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Timbres do Movimento Armorial: os instrumentos usados

3 PAISAGEM SONORA: SONS DE NORDESTE NO MOVIMENTO

3.2 TIMBRES DE NORDESTE

3.2.1 Timbres do Movimento Armorial: os instrumentos usados

Tendo em vista a discussão sobre o uso de instrumentos na música armorial, e partindo ainda do trabalho realizado pelo Quinteto Armorial, pode-se distinguir três instrumentos principais cujos timbres foram agenciados pelo movimento com o intuito de estabelecer uma clara ligação de sua música com o espaço Nordeste. Foram eles: a viola sertaneja, a rabeca e o

marimbau.

Para o objetivo deste trabalho, o que importa é reconhecer a maneira como o som característico – timbre – de cada um desses instrumentos foi utilizado como recurso para a instituição de uma tal “sonoridade nordestina”.

A viola sertaneja

O uso da chamada viola sertaneja pelo Quinteto se justifica, antes de tudo, por sua forte presença na música dos cantadores nordestinos. Mais do que uma necessidade harmônica, ou mesmo uma questão funcional, a viola tem a nítida função de “autorizar” as composições armoriais enquanto “música autêntica do Nordeste”. Uma vez que o uso do violão – também presente na formação do grupo armorial – poderia facilmente suprir a necessidade de suporte harmônico para os demais instrumentos melódicos – o papel simbólico da viola na formação do Quinteto fica óbvio: ela está lá para autenticar a música armorial enquanto “música popular nordestina”.

Segundo o violeiro e pesquisador Roberto Corrêa, a viola foi introduzida no Brasil já no início da colonização, trazida por colonos e jesuítas portugueses, sendo que no século XV e, ainda mais, no século XVI, era largamente difundida em Portugal, sendo considerado o principal instrumento dos jograis e dos trovadores. Indo mais longe, Corrêa menciona Philipe

de Carerel, o qual, “no relato da sua embaixada a Lisboa, em 1582, menciona as ‘dez mil guiteres’ – violas – encontradas nos despojos do campo de D. Sebastião, na trágica batalha de Alcácer-Quibir”.264

Em grande medida, esse discurso da ancestralidade da viola, através do qual o instrumento estaria associado à música medieval dos cantadores medievais, reforça o sentido que o Armorial pretende dar à música dos violeiros do Nordeste como sendo descendente direta da música medieval da Península Ibérica. Está bem de acordo com a visão do próprio Ariano sobre o dito subsolo cultural brasileiro, sedimentado a partir dos influxos da cultura ibérica por meio da colonização portuguesa.

É como se, assim como o rei D. Sebastião, jazesse em solo sagrado, esperando pelo seu desencantamento, também seu séqüito de violeiros, representantes da música de uma época e de um espaço que urge ser resgatado, e que assim o será, segundo o Armorial, pelo elogio da viola “caipira”, ou viola “sertaneja”, ou viola “nordestina”.

A rabeca

Com a rabeca acontece algo semelhante ao caso da viola nordestina: seu uso pelo Quinteto Armorial denota o desejo de trazer para dentro de sua música o timbre da música tida como popular do Nordeste. Entretanto, sua origem parece remeter a outros espaços e a outra cultura que não diretamente a ibérica. Sobre a sonoridade da rabeca, fala Antônio Nóbrega:

O nome é a latinização da palavra ‘rebab’. Rebab é um instrumento árabe, introduzido na Península Ibérica durante a sua ocupação, e ao se fundir com a família das violas do norte da Europa veio a dar no violino. A maior diferença entre o violino e a rabeca é que a rabeca tem o som um pouco mais áspero, tem mais harmônicos, ou seja, é um instrumento que tem mais notas ocultas.”265

A fala de Nóbrega se coaduna com o discurso do Armorial que pretende reconhecer uma linhagem ibérica presente na dita “cultura popular nordestina”, mas, no caso, trata de reconhecer também o papel da cultura árabe e moura como sendo partícipe da formação daquele mesmo “subsolo cultural” imaginado por Ariano. É na mistura de timbres – viola, rabeca – ou seja, de sons, que o Armorial pretende elaborar uma ligação entre as culturas, que o Movimento assim considera, do Nordeste, do antigo reino de Portugal e do Oriente.

264

CORRÊA, Roberto. A arte de pontear viola. Brasília/ Curitiba: Autor, 2000, p. 21.

265

A Música Armorial: do experimental à fase arraial. Direção e produção de Ana Paula Campos. Recife: Universidade Católica de Pernambuco, 2005. 1 DVD.

Os harmônicos superiores a que Nóbrega se refere são notas secundárias obtidas a partir de uma nota-base qualquer – nota fundamental – e cuja configuração em intensidade e quantidade define o tipo de som de um instrumento. Na verdade, Nóbrega se refere a um fenômeno físico do som. Como nos lembra José Miguel Wisnik, a estrutura da onda sonora é complexa e se compõe de freqüências que se superpõem e se interferem. Isso significa que o som “real”, concreto que ouvimos nunca está completamente puro. Existem feixes de onda mais densos ou mais esgarçados, mais concentrados no grave ou no agudo que se dão simultaneamente ao som fundamental - uma nota musical, por exemplo. Na música, são esses componentes em sua complexidade que dão ao som aquela singularidade colorística que recebe o nome de timbre. Uma mesma nota, quer dizer, uma mesma altura, soa completamente diferente se produzida por uma viola ou por um violino. Isso, graças à combinação de comprimentos de ondas que são ressoadas pelo corpo de cada instrumento.266

Realmente, como afirma Roy Bennett,

Determinados instrumentos geram mais harmônicos que outros e cada um faz ressaltar seus próprios harmônicos. É, de fato, a potência relativa dos harmônicos e a maneira como se misturam que dão ao instrumento o seu timbre característico e distintivo. São ainda os harmônicos que respondem pelo brilho (ou falta de brilho) do som do instrumento.267

Um exemplo em pauta da configuração dos harmônicos superiores conseguidos a partir de uma nota fundamental pode ser a seguinte série harmônica:

FIGURA 1 – Exemplo de série harmônica

Na figura acima, a nota em preto é a fundamental, no caso, dó. As demais, em vermelho na figura, são os primeiros quinze harmônicos obtidos a partir da fundamental. É claro que é preciso um ouvido treinado para escutar algumas dessas notas simultâneas ao som

266

Sobre a relação das notas harmônica superiores com o timbre dos instrumentos, ver WISNIK, José Miguel. O

som e o sentido: uma outra história das músicas. São Paulo: Companhia das Letras, 1989, p. 23 e segs;

BENNETT, Roy. Elementos básicos da música. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, i988, p. 41; HENRIQUE, Luís L.

Acústica musical. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2002, p. 185 e segs. 267

fundamental – o registro da série numa grande extensão é feito com o auxílio de instrumentos eletrônicos medidores de alturas – mas o timbre do instrumento que executa a nota, resultado da combinação das notas da série harmônica é sensível por qualquer ouvinte. Outrossim, foi a partir da estrutura sonora obtida pela análise dos harmônicos superiores que o sistema tonal, base para a produção musical ocidental desde meados do século XVII, desenvolveu-se. Leia- se, por exemplo, o que diz sobre tal assunto o compositor Arnold Schoenberg:

A nossa escala maior, a seqüência dó-ré-mi-fá-sol-lá-si, cujos sons se baseiam nos modos gregos e eclesiásticos, pode ser explicada como uma imitação da natureza. Intuição e combinação cooperaram para que a qualidade mais importante do som, seus harmônicos superiores (que representamos - como toda simultaneidade sonora - verticalmente), fosse transferida ao horizontal, ao não simultâneo, ao sonoro sucessivo.268 [269] [Grifo meu]

O que o Armorial tenta fazer – evidenciado pela fala de Nóbrega – é relacionar o timbre dos instrumentos tidos como populares – representados pela rabeca – com uma idéia de “timbre do espaço Nordeste” – autenticado pela teoria dos harmônicos superiores que, nesse caso, longe de definir uma música tonal, sugere a formação daquilo que seria uma dita sonoridade nordestina. A construção discursiva sugerida aqui se dá em cima do eixo: instrumentos ditos “populares” – rabeca – sonoridade espacial – os harmônicos superiores enquanto “imitação da natureza” – e a idéia de um espaço Nordeste imaginado. É como se a rabeca tivesse uma ligação naturalmente mais forte com a terra, no caso, com o espaço Nordeste.

Entretanto, como diz Wisnik, “A série harmônica [formada pela seqüência dos harmônicos superiores] é a única ‘escala’ natural, inerente à própria ordem do fenômeno acústico. Todas as outras são construções artificiais das culturas, combinações fabricadas pelos homens, dialogando, de alguma forma, com a série harmônica, que permanece como referência modelar subjacente, seu paradigma”.270 A existência de um “timbre do espaço Nordeste” emerge, então, como uma idealização teórica e estética, partindo de preceitos da musicologia erudita européia, incorporados por Ariano a elementos da dita música popular nordestina – a rabeca, a viola – e que os músicos armoriais pretenderam, em seu trabalho, levar a cabo.

268

SCHOENBERG, Arnold. Harmonia. São Paulo: UNESP, 2001.

269

Sobre a sua “representação vertical”, Schoenberg se refere à notação musical em pauta, onde duas notas simultâneas são representadas uma sobre a outra seguindo uma direção vertical no plano do pentagrama, enquanto que duas notas tocadas em seqüencia são notadas uma após a outra na direção horizontal.

270

WISNIK, José Miguel. O som e o sentido: uma outra história das músicas. São Paulo: Companhia das Letras, 1989, p. 24.

O marimbau

A utilização do marimbau, ao contrário da viola sertaneja e da rabeca, não está condicionado à sua presença nos ditos conjuntos populares de música do Nordeste. O marimbau é um instrumento inventado, construído especificamente para uso do Armorial e com uma sonoridade elaborada para representar principalmente a influência da cultura moura sobre a formação do imaginário nordestino.

Inspirado no berimbau-de-lata, uma versão do berimbau da Bahia, encontrado em algumas cidades do Nordeste, o assim batizado marimbau nordestino foi fruto de uma pesquisa sonora desenvolvida por músicos como Fernando Torres Barbosa, integrante do Quinteto, e Antúlio Madureira, irmão de Antônio e por esse convidado a participar como instrumentista da Orquestra Romançal.

Falando sobre a adoção do marimbau na formação do Quinteto Armorial, Ariano explica:

[...] há muito tempo, desejava introduzir no conjunto camerístico, um instrumento usado pelo Povo nordestino, o ‘berimbau-de-lata’ assim chamado para se distinguir do ‘berimbau bahiano”. Consiste o ‘berimbau-de-lata’ num arame, pregado a uma tábua e esticado por cima de duas latas que servem, ao mesmo tempo, de cavalete para o arame e de caixa de ressonância.271

Ainda é Ariano quem define o papel do marimbau dentro da sonoridade do conjunto. Para ele, esse “estranho e belo instrumento, de som áspero e monocórdico” estaria lá para lembrar, assim como a rabeca, “os instrumentos hindus ou árabes, estes últimos de presença tão marcante no Nordeste, por causa de nossa herança ibérica”.272

Portanto, os assim considerados instrumentos populares nordestinos foram intensamente utilizados pelo Armorial não simplesmente por seu valor estético, mas com uma clara intenção ideológica de instaurar, através de seus timbres característicos, de sua sonoridade, uma conexão entre a música do Movimento e o espaço Nordeste por ele imaginado.

271

SUASSUNA, Ariano. Ariano Suassuna e o quinteto armorial. Correio Braziliense, Brasília, p. 6, 28 mar 1976.

272

SUASSUNA, Ariano. A arte armorial. Texto de apresentação presente no programa do concerto de lançamento do Movimento Armorial. Catedral de São Pedro dos Clérigos, Recife, 18 set 1970. (Folheto).