da imersão do Brasil no cenário pós- moderno mundial, durante a década de 1960; o Armorial propõe, a partir de 1970, o movimento inverso, um refluxo dessa dispersão por outros timbres, outras formas de cantar e tocar. Ariano deseja o restabelecimento desse mesmo “cordão umbilical” que liga irremediavelmente, segundo ele, o homem à terra, o cantador ao Nordeste, e este ao Brasil e à própria idéia de brasilidade - cordão imenso perpassando espaço e tempo, Brasil e Península Ibérica, contemporaneidade e medievo.

Se, como sugere Castelo Branco, a tropicália pode ser entendida como o “esforço para deglutir e digerir o universo urbano de então, o qual se apresentava fragmentariamente através de notícias, espetáculos, televisão, ídolos do cinema e propaganda”95, o Armorial pode muito bem ser entendido como o esforço para restaurar (e proteger contra esse mesmo influxo de

94 SUASSUNA, Ariano. O barroco e o lúdico na cultura popular brasileira. Aula Espetáculo. Natal, 06 set 2006. (Gravação do autor).

95

BRANCO, Edwar de Alencar Castelo. Todos os dias de Paupéria: Torquato Neto e a invenção da

urbanidade) o espaço imaginário Nordeste, formatado já desde a década de 1920 pelo discurso regionalista.

As divergências na concepção estética e intelectual entre o Armorial e o Tropicalismo são visíveis já a partir da escrita de seus autores. Um exemplo pode ser obtido comparando a escrita de Torquato Neto, segundo Castelo Branco, um dos principais agentes da estética de ruptura do tropicalismo durante os anos 1960, e a escrita do próprio Ariano Suassuna, idealizador do Movimento Armorial.

Em Torquato Neto, incomodam os olhos a falta de letras maiúsculas durante todo o corpo de seus textos. Como afirma Castelo branco, “Todos os seus textos - com exceção apenas daqueles submetidos às normas de redação dos jornais em que trabalhou - são firmados em minúsculas”96. Para o autor de Todos os dias de Paupéria, ao contrário do que se possa pensar, esse “desleixo” de Torquato quanto às normas gramaticais não deve ser entendido como “desprezo pela palavra”. Na verdade, para Castelo Branco, “a sua batalha é com a linguagem”97 e o que ele, Torquato, propõe é “a prospecção de novas formas de comunicação”98. Em grande medida, a escrita de Torquato incorpora o mesmo sentido de rompimento com a ordem, de quebra de hierarquias com o qual o tropicalismo ficou associado.

Já em Ariano, no extremo oposto da escrita torquateana, o que encontramos é a invenção de novas maiúsculas, ou seja, a adição de palavras ao grupo dos nomes considerado próprios e merecedores de maiúsculas pelas normas da língua portuguesa. Palavras como “Pai”, “Sertão”, “Cultura”, “Povo” passam a serem grifadas por Ariano obrigatoriamente com a inicial maiúscula em qualquer posição ou período em que apareçam, como uma forma de perpetuar, em sua literatura, a condição superior hierárquica que para elas deseja seu autor. Essa atitude escriturística de Ariano reflete seu próprio desejo de manutenção da ordem, de estabilização do status na sociedade patriarcal e aristocrática da qual é filho e a qual, junto a uma imagem ideal do Nordeste, pretende manter.

Entretanto, é preciso atentar para o fato de que esse antagonismo entre o Armorial e o chamado tropicalismo, na verdade, é o ápice de um embate ideológico iniciado por volta da década de 1920 entre regionalistas e modernistas. Em grande medida, essa foi uma disputa estética que refletiu um choque entre os espaços rural e urbano, entre os costumes da sociedade tradicional patriarcal açucareira e os influxos industrializantes e modernizantes dos

96

Idem, p. 170.

97

BRANCO, Edwar de Alencar Castelo. Todos os dias de Paupéria: Torquato Neto e a invenção da

tropicália. São Paulo: Annablume, 2005, p. 70. 98

grandes centros urbanos que se estabeleciam. Nesse sentido, tanto o pensamento estético arcaicizante armorial, em estreita ligação com o arquivo pessoal de Ariano, como a intencionalidade antropofágica tropicalista estão entrecruzados com a história cultural dos espaços urbanos e rurais, refletindo antes uma luta ideológica e apaixonada, desenrolada desde o início do século XX, do que uma escolha bairrista entre timbres e sons.

1.4 A MÚSICA E A CONFIGURAÇÃO SONORO-IMAGINÁRIA DOS ESPAÇOS : O